O que é o novo para você? De uma coisa eu sei e aposto, o novo sempre vem e para isso precisamos compreender o tempo. Há quem acredite mais no passado, a quem busque o futuro e ainda há, quem seja atemporal. O professor Roberto Benjamin (1989) evidencia que para gente do povo, o Natal é conhecido como a Noite de Festas em referencia ao grande dia do nascimento de Jesus Cristo. Talvez seja a época em que tenhamos uma consciência coletiva em relação ao novo ano que se inicia. Novas promessas, novas atitudes, novas vontades, entre outros sonhos.

Para cada época existe um tipo de emoção no imaginário popular. Algumas tradições se desmancham dando inicio ao novo modo de compreender a tão esperada – Noite de Festas. Entretanto, o folguedo mais tipicamente natalino é o Pastoril religioso como afirma Roberto Benjamin, porque continua preso à temática de visitação dos pastores até a gruta de Belém. A beleza do folguedo está na sinergia de sua dramatização com a plateia. Há de se considerar que o Pastoril é a teatralização do presépio, por isso, sua popularidade consiste numa ligação com a igreja católica. O antropólogo Valdemar Valente discorre que foi com a ajuda de São Francisco de Assis em 1223 que o presépio passou a ser encenado.

No Brasil, os autos pastoris foram introduzidos como manifestações paralitúrgicas, de fundo catequético e assim tem conservado na maioria de suas variantes. Entre o cordão encarnado ligado ao manto de Jesus Cristo e o cordão azul relacionado ao manto de Nossa Senhora, as pastoras contagiam a todos com a delicadeza de seus bailados. O pastoril é ingênuo, mas há outros que nem tanto, é o caso do Pastoril Profano. Os autos são realizados pelas personagens existentes no referido folguedo. Em seu enredo ocorre a representação icônica do local que Jesus nasceu, mas, no caminho acontecem vários incidentes surgindo novos personagens à encenação. A riqueza do folguedo é revelada pela amabilidade e afeto na condução das jornadas em plena dramatização ao nascimento do menino Jesus. Não tem pessoa que não goste do encanto produzido pela apresentação do Pastoril.

É clara uma disputa sadia entre o cordão encarnado e o cordão azul, que faz toda diferença na condução da teatralização. Entre fitas e flores, o Pastoril transcende a Noite de Festas para um momento de ternura e doçura da chegada do Salvador. O citado folguedo é incentivado pelas professoras de Escolas e pelas catequistas da paróquia de bairros que ajudam na perpetuação dos grupos formando uma tradição em fomentar a singela e bucólica apresentação.

Os personagens são a Diana que fica no centro do tablado ou palco vestida com a saia metade vermelha e a outra metade de azul intermediando os cordões. A Mestra conduz e dirige o cordão encarnado e a Contramestra administra o cordão azul ficando na frente da fila. O Anjo que anunciou aos pastores o nascimento de Cristo tem uma função importante durante o espetáculo em ressuscitar a pastora que é assassinada. Existe o Pastor, que fala aos espectadores que o grupo chegou ao lugar que Jesus nasceu. Surge então o Velho, que é o personagem principal do Pastoril Profano por ser cômico e irreverente. A linda Borboleta que encanta com sua dança e charme é uma personagem fantástica. O momento da apresentação da Borboleta é realmente espetacular, ela passeia entre as pastoras revelando sua fineza. Há também a Jardineira e a Libertina que é tentada pelo demônio. Aparece o indesejado Diabo que tenta desviar o grupo da visitação com sua sedução. Surge também a chistosa Cigana para lançar a sorte e o destino do menino Jesus.

«Às vezes diz a sorte das Pastoras e de pessoas da plateia, na tradição de buena-dicha, para recolher dinheiro. Na versão coletada por Gustavo Barroso, no Ceará era a cigana a assassina da pastora Açucena Ele faz uma análise a partir de informações eruditas rastreando o personagem desde à tradição grega (lenda de Lâmia), rabínica e oriental, referido a tradição popular nordestina de que a cigana seria uma enviada do Rei Herodes, disfarçada, para raptar e matar o menino Jesus».

(Benjamin, 1989, p. 53).

Notamos que o pastoril traz em seu contexto uma riqueza de vestígio da Idade Média, influencias europeia, bem como fatores indígenas e africanos. Embora o folguedo, vem de folgar e brincar, o imaginário popular reproduz vestígios do passado com o presente numa adaptação de refinamento ao cotidiano da região local. Daí, temos a grandeza do Pastoril que é composto de mitologia entre o fascínio da poesia pelo nascimento do Nazareno.

Acredita-se que a essa versão da chegada do Pastoril ao Brasil tenha vindo do poeta espanhol, dramaturgo e compositor, Juan Del Encina1. Também foi por influencia do mestre de cerimônias, trovador e poeta Gil Vicente pelas suas obras ao serviço de Portugal.

O folguedo ainda traz elementos em seus adereços da magia das festas medievais. As pastoras usam diademas com fitas e flores em seus cabelos e apresentam na mão um pandeiro enfeitado que dar graça ao espetáculo. Sem falar no anjo com suas asas de plumas, parece que desceu do céu. A borboleta também carrega asas transparentes e antenas de arames numa formosura e leveza evidencia a ternura do nascimento do Messias. O pastor e o velho possuem um cajado como se saíssem do presépio ao palco.

Com isso o Pastoril é uma encenação provocante, divina e maravilhosa da dimensão da história do nascimento do menino Jesus, contada e cantada pela tradição dos irmãos Valença2 desde 1865.

Em virtude de toda graça e encanto das pastoras, quando elas chegam à adolescência passam a pertencer ao Pastoril profano criando uma permissividade para a malícia, ao mundano e a sensualidade na exibição da vaidade e sátiras ao interesse lascivo. No Pastoril profano a condução da brincadeira cabe ao Velho. Alguns autores afirmam que o Pastoril profano era realizado por moças de moral duvidosa.

Na atualidade encontramos no Recife, Pernambuco o Pastoril Profano do Velho Xaveco e do Velho Mangaba que continuam em atividade. Eles adquiriram os trejeitos do antigo Velho Faceta, Frutica e Cebola que deram inicio a essa brincadeira na capital de Mauricio de Nassau. Alguns registros dessa manifestação foram realizados pelo cineasta e pesquisador recifense Fernando Spencer com o documentário A arte de Ser profano. O apresentador jocoso da televisão brasileira (também pernambucano) o Velho Chacrinha fazia referência ao Pastoril profano com suas vestimentas exagerada e divertida nas brincadeiras com a plateia – Olha o bacalhau, quem vai querer?

A queima da Lapinha ocorre na frente das igrejas no mês de janeiro quando termina o ciclo natalino no dia de Reis. Para a folclorista e professora Cirinéa Amaral, acredita-se que Lapinha3 seja uma denominação usada pelo povo e termo Presépio seja mencionado pelas classes mais favorecidas. Talvez a nova geração do wi-fi não compreenda a riqueza dessa brincadeira natalina. No Recife há quinze anos ocorre à apresentação da obra do escritor cearense Ronaldo Correia de Brito intitulada O Baile do Menino Deus encenada no Marco Zero nas noites de festas. Mesmo que a mídia insista no Papai Noel, o Pastoril resiste no período natalino do século XXI na noite de festas. E sabem por que é noite de festas? Porque as estrelas se aproximam da terra para abrilhantar os festejos ao nascimento do menino Deus. Boas Festas!

«Boa noite meus senhores todos
Boa noite senhoras também
Somos pastoras Pastorinhas belas
Que alegremente vamos à Belém...».

Notas

1 Espanhol poeta dramático e compositor, cujo nome real era Juan de Fermoselle, considerado o fundador do teatro espanhol. Ele nasceu perto de Salamanca e estudou na Universidade de Salamanca. Ele era um membro da casa do duque de Alba, diretor musical do Papa Leão X em Roma e, depois de ser ordenado sacerdote em 1519, antes de Leon. Ele escreveu quatorze trabalhos, oito dos quais são éclogas ou poemas pastorais acompanhados de música e dança. Seus e éclogas foram as primeiras peças profanas escritas na Espanha. Ele também é considerado um mestre de canções (composição poética musical geralmente para três ou quatro vozes). Grande parte de sua poesia e música é registrada no monumental Cancioneiro de Palácio, (c.1005) da época de Isabella e Ferdinand.

2 “A família Valença ficou famosa por conta da tradicional opereta natalina O Presépio dos Irmãos Valença, encenada pela primeira vez no Recife, em 1865, pelo casal João Bernardo do Rego Valença e Dona Ana Alexandrina do Rego Valença, avós de João e Raul, no Sítio dos Valença, que fica no bairro da Madalena. A origem do Presépio é de Aracati, Ceará, e veio para o Recife por intermédio de Dona Alexandrina. Interrompidas as encenações em 1880 e 1900, João e Raul reativaram a opereta em 1910. O Presépio passou por muitas dificuldades para manter suas apresentações. Atualmente, está na sua sexta geração e é encenado restritamente para a família e amigos.”

3 “É curioso observar que nos séculos XVII e XVIII, os estudiosos não encontram referências importantes sobre o pastoril na Colônia mas já no século XIX, concordam que houve abundância dos bailes pastoris, principalmente no Nordeste e notadamente, em Pernambuco e na Bahia, com publicações de textos, a exemplo de Sylvio Romero e Pereira da Costa. Para Mário de Andrade, é curioso observar que essa dança dramática não teve uma repercussão nacional (apenas no período oitocentista o pastoril teve seu brilho e apogeu), diferente dos presépios que se tornaram tradição em todo o país, talvez, como ele afirma, por ser um fenômeno de imposição burguesa. Assim no Recife e nas outras cidades do Nordeste, em frente aos presépios ou lapinhas, as pastoras cantavam loas, tornando o presépio não só forma animada, mas dramática, ao lado da representação estática da Natividade. Fica evidente que a dramatização do tema, permitia uma fácil compreensão em torno do episódio do nascimento do Cristo. Desta forma, a cena tomava vida, com a introdução de recursos visuais e sonoros. Para Hermilo Borba Filho, essa dramatização traz a influência do auto sacramental espanhol, na sua forma literária.”