«Ahora soy un hombre realizado: planté un libro, escribí un hijo e hice un árbol».

(Agamenón Mendes)

A imaginação é a nossa ferramenta para engendrar metáforas, para dizermos as nossas histórias e assim redescrevemos quem somos, qual o nosso contexto e o que se torna significativo para nós.

Há uma transformação do mundo em imagens polisensoriais e afectivas e é por aí que o nosso imaginário pessoal se constitui. A nossa herança familiar, o nosso contexto e os nossos afectos simbólicos influenciam esse mundo de imagens e nesse mundo, como afirma Merleau-Ponty, o ser humano é reenviado para si mesmo, sendo a experiência mais radical que podemos ter: a experiência do sujeito diferente do mundo mas que não existe sem ele. Assim, o humano vai transformando o mundo em imagens e essa é a sua essência.

O ser humano é um ser criativo, desde sempre criou para inventar soluções para os problemas que ele próprio se põe. André Virel escreveu mesmo que nous sommes toujours en train de rever. Para este estudioso do imaginário, este mundo funciona alternadamente como terra de arqueologia e céu de poetas, visto que se trata de integrar, no sentido mais dinâmico do termo: tradição e revolução. Para André Virel o imaginário funciona como uma incessante recriação interior do mundo exterior e encontra-se no centro do ser, sendo a terra natal do nosso pensamento, pois nós somos essencialmente seres criativos!

E o que é a criatividade?

A atitude criativa define-se como uma capacidade de gozar e disfrutar do processo criativo, de buscar harmonia entre diferentes facetas do processo…reconfigurar a informação que se possui para obter um novo resultado nunca antes visto.

Em suma, a criatividade é um modo especial de pensar, sentir e actuar; conduzindo a um produto original, funcional ou estético.

Os arquétipos do processo criativo segundo G. Aldana

São oito os arquétiposo: viajero, crítico, bienhechor, guerrero, destructor, artista, bufón e mago. Podemos identificar Alice com o viajero dado que este nos convida a agir, sacode a nossa emoção e procede a uma busca do seu reino interior. Também a poderíamos identificar com o mago, visto ser o arquétipo que nos dota a capacidade de nos assumirmos como responsáveis nos nossos próprios processos transformativos. Para além disso, o mago é aquele que sabe respeitar e estimular as diferentes buscas que o processo criativo supõe.

No caso de Alice no País das Maravilhas, as palavras criam realidades e elas quase que convencem o leitor a acreditar que as histórias de fadas são reais: «Quando eu lia histórias de fadas, achava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou eu no meio de uma! Deviam escrever um livro sobre mim, lá isso deviam!». Pensa Alice com os seus botões.

Tal facto tem a ver com o que Michel Meyer chama de «verosimilhança do inverosímil»- the willing suspension of disbelief-, pois, segundo este autor, o discurso ficcional pode produzir a ilusão mimética ( verosimilhança) . É que a distinção entre o que é real e o que é ficcional no interior do texto encontra-se confundida pelo efeito de crença, crescente com a leitura, no mundo do texto; de tal modo que, utilizando a linguagem, Carroll distorce a realidade e faz com que seres de fantasia ganhem voz. Ex:

«O coelho logo reparou em Alice e chamou por ela, num tom zangado…Vai imediatamente a casa e traz-me um par de luvas e um leque».

Por outro lado, Alice transforma os acontecimentos e transforma-se a ela própria durante a viagem até e no jardim maravilhoso; não é só uma questão de tamanho mas de identidade como é bem exemplificado no episódio com a Senhora Lagarta:

«Receio não saber explicar-me, minha Senhora», disse Alice, «porque eu não sou eu, está a ver ?».

Transformar, um verbo cujo prefixo trans em latim, quer dizer «para lá de», remontando ao indo-europeu ter-, que continha a ideia de atravessar. Foi, de facto, o que Alice fez: atravessando níveis de realidade e criando uma supra-realidade que culmina num processo de auto-conhecimento e metamorfose de si mesmo; um crescimento no conhecimento, provando assim que o cogito se encontra no sum.

Mas como é que tudo isto se processa?

Talvez a resposta esteja contida na teoria que António Damásio expôs na obra intitulada O erro de Descartes, ao defender que as imagens são provavelmente o principal conteúdo dos nossos pensamentos. Segundo este autor, as imagens que reconstítuimos por evocação, ocorrem lado a lado com as imagens formadas segundo o estímulo surgido do exterior. Assim sendo, as imagens reconstítuidas a partir do interior do cérebro seriam menos vividas do que aquelas induzidas pelo exterior, já que, segundo Damásio, «cada objecto que excita um instinto, excita também uma emoção». Tal como o bolinho que convidava Alice a comê-lo e a ficar ansiosa com o resultado: «Comeu um bocadinho e disse ansiosamente a si própria Para onde? Para onde? com a mão bem apoiada na cabeça a ver se percebia para que lado estava a ir; e ficou muito espantada por ver que ficava do mesmo tamanho».

Esta experiência da emoção pode fazer com que muitas partes do corpo sejam levadas a um novo estado em que são introduzidas mudanças significativas que culminam em metamorfose. Neste caso, o próprio corpo será o topos simbólico de transformação, visto ele ser o palco em que as emoções se dirigem ao cérebro. Alice é disso exemplo paradigmático.

Ao longo da história, Alice aprende a desprender-se de hábitos adquiridos, a questionar-se a si mesma e ao mundo que a vai rodeando a cada instante surpresa; aprende a lidar com o inesperado e o diferente, até mesmo a interrogar a sua identidade e a própria moral. Alice projecta um mundo no seu discurso de narradora que descreve o que se passa à sua volta, mas, por outro lado, ela vai além do que lhe impõe a sua própria visão; então vê outra coisa, um alter que vai implicar um desdobramento do sujeito ao nível do olhar, um sujeito que vai agir sobre a história narrada, sobre o espaço que o envolve, um sujeito que vai querer conhecer e apropriar-se ( no sentido ricoeuriano) do que antes era «estranho».

Deste modo, Alice vai lendo os sucessivos acontecimentos e vai assim iniciando um processo de auto e hetero-compreensão. Na obra de Carroll assistimos a uma viagem dupla, externa e interna, física e psíquica ao país das maravilhas, o que corresponde a uma viagem onírica que permite um desenvolvimento da consciência relativamente a «quem sou eu?»; o problema da identidade e do desenvolvimento pessoal.

Alice não tem medo do diferente, da tão extraordinária fala dos animais ou de uma rainha de copas e torna-se numa verdadeira contadora de histórias para a sua irmã, que por sua vez vai sonhar com essas estranhas criaturas de um mundo maravilhoso.