“O Nosso Mundo situa-se sempre no Centro” ‒ Mircea Eliade, O sagrado e o profano, 1959

Segundo Mircea Eliade, na sua obra O Sagrado e o profano, o homem religioso manifesta o desejo de viver o mais perto possível do centro do Mundo, o que teria como primeira consequência o desejo de situar a sua própria casa no Centro, para a poder identificar com uma imago mundi.

Assim, o Centro será justamente o lugar que se irá tornar sagrado: tanto que, segundo este autor, a profunda nostalgia do homem religioso é de habitar um “mundo divini” e desejar que a sua casa seja idêntica à “Casa dos Deuses”. Tal atitude manifesta uma consciência desiderante (a que Sophia de Mello Breyner, nos seus contos, não é alheia) e uma necessidade de reproduzir indefinidamente os gestos exemplares. Todavia, este desejo de imitatio dei, de no fundo tentar fazer triunfar o Homem dentro do homem, um dos princípios da paideia, aplica-se quer à Isabela, a heroína de A Floresta (um conto de Sophia em que a autora vai privilegiar espaços simbólicos como o jardim e a floresta), quer à Alice do País das Maravilhas de Lewis Carroll. Isabel vai abrir-se de encontro a seres que vivem na Natureza e vai assim despertar a sua experiência individual transformando-a numa compreensão metafísica do mundo. Uma meta-realidade para o leitor. Alice aprende a desaprender. É testemunha e cúmplice do absurdo, do insólito, da surpresa e do inesperado que nos batem à porta todos os dias, no nosso quotidiano. Faz uma adaptação a novas situações e resolve os dilemas fazendo adaptações aos contextos, por mais estapafúrdicos que sejam.

Ambas as heroínas viajam em círculo. Para além das características do espaço remeterem para uma circularidade, também os percursos que os heróis iniciam são circulares, na medida em que partem de um espaço e a ele regressam. A viagem é, assim, um símbolo iniciático através do qual se tem acesso a um maior conhecimento que permitirá iluminar a consciência que o regresso pressupõe. Desta experiência emerge o Ver, o Pensar, a Memória e a Viagem como propulsores de conhecimento. Não nos esqueçamos de que as Maravilhas estão dentro de nós, o jardim e a floresta crescem connosco.

Segundo Nelson Goodman, não encontramos no mundo senão aquilo que lá tivermos posto, sendo que uma das formas mais elementares de construirmos o mundo se situa ao nível da percepção visual. Logo, a conclusão segundo este autor é que não só o movimento mas também a identidade são construções e não dados. Então, a percepção faz os seus factos: consequentemente, as ficções não poderão distinguir-se dos factos na base do argumento de que umas são “fabricadas” e os outros “descobertos”; uma vez que os factos são construídos tanto quanto as ficções e as ficções podem ser informativas.

Ora, retomando Alice e os conceitos de Goodman, o jardim maravilhoso corresponderá a uma construção de uma “versão-de-mundo”, através do encanto de uma linguagem ecranlizada, onde se aprende a desaprender os medos, os preconceitos e as certezas absolutas.

No fundo, mais uma vez se verifica que todo o texto está ligado a problemas que podemos encontrar noutros textos, embora tratados diferentemente, devido ao seu diferente lugar no interior da sociedade e da história: uma noção que tem que ver com o conceito de semântica de profundidade e com a interpretação enquanto processo psicológico.

Valerá a pena recordar que um dos temas queridos de Sophia, o tema da justiça, é abordado no conto A floresta a propósito do abuso do poder, algo análogo à atitude da Rainha de Copas perante o resto do baralho. Tanto Alice como Isabel tentam inverter as regras do jogo, ajudando terceiros cujas vidas correm risco.

Por último, percebemos com estas heroínas que as coisas extraordinárias e fantásticas também são verdadeiras; que os complementos circunstanciais de lugar influenciam decisivamente a sua acção ‒ o modo de ser e estar-no-mundo do sujeito, o qual por sua vez, e fechando o círculo, se vai metamorfoseando, ganhando outros atributos e modelações, que vão fazer com que outras valências dos mesmos verbos surjam e que outros complementos circunstanciais se acrescentem aos primeiros. Tudo isto leva-nos a reflectir nestas afirmações de Lima de Freitas. Com efeito “o crescimento do lugar (orientação no espaço) e o conhecimento do momento (orientação no tempo) resultam de um único processo complexo de relacionamento, simultaneamente celeste, terrestre e cíclico (…) o lugar onde se está e o momento em que se está são aspectos da mesma realidade e cada lugar como cada momento são, não apenas um todo, mas um todo único”, que procedem de um olhar único. Por conseguinte, o jardim que acontece no interior do jardim (tal como o lindo jardim no País das Maravilhas de Alice), esse espaço terceiro que rompe, é algo de imprevisível, de surpreendente: o que se cria é o que não existe. O virtual instala-se no espaço/tempo e a orientação do sujeito vai no sentido da actualização da memória de um desejo, de uma saudade de futuro, de uma força imaginal criadora de vida, promotora de outros estados de consciência, uma Porta para o núcleo central do eu: o Si Mesmo enquanto Outro.

Sophia está agora nesse espaço/tempo de sacralidade: o Si Mesma enquanto Outra, no Panteão Nacional, nessa morada dos deuses, de interior cupular, exibindo como que uma síntese entre o céu e a terra. Sophia comunga com os deuses e percebemos isso mesmo quando conversamos com a sua obra e assistimos ao sopro de vida que inflige às suas personagens.

Bem hajas Sophia pelas maravilhas que nos deixaste…