Quando soube do falecimento do escritor, dramaturgo e poeta brasileiro Ariano Suassuna, em Recife, aos 87 anos, no último mês de julho, um vazio enorme me invadiu. Sentei-me diante do computador e me vieram palavras e lembranças aos montes. Produzi um texto eminentemente pessoal... Que saiu como um rio cheio, como um frouxo e riso, algo que não se consegue sustentar. Uma corrente cheia de peixes-histórias, que fui pescando a mão, posto que pulavam diante de mim, vivíssimos, alegres e rápidos. Não era a formalidade que falava ou mesmo o rigor jornalístico. Era somente a homenagem singela de uma aluna, na maior força e expressão que esta palavra possa assumir.

O texto foi escrito e publicado diretamente em minha página numa rede social, para os amigos e talvez, e muito, para acarinhar as minhas próprias lembranças e acalmar a tristeza que me ocupou por todo aquele dia sem cor. Por reverência a um mestre. Um grande mestre; alguém que muito me influenciou. Aqui está o escrito, que partilho com os leitores da versão portuguesa da WSI:

Eu tinha 17 anos. A tarde era linda e fomos todos caminhando em direção à oficina de cerâmica do escultor Francisco Brennand, com nosso professor. Caminhada longa, saindo do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, passando pela Praça do vizinho bairro da Várzea e atravessando o Rio Capibaribe - emblema natural da cidade do Recife, numa balsa puxada por um senhor forte e simpático, que ele cumprimentou como a quem há muito conhecia... Caminhava ao lado de nosso mestre e do colega Carlos Newton, que se transformaria quase que em seu discípulo acadêmico, posteriormente, no curso de História.

Ao trocar palavras conosco, enquanto andávamos, já iniciara a sua aula de campo... Íamos, todos jovens, estudantes, recém ingressos no curso de Arquitetura, com uma curiosidade e alegria que potencializava todos aqueles acontecimentos... Lá se vão 30 anos e eu recordo cada detalhe daquele passeio cultural: O mestre ia a passos firmes, lembro daquela época, também, da comemoração de seus 40 anos de vida literária, da qual guardo até hoje comigo o folder, retirado de um quadro de avisos da faculdade, logo após ocorrido o evento...

Ao chegarmos às oficinas, o próprio Brennand veio nos receber e passamos grande parte da tarde, naquele local mágico, a ouvir sobre cada peça, sobre cada criação. Comentários, respostas, análises, considerações, tudo feito ali, na hora, por aqueles dois senhores, especialmente para nós... Que honra! Eu, boquiaberta, encantada, estou certa que a garota que atravessou de volta a balsa, aos últimos raios de sol daquela tarde, era já outra pessoa... Abri os olhos para a arte de maneira irreversível. Não que não tivesse em mim a sensibilidade, já antes, muito dela germinada pela minha mãe, mas a contundência daquele momento me revelou belezas e despertou sentimentos até então não conhecidos... Ali estava o “educare” vivenciado... O extrair de, e não o depositar de conhecimentos... Ariano encantara-me desde as primeiras aulas, pela sabedoria e simplicidade, ao me apresentar à filosofia da beleza: Era nosso professor de Estética. Suas aulas eram grandes acontecimentos semanais. Esperadas. Era a primeira aula e ninguém se atrasava. Ao contrário, ex-alunos, de períodos mais avançados, ao passarem no corredor e virem Ariano lecionando, paravam e a assistiam. Quase sempre não havia cadeiras vazias, ao contrário... Lotação esgotada e muitos de pé. Para dar aulas espetáculo Ariano não precisava de nada além dele mesmo.

“Senhores arquitetos, senhores arquitetos...”, sempre repetia em suas aulas, chamando-nos à responsabilidade e à importância de nossa ação sobre o espaço, sobre a vida das pessoas e na criação da beleza... Rio muito ao lembrar de seu relato sobre a casa de uma irmã cujo projeto "exagerara" na luz natural, o que fazia com que ela necessitasse usar óculos escuros dentro de casa...

Dele recebi a melhor descrição do Mito da Caverna, de arquétipos e belezas de todos os tipos. Uma grande amiga arquiteta, Fátima Gundes, que havia sido aluna de Ariano alguns anos antes, disse-me certa vez que guardava uma folha de caderno com uma prova que fizera na disciplina do Mestre Ariano, com seus comentários e sua nota dez em um porta-joias... Dobrou a folha bem dobradinha e ali a colocou, porque aquele era um prêmio. Um reconhecimento e uma preciosidade...

Muitas vezes, eu pegava carona no táxi que ele tomava na Universidade e íamos conversando, que momentos importantes e ricos para minha vida! Aquelas conversas forjaram muito do meu eu cultural. Ele descia na Avenida Caxangá, no Parque de Exposição de Animais, no bairro do Cordeiro e ia caminhando até o final do terreno, já no Rio Capibaribe. Lá, tomava um barquinho para o outro lado do rio, desembarcando já pertinho de casa, na Rua do Chacon, no bairro de Casa Forte. Lembro dele falando de escritores, contando de encontros, das idiossincrasias de Guimarães Rosa, da obra de Gilberto Freyre, da beleza da poesia de João Cabral, tudo ali tão próximo... E eu tinha apenas 17 anos... Lembro de seu jeito cômico ao dizer que só se deveria falar mal de alguém “pelas costas” ... E se justificava: “Falar mal pela frente constrange a quem fala e a quem ouve” ... Que figura!

Certa vez, recordo perfeitamente, conversamos o caminho inteiro sobre as eleições que estavam por vir. Estávamos vivenciando a campanha de Miguel Arraes a governador do estado, naquela jovem Democracia. Eu, filha de militar, deslumbradíssima com aquele momento pós Ditadura, ouvi meu professor dizer: “Minha filha, se Dr. Arraes não for eleito, haverá uma insurreição popular”. E eu senti a gravidade do momento histórico que estávamos passando. Eram conversas ricas, cheias de história, em que eu, outros “caroneiros” e os motoristas de táxi éramos brindados com o privilégio da sua companhia e de suas ideias.

Em nossa formatura em Arquitetura, em janeiro de 1989, o mestre foi Paraninfo. Não só da nossa, mas de muitas outras turmas de Arquitetura, de História, de Letras, etc. Porque além de sábio, ele era, simplesmente, querido. Inspirava-nos; ajudava numa transformação, fazendo o real papel de educador. Não era um intelectual hermético, distante... Era um contador de histórias, muitas vezes baseadas nos princípios mais puros da mentira criativa... Um criador. Ali, diante de nós, falando na nossa linguagem nordestina dos assuntos os mais eruditos que se imaginasse. E tudo era assim, simples, sem distâncias ou inacessibilidades. Em seu discurso de paraninfo na cerimônia de graduação, que tenho em parte gravado, o mestre falou da transformação de Michael Jackson, da negação da raça e da origem. Falou de nossas origens nordestinas e lhes deu ênfase, numa década em que ainda pouco se tocava músicas brasileiras nas rádios. Em que o país ainda reconstruía o seu amor próprio. Estávamos no recentemente reinaugurado Teatro do Parque... Lindo! Com as pinturas de boca de cena, antes cobertas por camadas de tinta, totalmente restauradas, numa arquitetura diferente, aberta, que considerava o clima local e permitia a ventilação acontecer...

Alguns anos depois de formada, fui trabalhar com Verônica Suassuna, filha de Lucas, irmão mais velho de Ariano, então já falecido. Descobri mais uma contadora de histórias... Vi que estava na genética Suassuna... Verônica me aproximou mais ainda do mestre, pois me fez conhecer detalhes da história da família e me levou a conhecer Dona Rita, mãe de Ariano, já velhinha, morando na casa acolhedora da Rua Padre Inglês, no bairro da Boa Vista. Ao completar 80 anos o meu amigo Augusto, eu quis lhe presentear com algo muito especial e busquei a primeira edição D'a Pedra do Reino... Consegui o raro exemplar do livro, num “sebo” e coube a Verônica me auxiliar para conseguir o autógrafo do mestre. Ao receber o livro, lá estava: “Ao Augusto, oitentão como eu...” Oitentão! Que graciosa forma de se fazer próximo de seu leitor... Segundo “Verinha”, como chamo minha grande amiga até hoje, ao terminar O Romance D'a Pedra do Reino, Ariano teria levado o livro para apresentar a Dona Rita e aos irmãos, afirmando ser o “livro de sua vida”.

Escrevo tudo isso e me emociono, e muito, tamanha a importância que este grande personagem da história literária do Brasil teve em minha formação humanística. Saudade de sua vivacidade e sabedoria, meu professor... Obrigada por tudo. Por toda a imaterialidade cultivada em mim, por suas palavras ditas e escritas. Deixa o seio da família, deixa a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras e que o céu o receba em festa, cheio de anjos danados e sabidos, cantadores e contadores de história, como o senhor. Que o lindo Jesus negro de seu Auto da Compadecida o acolha e que, neste momento de reencontro, Ela lhe valha e tudo lhe seja divino, como merece. Amém.

Sua para sempre aluna,
Andréa Franklin
Bairro de Casa Forte – 23/07/2014.

“Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.” Ariano Suassuna em O Auto da Compadecida - SUASSUNA, A. O Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Livraria AGIR Editora. 1975.