Esta minha leitura de Raúl Brandão pressupõe um contexto de investigação relacionado com a hermenêutica da narrativa ricoeuriana. Tudo parte de um triângulo que possui nos seus vértices: Hermenêutica / Ética / Narrativa. Três coordenadas indissociáveis e complementares entre si. Mas, deste triângulo pode surgir uma figura, um novo conceito a que poderemos chamar NARRÉTICA, isto é, sempre que o leitor estabelece uma semântica de profundidade (conceito ricoeuriano) ao nível da narrativa, efectuando assim, avaliações, escolhas, juízos de valor, passamos imediatamente a uma narrética, pois como nos relembra Paul Ricoeur, nenhuma hermenêutica é eticamente neutra.

Assim situados, nunca é demais relembrar o que afirma Georges Gusdorf na sua obra A Palavra: “a palavra verdadeira implica um projecto do mundo, um mundo em projecto”. Também Ricoeur afirma que o nosso discurso projecta um ser e estar-no-mundo e também Raúl Brandão afirma no Prefácio às suas Memórias, que o que o leitor deve é acreditar na sinceridade com que escreveu as palavras dessas páginas, isto é, na utilização pessoal da palavra escrita que transfigura a experiência num universo de discurso.

Segundo Gusdorf, “a fala constitui a essência do mundo e a essência do homem”, e de facto Raúl Brandão fala-nos, porque nas suas Memórias é disso que se trata; de um discurso oralizante, muito coloquial, confessional e sobretudo intimista, um discurso em que cada frase nos orienta para o íntimo das coisas; para uma Gramática da Vida cuja sintaxe se faz desalinhada, entre vivos e mortos, presenças e ausências e mais do que reticências, há silêncios, pausas derradeiras! Uma pulsão de morte geradora de vida, em que os complementos circunstanciais de lugar modelam e condicionam o sujeito que acaba por fazer da sua fala: um traço de união com outras falas. Um ponto de encontro.

No prefácio às suas Memórias Raúl Brandão fala assim: “como em ti, há em mim camadas de mortos, não sei até que profundidade. Às vezes convoco-os, outras são eles, com a voz tão sumida que desatam a falar(…) há uma acção interior, a dos mortos, há uma acção exterior, a da alma(…). Destas duas acções resulta o conflito trágico da vida”.

Este é o olhar de Raúl Brandão sobre o mundo; o seu estilo, no sentido em que este pode significar a tomada de consciência da perspectiva. É esta a ética do discurso, o esforço de Raúl Brandão. O escritor surge-nos numa dialéctica entre a consciência do corpo e a consciência da alma, entre aquilo a que Paul Ricoeur denominou como dupla hermenêutica: a arqueologia e a teleologia do sujeito. Existe a consciência do homem como ser vivo, ser em marcha, sendo a fala uma marca particularmente preciosa deste movimento perpétuo e aquilo que ela pode em potência permitir: uma verdadeira revolução espiritual.

Da memória ou das memórias saltamos para um desejo de Futuro, do Ser meta-real, metafísico. Não é, pois, de estranhar que o escritor dedique o 2º livro de as Memórias a Teixeira de Pascoaes. Nesse mesmo volume pode ler-se “Querida: (…) Estamos sós nesta noite de saudade e nunca foi maior a nossa companhia, porque cada vez me sinto mais perto dos mortos (…). Compreendi que a nossa vida é principalmente a vida dos outros, (…) o importante é a comunicação de alma para alma” e depois ainda afirma o seguinte: “Muitas já desapareceram, mas estão aqui entre as minhas – as mãos de meu pai, as mãos de minha mãe, as mãos pequeninas das crianças. Não a mão material – mas as mãos espirituais. As mãos quando a gente as aperta e as têm entre as suas dão-nos o ser inteiro pelo contacto. Destruídas pela morte, fica a ternura que nos transmitiram”.

É interessante que eu, enquanto leitora, ao ler esta passagem, relembrei outras almas, uma delas foi a de Virgílio Ferreira em Invocação ao meu corpo, quando fala exactamente da importância das mãos, dos olhos que temos na ponta dos dedos e de nos relembrar sempre que para além de nós, estamos nós ainda, neste caso na memória dos gestos.

Raúl Brandão levanta os mortos do chão através das memórias que retém dos seus gestos eternos: “E mal sabes tu que, quando os teus dedos ágeis trabalhavam a meu lado, teciam ao mesmo tempo o pano grosso de casa e a nossa vida espiritual”. Este é o discurso ético, sagrado, que se liberta da lei da morte; é também esse o discurso de Raúl Brandão que se ultrapassa a si próprio para nos relembrar que o mundo não é senão isto: uma eterna convivência entre vivos e mortos; uma alteridade constante entre o visível e o oculto; um Verbo que gera luz e trevas na condição humana.

Em Raúl Brandão encontramos o desejo de comunicar; de se comunicar; ele invoca-se evocando todos os rizomas do Húmus que conheceu ao longo da sua vida; quer ser um ser em participação, com bilhete de entrada na Festa do Mundo e por isso fala, pertence ao mundo dos vivos, até porque falar, segundo Gusdorf, é sair do sono, movimentar-se em direcção ao mundo e ao outro e Raúl fala, fala por vezes como se estivesse num relato de futebol, a descrever as faltas, os golos e os passes de bola, neste caso, o esférico da morte, que toca a todos e gira no relvado da vida sempre que fazemos andar a nossa Palavra – reparem como Raúl faz andar a sua Palavra no que diz respeito à sociedade elegante do seu tempo: “Rodeiam a rainha o Figueiró e a Figueiró, e algumas relações íntimas da Figueiró e do Sabugosa; e o rei, o Ficalho, alguns velhos com ofício na corte, como o marquês de Alvito, o conde de Vila Nova de Cerveira, que, ao que se disse, morreu por ser preterido pelo conde de Sabugosa, por influência da rainha – o que é redondamente falso: D. Pedro de Noronha, vulgo o Paço de Arcos, morreu de velho (…). Uns pobres, outros mortos, outros arredados, deram lugar a esta sociedade mais mesclada, a gente de dinheiro, a gente que enriquece, alguns nobres de mistura, alguns fidalgotes feitos à última hora, e a uma certa roda que se diverte, citada nos jornais, e que constitui em toda a parte o que se chama a sociedade elegante”.

De facto, o que se joga no universo deste discurso é o próprio destino das almas. Raúl é simultaneamente o carrasco, o adulador e o árbitro, o Rapa, Tira e Põe, e provoca o leitor a participar na conversa; melhor dizendo, numa ética da conversação: “Poderão objectar-me: Então com que destino publico tantas páginas desalinhadas, de que eu próprio sou o primeiro a duvidar”? Provoca à nossa opinião, que aliás, como o próprio escritor reconhece “De resto isto de ter opiniões não é fácil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erróneas”, fazendo-nos assim entrar a nós leitores na zona mais dolorosa da narrética, a zona dubitativa: algo que pode corresponder a uma simples pergunta que se nos repõe a cada passo, quando nos miramos no espelho interno: E agora, o que é que eu faço?

Nestas Memórias, Raúl Brandão revela-se, revelando-se, auto-interpreta-se, interpretando o seu tempo, convence-nos a entrar nesse labirinto de espelhos a que dá pelo nome de máscaras e fantasmas e sobretudo convence-nos a procurarmos uma saída, nem que seja quebrando esses espelhos todos, todas essas ilusões – e para isso diz ele no último volume das Memórias: “o que é preciso é criar quanto antes novas elites (…). Não elites que nos subjuguem – mas elites que nos conduzam para a beleza e para a justiça”.

Neste início de século penso que estamos em boa hora de fazer andar a Palavra de Raúl Brandão.