A bielorrussa, filha de ex-militar soviético, Svetlana Alexievich acaba de ser premiada com o Nobel de literatura, e, com razão, é apontada como grande defraudadora de uma das maiores nações totalitárias no mundo moderno, da hipocrisia do “homem vermelho” pós-soviético. Sua linguagem, descrita como documental, tem sido amplamente alardeada em todos os meios de comunicação.

Porém bem antes de Svetlana perceber que havia algo de podre no reino, a Rússia já havia tido Leonid (e também, para não deixar de fazer um pouco de justiça, Zamiátin, e Bábel, e Bulgákhov, entre outros...).

Mas, quem foi Leonid?

O escritor Leonid Dobý‎tchin (1894-1936) viveu e morreu cercado tanto pela privação – morou durante boa parte de sua vida com sua mãe e irmãos num pequeno quarto de solteiro alugado – quanto pelo mistério envolvendo seu desaparecimento e morte no ano de 1936, após uma conturbada reunião da União dos Escritores (controlada pelo partido). Supostamente teria cometido suicídio, mas só o que se sabe concretamente é que seu corpo foi encontrado no rio Nevá. Este fato nos remete a outras mortes misteriosas de artistas da mesma (frutífera) geração, como a do famoso dramaturgo e poeta Vladimir Maiakóvski, que morreu em 1930, o qual supostamente também teria cometido suicídio; mais tarde soube-se que Lily Brik – amiga e amante do poeta, presença constante em sua casa - era agente da polícia política de Stalin e que, portanto, era possível que o autor da aterradora “Os Banhos” não tivesse tirado a própria vida, afinal. No entanto, até hoje, as versões oficiais para as mortes permanecem inalteradas.

Dob‎‎‎ýtchin estudou no Instituto Politécnico de São Petersburgo, como também o fez Sergei Einsenstein, ninguém menos que o diretor do “Encouraçado Potemkim”, e trabalhou como professor e estatístico. Sua principal obra é considerada A cidade N, um interessante romance aonde Dobýtchin se utiliza da mesma cidade criada por Nikolai Gógol no romance “Almas mortas” e que se trata de um relato feito por um garoto na Rússia pré-soviética.

Seu trabalho chegou a ser comparado ao de Isaac Bábel, Proust e Joyce, porém durante décadas ao longo do século XX ficou obscurecido, como outros grandes autores russos do mesmo período, rechaçados pelo partido e acusados de formalismo durante a era stalinista - enquanto na verdade incomodavam porque seus trabalhos brutalmente críticos e desprovidos de artifícios propagandísticos ameaçavam revelar verdades inconvenientes.

Sua obra só foi redescoberta em meados de 1990 juntamente com a de outros escritores renegados pelo estado soviético. Orlando Figes em seu estudo, publicado em 2002, “Natasha’s Dance” afirma que de acordo com o plano quinquenal de Stalin o objetivo primário do escritor soviético era conscientizar os trabalhadores através da escritura de obras de conteúdo socialista. Ou seja, o governo soviético controlava o trabalho do escritor, cuja função era falar bem do “papi” Stalin e de como a URSS era o lugar mais maravilhoso de todo o planeta. Tal objetivo, de acordo com os membros da Associação Russa de Escritores Proletários, só fora alcançado por alguns escritores, tais como Górki (que aliás, era de uma geração de autores anterior a Dobýtchin), cujas obras como “A mãe” e “Pequenos Brugueses” foram eleitas o como modelo a ser seguido. Daí a inadequação de escritores como Isaac Bábel, Ievguêni Zamiátin (cuja obra prima “Nós” é a clara inspiração de Orwell em “1984”), Mikhail Bulgákov (autor de “O Mestre e Margarida”, certamente um dos maiores romances de todo o século XX) e próprio Dob‎ýtchin, que não compartilhavam do mesmo entusiasmo pelo Partido e, ao contrário, tinham fortes dúvidas em relação ao que seria de seu país.

E é neste contexto tão fervilhante cultural e politicamente, que surge “Encontros com Liz”, de 1927, coletânea que nos ajudará a entender porque este autor, a luz da premiação de Svetlana, é tão atual quanto relevante. Esta obra reúne contos que retratam o choque entre a velha Rússia e a realidade soviética. Aurora Bernardini, no prefácio à edição brasileira, publicada pela editora Kalinka, diz: “...os contos são essencialmente recortes do cotidiano vistos como snapshots cinematográficos...”. Esta é notoriamente a característica mais marcante de seus textos que são basicamente constituídos de uma sequência de cenas a princípio independentes e que ao longo do texto dão corpo à narrativa. Ainda que cada conto da coletânea traga uma história/enredo específico, formam um conjunto coeso onde ideias, conceitos, imagens e signos são recorrentes.

Dob‎ýtchin inicia suas narrativas estabelecendo cenários, que não apenas conseguimos visualizar, mas dentro dos quais é possível mover-se sensorialmente. A descrição da ambiência e caracterização das personagens vem concomitantemente à ação desenrolada. Constantemente, durante estas cenas, nada de fato acontece, nenhuma grande ação, apenas coisas absolutamente cotidianas e às vezes até mesmo banais, como alguém passando na rua ou pessoas sentadas numa sala falando sobre nada:

O defensor público Ivánov, com uma pança e uns bigodinhos brancos, estava contando dois casos misteriosos de sua vida.

Sorókina recostada na cadeira ouvia desatenta. Olhava com indiferença e condescendência, como uma professora preguiçosa. Sobre a cadeira pendiam um calendário e Engels numa moldura de tecido vermelho.

Após este primeiro momento introdutório, há quase invariavelmente um encadeamento de cenas, pequenas sequências narrativas, com personagens diferentes em outro espaço/tempo, como se o autor tivesse em mente um roteiro passível de edição. Os cortes entre uma parte e outra são bruscos, passa-se de um “núcleo narrativo”- se é que se pode chamar assim a estas narrativas paralelas que se desenvolvem ao longo dos contos - a outro de maneira similar ao que aconteceria na edição de um filme. Há também referências auditivas: os sons, ruídos e “barulhinhos” descritos que fazem com que as cenas se tornem ainda mais palpáveis.

Pingos caíam do telhado em frente às janelas. Uma fumaça lilás-acizentada esvoaçava sobre os trens. O fogo fazia um barulhão no forno. Embaixo, dedilhando as cordas de uma balalaika, o rábkor Pétrov cantava romanças tristes à meia-voz. Nas esquinas, escurecia.

Em outros momentos, o autor parece até mesmo simular movimentos de câmera ou a montagem/edição de imagens como o que ocorre em dado momento do conto “Dorian Gray”:

Vánia. Garrafa de Cahors e Madeira, suspensas no alto e iluminado por pequenas lâmpadas, marulhavam. Vánia.

O trecho acima poderia muito bem fazer parte de um roteiro cinematográfico pela maneira em que a as imagens narradas estão dispostas e o movimento insinuado entre elas, um travelling ao redor do ambiente parando de novo no ponto de partida – Vánia – ou mesmo três frames colocados em seqüência. E neste quadro a quadro, frame a frame, o autor nos conduz pelos contos e, como se através do efeito encantatório que a sala escura do cinema exerce sobre nós, nos deixamos levar pelas linhas como se cada uma delas fosse matéria audiovisual.

Além desse fator de encadeamento muito eficaz, que prende o leitor, em Encontros com Liz, os contos são sintéticos, repletos de lacunas. Através deste elemento estrutural, Dob‎ýtchin monta retratos do cotidiano russo pós-revolucionário: bonificações, passeatas, imagens de Lênin, Marx e Engels emolduradas em quadrinhos feito ícones ou em jornais e cartazes nas ruas, homens em marcha, coros da Internacional, entre muitas outras imagens comuns ao período. E Dobýtchin não foi apenas ousado com relação à estrutura do seu texto. Nos contos desta coletânea, por vezes, nos deparamos com situações de escassez, de pobreza e percebe-se certa desconfiança e até um certo desgosto com o novo período vivido na Rússia, a descrença de que aquele era um mundo melhor e igualitário. Isso certamente deve ter gerado problemas para o autor, que possivelmente levariam posteriormente ao seu “suicídio”.

Nos relatos de “Encontros com Liz e Outras histórias” nos deparamos com ensaios sobre o tédio da vida cotidiana, desilusões amorosas, partidas, tristeza, pobreza e adaptação às contradições entre a velha Rússia – a vida provinciana, a Rússia dos ícones e samovares - e a nova que estava nascendo com o regime totalitarista. O que mais impressiona, no entanto, não são os temas ou as personagens, nem as ideias arrojadas do seu autor, mas a narrativa extremamente simples e ao mesmo tempo tão vivaz, tão presente, tão intensa. É como se em vez de narrar, Dobýtchin guiasse o nosso olhar e percepção do espaço através de um filme, de outro meio que não o literário, não sei ao certo se inspirado pelo cine-olho de Dziga Vertov (que teve “O Homem com a Câmera” como expoente máximo), mas certamente dialogando com as vanguardas do cinema do século XX - o que confere à obra um alto grau de contemporaneidade.

De fato, diante de tudo o que têm-se dito sobre a mais nova Nobel de literatura, há semelhanças entre Leonid e Svetlana. Bem mais do que o lugar em que nasceram, a língua materna, as referências culturais... estes dois autores, separados pelo tempo, compartilham as mesmas feridas, a mesma dor. A autora não vive mais em seu país, provavelmente porque se vivesse terminaria nas mesmas circunstâncias que seu antecessor, de quase um século. E diante deste fato incontestável, não conseguimos fazer mais que colocar a cabeça num buraco, fingir que a literatura é o que realmente importa, e, displicentemente - porém fingindo que somos partidários dos discursos libertadores-, premiá-la. E logo, produz-se mais (e só) discurso. E presos a este ciclo, estamos sempre reféns dos mesmos vilões.