Nas diversas situações da comunicação cotidiana, na linguagem comum, 'culpa' é entendida como responsabilidade, como 'ser responsável por', como obrigação de responder pelos atos, como uma reação causada por comportamentos. Assim temos os clássicos pedidos de desculpa que invadem e permeiam os contatos sociais e os contatos afetivos.

Culpa como responsabilidade é um conceito baseado na avaliação de quem causa o distúrbio, a infração, o crime. É a esfera jurídica, o braço da lei agindo e apontando infratores, identificando culpados, identificando responsabilidades para punir ou descriminalizar. Identificar a culpa pode ser a justificativa e explicação do que ocorreu, conseguindo ainda reparação pelos males e danos causados pelos responsáveis, ou seja, pelos culpados.

A questão da culpa, da limpeza dos erros, males e pecados é também uma questão considerada importante em diversas religiões.

Para o cristianismo já nascemos culpados pois somos fruto do pecado e, portanto, precisamos de expiação. Logo após o nascimento, os rituais de batismo existem para absolver de pecados e males, das influências nefastas das forças do mal, dos anjos caídos - Lúcifer por exemplo -, tanto quanto para marcar o pertencimento à comunidade do Cristo e então poder ser recebido por seus irmãos na fé. Nesse sentido, é quase uma renovação dos clássicos rituais de circuncisão, marcadores da presença do novo ser na comunidade. O cristianismo continua a tradição judaica ao estabelecer o batismo, pacificando pela ausência de cortes e ablações, tanto quanto ampliando a absolvição dos pecados às mulheres. Não é à toa que o nome mais conhecido das religiões cristãs seja 'católica' - religião católica -, isto é, ‘universal’. Para seus seguidores, nascer e ser batizado é ser limpo de todos os males, pecados e culpas. É também estar apto a seguir a 'boa palavra', a 'boa lei', os mandamentos, tendo assim, orientação para não errar, não se culpar, nem ser culpado.

A ideia cristã de culpa implica sempre em perdão e por isso, para o indivíduo culpado, sempre surge a ideia de perdão, do que é perdoável ou não; é a clássica associação entre culpa e perdão. Flexibilidade e frequência do que é polarizado criam ritmos repetitivos, constantes, instalando a rigidez: a toda culpa corresponde um perdão. Essa binariedade dicotomiza, fragmenta o humano, tanto quanto fragmenta a própria ideia de perdão, criando o lado bom e o lado mau. Dessa forma, a vida, lidar com essa travessia, fica comprometida, tudo fica marcado e determinado, resta não cair no lado ruim, ou se tal acontecer, resta mudar os critérios. Nesse contexto, eximir-se de culpa é apenas ser coerente, permanecendo no que é considerado bom e à depender das autoridades e convenções, o bom, às vezes, pode ser matar e destruir, como acontece nas guerras, sejam elas seculares ou guerras santas, ambientes nos quais raramente a culpa aflige seus participantes.

Na religião yorubá (africana), a ideia de pecado no sentido cristão inexiste, entretanto, outro sentido surge, mais voltado para a atitude individual do que para a ideia de punição religiosa, embora seja também despersonalizante, pois entrega a responsabilidade das ações humanas a outras forças além do próprio indivíduo (não se erra por cometer um erro específico, digamos assim, mas por ter anteriormente quebrado algum tabu e em consequência surgem diversos problemas). O que tem que ser expiado, a culpa à neutralizar, é a que decorre da não preservação dos rituais necessários, a que decorre das quebras de eho (tabus), da quebra de quizilas, quebras essas que são responsáveis, culpadas pelos fracassos, falhas e aprisionamentos. A realização de oferendas às divindades (os ebós) absolve dos erros e culpas além de proteger contra futuras tentações ou ameaças.

Na religião judaica existe o Yom Kipur, que significa Dia da Expiação. Nesse dia, conhecido também como o Dia do Perdão, as culpas são neutralizadas. É precedido de dias de penitência e muitos rituais de expiação, purificação e autoflagelação. Na antiguidade era o dia em que o Sumo Sacerdote oferecia um bode expiatório carregando os pecados de Israel. Aqui encontramos, admitida pelos próprios judeus, a questão da manipulação implícita na questão da culpa: os cabalistas consideravam esse bode expiatório um suborno a Satã, para que ele parasse suas acusações na corte celestial. Os rituais envolvem rezas e confissão de pecados, pedindo o perdão divino. É importante notar também nessa religião, a ligação entre culpa e perdão.

Crenças religiosas fundamentadas na ideia da existência de outras vidas, na ideia de reencarnação, tentam explicar os comportamentos humanos, as queixas e culpas vivenciadas, por meio da lei de causa e efeito – o karma. Nessas crenças, voltar a viver, reencarnar é ter chance de expiar pecados, de quitar dívidas, de extinguir culpas. A continuidade das reencarnações realiza o desenvolvimento espiritual. Vivenciar situações que geraram culpas, ou foram delas decorrentes, é uma oportunidade de sentir o que o outro sentia. Essa vivência gera empatia e comiseração, gera compaixão. A extensão desse pensamento, às vezes, atinge pessoas religiosas ou espiritualizadas, levando-as a perdoar assassinos, estupradores, achando que todo crime, toda maldade, se reconsiderada por quem a pratica, merece perdão. Essa é também uma maneira validada de lidar com a culpa dos outros: entendendo que a ideia de possibilitar regeneração e mudança permitirá neutralização de culpa e extinção de possível exercício de atividades que as possam desencadear.

Continuarei com o tema da culpa no próximo artigo.