Bastaria pensar no drama em gente pessoano para captar a carga erótica que a heteronímia encripta. Ser plural e sentir tudo de todas as maneiras, ser do tamanho dos sonhos, corresponde a uma gramática da fantasia em que o sujeito é capaz de se desdobrar, multiplicar, fingir tão completamente, que pode tornar-se Outros e Outras e assim poder corresponder a múltiplos desejos, fantasias, de qualquer complemento indirecto!

Note-se a hipérbole, o excesso exacerbado no poema Epithalamium:

XXI

( …)

Seu prazer, até mais não poder!
Sim, deixa que a noite vele suas repetidas
Cópulas no escuro, até o intuito mesmo, ardente,
Gastar-se e turbar, vindo o sono aos doridos corpos...

Com uma genialidade e uma psicologia onírica ímpar, Fernando Pessoa apresenta-nos o Universo como um Sonho de um Sonhador infinito:

O Universo é o Sonho de um Sonhador Infinito.

  1. Não conhecemos senão as nossas sensações. O universo é pois um simples conceito nosso.

  2. O universo porém - ao contrário de e em contraste com, as nossas fantasias e os nossos sonhos - revela, ao ser examinado, que tem uma ordem, que é regido por regras sem excepção a que chamamos leis.

  3. À parte isso, o universo, ou grande parte dele, é um «conceito» comum a todos os que são constituídos como nós: isto é, é um conceito do espírito humano.

  4. O universo é considerado objectivo, real - por isso e pela própria constituição dos nossos sentidos.

  5. Como objectivo, o universo é pois o conceito de um espírito infinito, único que pode sonhar de modo a criar. O universo é o sonho de um sonhador infinito e omnipotente. Como cada um de nós, ao vê-lo, ouvi-lo, etc., cria o universo, esse espírito infinito existe em todos nós.

  6. Como cada um de nós é parte do universo, esse espírito infinito, ao mesmo tempo que existe em nós, cria-nos a nós. Somos distintos e indistintos dele.

(Fernando Pessoa, «Textos Filosóficos»)

Sendo Fernando Pessoa o Príncipe dos Desdobramentos e o Rei da Heteronímia (Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos); decerto se sentiria como “ peixe na água” no hipertexto onírico que é Macau, nesta “ ostra /espelho” ou “ “Mar / espelho”, como era conhecida no antigamente. Um Oriente, que aliás, ele próprio desfolhou no belo poema do seu heterónimo, Álvaro de Campos, do qual transcrevemos este excerto:

Vem noite antiquíssima

Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de
Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente, ( …)

Fernando António Nogueira Pessoa manifestou desde cedo uma atracção e interesse especiais pelos temas ocultos.

No seu poema The Circle ( “O círculo”- assinado por uma das suas personalidades literárias inglesas, Alexander Search), afirma profeticamente que o seu “ pensamento está condenado / ao símbolo e à analogia”( Pessoa, 1995):

Tracei um círculo por sobre a terra
Era uma estranha, mística forma (…)
Julguei que o círculo encerrasse inteiro
Em calma a violência do mistério.
E assim, em cabalístico jeito,
Ali tracei um círculo curioso;
O círculo traçado era imperfeito,
Embora, em sua forma, cuidadoso.
Profundamente, da magia, ao falhar,
Lição tirei que m e fez suspirar.

É um poema surpreendente porque se percebe o significado profundo da mandala: o círculo mágico que re-liga o cosmos ao eu mais íntimo. Todavia, não nos esqueçamos que a nossa primeira mandala é a astrológica com a sua linguagem sagrada. Fernando Pessoa percebia e falava com à vontade da sua magia, hermeticamente e esotericamente, como podemos verificar através do seu Ensaio sobre a Iniciação (Centeno, 1978, p66).

O Adepto, se conseguir a unidade entre a consciência e a consciência de todas as coisas, se conseguir transformá-la numa inconsciência ( ou inconsciência de si próprio) que é consciente, repete dentro de si o Acto Divino que é a conversão da consciência plural de Deus em indivíduos.

Este é o fim último de qualquer mandala astrológica: perceber o nosso tema natal, o nosso céu de nascimento, de onde vimos e para onde vamos nesta existência. Todos começamos o nosso caminho iniciático atravessando o nosso Sol, a nossa Lua e todos os planetas do Zodíaco, com todos os seus respectivos regentes esotéricos.

O significado real da iniciação é que este mundo visível em que vivemos é um símbolo e uma sombra, que esta vida que conhecemos através dos sentidos é uma morte e um sono, ou, por outras palavras, que o que vemos é uma ilusão. A iniciação é o dissipar- um dissipar gradual e parcial-dessa ilusão, Impõe-se o quebrar dos espelhos e o sair do labirinto da saudade do que é ilusório. Há que fechar portas para abrir outras portas. E como diz Pessoa ( cit. Anes, 2004, p.123), “…quem tiver as chaves herméticas, em qualquer forma de um ritual encontrará sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras”.

Todos os seus heterónimos são, conscientemente ou não, a sua própria forma de afirmação e a sua incessante procura do utópico, da diferença.