De um caso de amor trata este Sir Fernando Pessoa, o relógio de bolso que esconde uma história de Maria Antónia Jardim. Um caso de amor poliédrico, plurifacetado em que o amador e a cousa amada trocam sistematicamente de papéis.

Um caso de amor a Fernando Pessoa posto que seja manifesta uma aturada investigação e profundo conhecimento da obra do autor do fingimento, das angústias existenciais em ciclo vicioso, da evocação infância enquanto panaceia do presente.

Maria Antónia Jardim entendeu que em Fernando Pessoa a vida, o amor, a amizade, a língua, a realidade do mundo, a literatura, iam ser, pela vida fora, territórios estranhos, incertezas e nevoeiros a investigar.

Na perpétua exploração dessas não-evidências estará a raiz da sua prodigiosa produção em verso e em prosa, que geraram Sir Fernando Pessoa. Esse prodígio foi completado pela invenção dos heterónimos a que Maria Antónia Jardim, em Sir Fernando Pessoa, acrescentou outros, e explicou a «justificação» da sua famosa «invenção».

Maria Antónia Jardim, sem se vergar a academismos bacocos, plasma em Sir Fernando Pessoa o relógio de bolso que esconde uma história a prodigiosa história de mais um caso de amor.

Caso de Amor que se manifesta na rebelião de um narrador que, indisciplinadamente, passa a personagem entrando e saindo da diegese ora congeminada sem olhar a ortodoxias. Aparentemente dona e senhora da narrativa Mary é, antes de mais, sua prisioneira surgindo não raro como um duplo de Pessoa. Trata-se de uma personagem caleidoscópica que entende a histeroneurastenia geracional e “pessoal” e que tenta lidar com ela por impulsos. Convenhamos então que vejo em Mary, a protagonista, mais um eventual heterónimo de Pessoa ou, porque não (?), o alter-ego da autora. Pessoa e Mary são um só na descoberta de uma interioridade densa e complexa como também na capacidade de libertação do real.

Este caso de amor coloca, como atrás disse, Fernando Pessoa no sector do vigor sexual e erige-o à categoria do “português valente”. Mesmo quando Pessoa se dirige a Mary dizendo “Minha querida, eu sou muitos ao mesmo tempo e por isso não posso dar-te o que tu queres; serias constantemente violada no teu amor, paixão e crenças; eu sou tudo de todas as maneiras, da mais angélicas às mais diabólicas…”, quando o faz, dizia, tão só assume a realidade que é a incompletude do amor físico que, como refere Bataille, só se torna completo na morte. Mas essa incompletude é aqui ultrapassada pela presença de Mary, “uma espécie de deusa”, afirma Maria Antónia Jardim, “uma deusa consciente de que a fonte espiritual e sexual é a mesma e por isso o espírito e o corpo se devem estimular e desenvolver ao longo da vida”. A líbido solta-se e a sexualidade torna-se um elemento fundamental vivida numa relação com o outro manifestando-se pela afectividade, pela ternura e pela intimidade. As relações emocionais e afectivo-sexuais reclamam o contacto físico e psíquico na manifestação do desejo, que carreia dor e prazer, plenitude e incompletude, passado e futuro, e exigem uma evolutiva capacidade de aquiescência e intelecção. É, afinal, tudo isto que humaniza a sexualidade onde, não raro, “o sujeito apaixonado, […] [se torna] escravo do objecto amado”, sem que o prazer se ausente. Creio mesmo que “le seul antidote à l’angoisse qu’engendre chez l’homme la connaissance de sa mort inéluctable, c’est la joie érotique”. É a sexualidade um dos leit motifs deste encontro de almas que conduzirá à libertação através da arte: “Quer um, quer outro, através da biblioterapia, da leitura de livros e da cineterapia, da visualização de filmes iriam conseguir perceber qual o seu destino e a sua missão”.

Mas este caso de amor é-o também de amor às artes e às letras. A presente novela – prefiro este epíteto ao de romance pelas características que o enformam – postula-se no domínio do fantástico e entra num realismo mágico que exprime o onírico de forma realista. Borges, Kafka Marquez, Cortázar são porventura modelos da autora de Sir Fernando Pessoa que usa uma técnica literária em que recria uma realidade que pode ter as suas sombras atenuando-a das fatalidades a que está sujeita, através da recorrência do maravilhoso e do fantástico por vezes surrealizante. Vestigia-se aqui a preocupação estilística e o interesse em mostrar o irreal ou estranho como algo cotidiano e comum. Não é uma expressão literária mágica: a sua finalidade é a de melhor expressar as emoções a partir de, sobretudo, uma atitude específica frente à realidade. Apesar de aparentemente descuidado da realidade, o realismo mágico partilha aqui algumas características com o realismo épico, como a intenção de dar verossimilhança intrinseca ao fantástico e ao irreal, distinguindo-se assim da atitude niilista arrogada originalmente pelas vanguardas do início do século XX. Maria Antónia Jardim assume mesmo a criação de um novo género “que corresponde à fusão do lírico com o épico, acrescentando uma mística erótica” e que denomina como “lirótico – concedendo este epíteto a uma obra imaginária de Pessoa, “um Kamasutra disfarçado de magia sexual sem tabus; recheado de encantamentos que só o reino do maravilhoso é capaz de explorar”.

Tudo afinal, um gesto de amor à obra Pessoana que a autora domina, numa cópula magnífica interartes que poderá fazer mudar o mundo, poderá ajudar a fazer cumprir Portugal – consegue-o quem põe Álvaro de Campos a ler poemas de Mensagem ainda antes de serem publicados ou mesmo antes de serem escritos!

Uma palavra ainda para o tempo contado por aquele relógio de bolso que esconde uma história: tempo recreador de realidades com ingredientes conhecidos mas resultados inesperados como afirma Guilherme de Oliveira Martins no magnífico Prefácio aposto; tempo de Alice e de Pipi das meias altas; tempo alquímico de Tarot; um tempo que faz evocar as palavras de santo Agostinho em Les Confessions: “Que é o tempo? Se ninguém me coloca a questão, eu sei; se alguém coloca a questão e se eu quero explicar, eu já não sei”; um tempo que também pode andar para trás por forma a que nos tenhamos que acostumar a viver as nossas vidas ao contrário rejuvenescendo; um tempo, enfim, marcado por um relógio de bolso que através de assumidas anacronias demanda a alquimia, a roda da vida, a magia e a espiritualidade. Relógio de bolso que escorre o tempo; relógio de Dali. Relógio que marca “Um intervalo de tempo!” porque, diz Maria Antónia Jardim, “é exactmente isso que nós somos todos. Temos a nossa hora de nascimento e temos a hora da nossa morte. Vivemos nesse intervalo, um recreio com regras muito específicas e onde nos podemos magoar. Depois, há outras horas: a hora H, aquela em que Mary agarra a oportunidade de ser feliz. Mas logo a seguir há a hora de ponta, a hora dos engarrafamentos que nos impedem de chegar ao destino marcado”.

De todas as horas, sobretudo das horas que hão-de vir dá conta Maria Antónia Jardim nesta magnífica e cuidada edição da Singular Plural, em que, em ano de centenário de Orpheu – não será despiciendo acentuar – convoca para o mundo ficcional o seu vulto maior e precipita-o, pelo realismo mágico, numa intensa realidade. Em jeito de manifesto, clama a “Hora” de repensarmos, através da arte, a mudança do ser humano, a mudança do mundo, profeticamente anunciada por Pessoa. Sir Fernando Pessoa, o relógio de bolso que esconde uma história, é obra que vale a pena, é um caso de amor que dará que falar.