Há um tempo em que a fantasia estabelece uma aura que conforta as impurezas da razão. Um tempo onde o longe não é medido por quilômetros, onde os espaços são do tamanho de nossa imaginação e a alegria e disposição dependem simplesmente de um gesto de ternura. Contudo, os enlaces entre os costumes e a tecnologia da informação são responsáveis pelo direcionamento da personalidade. Há de se considerar que hoje existe uma interação que compõe o cotidiano das pessoas produzindo uma digitalização da vida, ou seja, a ética da estética embala os parâmetros da individualidade nas pessoas ao mesmo tempo em que determina um padrão de consumo. Conduzimos a vida a partir da sinfonia midiática. Com isso, somos induzidos a valorizar o que está nas redes sociais.

Para tanto, as incertezas de nossos convencimentos existentes na infância ajudam no caminho da formação da personalidade. Como diria Manoel de Barros, “as coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças”. A maravilhosa escritora Cecília Meireles dizia “tudo é mistério nesse reino que o homem começa a desconhecer desde que começa a abandonar”. Temos na infância a promessa do novo, o testemunho do começo. É o paraíso da imaginação onde todos os dias, são dias de recomeçar, reviver e reinventar. Já na fase adulta as incertezas de nossos convencimentos se transformam em paralogismos da web.

Os paralogismos surgem em função da natureza virtual de nossas ideias, que são diferentes de nossas sensações corporais e bastante inadequadas para compreender a racionalidade da natureza material. Na interpretação clássica, o paralogismo é um raciocínio falso com aparência de verdade, por não contar, em suas premissas, com a precisão compatível com as conclusões obtidas (Aristóteles). Distingue-se dos sofismas, por ser involuntário. Assim também, segundo Kant na dialética transcendental de sua Crítica da Razão Pura, obtemos muitas conclusões falsas por não respeitarmos os limites que separam nossas ideias (abstratas), da realidade que a epistemologia nos oferece, como a obtenção do conceito de alma a partir de nossas sensações, etc.

(Vid. o artigo)

Quando crescemos perdemos a inocência e a ingenuidade para dar lugar à poderosa razão. Pois é, na era da tecnologia da informatização digiltalizamos a vida perante as incertezas de nossos convencimentos. Você pode questionar? Isso é bom para a reconstrução das relações sociais? Talvez seja uma tendência, não temos como fugir dos enlaces entre os costumes e a tecnologia. Como não sabemos muitas vezes recomeçar, nem reinventar, ficamos estacionados nas vivências de nossos familiares repetindo as mesmas experiências ou na reprodução de experiência falaz. Apesar de configurar vazios infinitos, buscamos nas redes sociais algum consolo artificial.

Por sua vez, as crianças doam sua imaginação quando brincam e revelam nuances de seu imaginário comprometido com algum desejo imediato. E ainda que surja algum contratempo, reinventam seu dia porque a descoberta é o que movimenta o seu cotidiano.

Quem sabe algum dia, passaremos a doar nossa imaginação na construção de ideias e projetos em beneficio de uma sociedade com harmonia. Em vez de nos preocupar com a violência buscaremos interpretar as “misses ternura”, os “caçadores de arco-íris”, os “escultores de ideias”, “os soldados da alegria”, “os pintores de sonhos”, “as lanternas do bem” e “os super-humanos”.

Teve um tempo em que participei de uma pesquisa sobre os brinquedos e brincadeiras no semiárido1 pernambucano. Em um estudo de campo na cidade de Custódia, Pernambuco foi realizada entrevistas com crianças de 8 a 12 anos. Queríamos compreender quais os brinquedos e brincadeiras que ainda resistiam com a chegada da internet.

Descobrimos que as crianças uniam os costumes da região com a tecnologia. Havia espaço para a brincadeira do peão e da bola de gude, mas o computador nas lan houses movimentava a vida dessas crianças do semiárido de Pernambuco, Brasil.

As perguntas da referida pesquisa foram realizadas por uma equipe de profissionais e estudiosos de antropologia, sociologia e filosofia. Nesse sentido, a busca para compreender o universo infantil revelou que as crianças possuíam uma maneira de reinventar, reviver e renovar entre os seus costumes e a tecnologia. Fiquei maravilhada quando uma criança a ser indagada sobre o significado de uma obra de arte respondeu2 com firmeza, é o espelho. O espelho é uma obra de arte? Fiquei atônita! Quanta riqueza do imaginário, entre o reflexo de nossa imagem3 há uma obra de arte. Em meio o visível e o invisível instala-se uma obra divina que inunda nosso imaginário.

E para você, o que seria uma obra de arte?

Entre o bruto e o selvagem nos desenvolvemos a partir da doação de nosso imaginário. Quando contamos uma história, quando escrevemos um livro, quando sonhamos, quando brincamos, quando fazemos alguma atividade, quando inventamos e quando reinventamos. Para tanto, doar a nossa imaginação requer muita sensibilidade e sabedoria. Precisa-se de poesia, religiosidade e espiritualidade.

Poesia como exercício espiritual segundo o poeta mexicano Octávio Paz para conhecimento interior, aumentar a sensibilidade e modo de ver o mundo. Muito necessária diante de tanta tecnologia como um termômetro de entendimento nas relações de poder.

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica: em seu seio resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana! Como não reconhecer em cada uma dessas fórmulas o poeta que as justifica e que, ao encarná-las, lhes dá vida?

(Paz, 1982, p.15-16)

Religiosidade e espiritualidade para dar sentido à vida, para o não afastamento do sagrado. Necessitamos de uma vida cheia de sentido como afirmou o médico Viktor Frank, “o significado da vida é dar significado à vida”.4

Parece fácil doar a nossa imaginação, mas, pensando bem, é uma tarefa de muita responsabilidade e equilíbrio sem perder de vista o que nos coloca de pé que é a invenção do futuro. O informático Alan Kay afirma que “a melhor maneira de prever o futuro é inventar isso”.

Visto de um ponto de vista do presente – exatamente no momento em que lemos este texto – o futuro é uma ficção. Mesmo assim é possível discorrer a respeito dessa ficção dada a nossa experiência acumulada no correr dos anos e a nossa imaginação. A combinação dessa experiência e imaginação nos permite criar um discurso. Dependendo de como esses dois elementos são combinados, obtemos uma previsão realista e com grande possibilidade de ser realizada ou simplesmente uma obra da imaginação.

Todos os dias o sol se põem e redesenha o céu, é o mesmo sol, mas a maneira como ele se põe e desenha o céu nunca é igual. Por isso, o enlace entre o costume e a tecnologia é realizado pela imaginação. Já que estamos nos preparando para 2020, pense com carinho, de que maneira você vai doar a sua imaginação?

Por isso, meu tempo é quando, quando amanheço, quando estou, quando amo, quando sirvo... numa infinita poética, assim como dizia o “poetinha” Vinícius de Moraes:

Poética

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem.

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
— Meu tempo é quando.

Notas

1 O semiárido brasileiro ocupa uma área de 969.589 km e inclui os Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, a maior parte da Paraíba e Pernambuco, Sudeste do Piauí, Oeste de Alagoas e Sergipe, região central da Bahia e uma faixa que se estende em Minas Gerais, seguindo o Rio São Francisco, juntamente com um enclave no vale seco da região média do rio Jequitinhonha.
2 Vid. aqui. As obras de arte: então, 85,7% das crianças entrevistadas, ao serem questionadas sobre “obra de arte”, afirmam possuir uma em casa. Classificam como obra de arte: Fotos, quadros e imagens de Santos, guarda-roupa, espelho, pano de prato, aparelhos de som, água, cama, sofá, peixinhos numa garrafa pet, entre outros. Tudo que elas dão valor e acham que é importante ou essencial se torna uma obra de arte o que remete ao imaginário infantil.
3 Mais recentemente, Carlos Vidal (2005, p. 53) sintetizou a sua argumentação: ‘quando separamos os nossos atos de uma finalidade e objetivo imediatos, assumimos o infinito por dimensão’. A desmaterialização simbólica e conceitual da arte caminha lado a lado com a sua expansão: tanto o espaço da vida cotidiana como o número de tematizações possíveis em torno do conceito de arte se tornam, ao menos na aparência, infinitos. A arte contemporânea é uma ontologia de si mesma.
4 Viktor Frankl era um psicólogo austríaco conhecido por seu sistema de psicoterapia conhecido como Logoterapia. Como ele explicou em seu livro Man’s Search for Meaning, muitas das idéias-chave nasceram de seu tempo em campos de concentração nazistas. Ele observou como seus companheiros de prisão lidavam com as atrocidades nazistas; essas observações formaram a base para suas teorias. Frankl sugeriu que uma “vontade de sentido” existe em todos nós e afeta nosso comportamento e saúde mental. Ter isso significa que o que realmente queremos na vida é dar um sentido ao que estamos fazendo e experimentando. Se não o fizermos, provavelmente começaremos a apresentar sintomas de depressão, ansiedade e neurose. Ao encontrar significado, podemos funcionar plenamente como pessoas e lidar com o que a vida nos trouxer. Vid. aqui.