Ontem, 14 de julho de 2020, foi data comemorativa do centenário do mestre, professor, folclorista, pesquisador incansável da alma do povo, do folclore e dos costumes e crenças de Pernambuco, do nordeste e do Brasil. Natural do município de Bom Jardim, Souto Maior foi um menino amante da natureza e dos passarinhos. Utilizou o cenário interiorano de Pernambuco como laboratório de observações para construir suas curiosidades em relação ao cotidiano das pessoas. Buscou inspiração na natureza e no pôr do sol. Era durante o entardecer que sua inspiração aflorava para compor os registros de suas observações. Sob a proteção Divina, buscou em cada minúcia das falas, dos jeitos, dos nomes das pessoas, da culinária, do comportamento das pessoas o seu objeto de estudo de suas pesquisas. Para consolidar seus estudos fez a união com a tecnologia de ponta, foi detentor de vários aparelhos tecnológicos. Não concebia suas pesquisas do folclore sem o uso da tecnologia, pois disse ele certa vez, quando o homem pisou na lua colocou o pé direito para dar sorte.

Os tipos de crenças, como remédios populares, orações que o povo reza, palavrões, maneiras de chamar o sexo, questões que abordam o universo feminino e masculino, tudo isso intrigava seus desejos de registrar os costumes do povo nordestino e brasileiro.

Para tanto descobri sua magnitude quando por volta 1997 fiz um teste e passei para ingressar na Fundação Joaquim Nabuco como estagiária. Conheci o universo público de modo incrível a partir da passagem da máquina de escrever para o computador. Claro que conheci a sorte também. Conviver com pessoa do bem, que faz o bem, pensa o bem e quer o bem é de muita sorte, vocês não acham?

Pois é, Dr. Souto passou a ser o meu Mestre, Tutor e Guru. Passava as tardes conversando com ele, quando podia, é claro. Sempre amigo e com uma alma jovem falava das cantoras antigas e da nova geração. Tinha uma coleção de fita cassete que ia desde Dalva de Oliveira, Dolores Duran entre Sade, B.B King entre outros. Pense num homem do futuro com pé no passado. Tinham dias que eu pegava uma revista Seleções (quem lembra?) para dasafiá-lo com perguntas. E pasmem, Dr. Souto não errava uma.

Dr. Souto tinha muita paciência. Na sua sala tinha um cabeça da la ursa , livros numa estante, revistas e várias micromonografias.

As micromonografias eram a menina dos olhos de Dr. Souto. Era um projeto pra lá de bom que satisfaziam as pesquisas da garotada, as curiosidades dos alunos e os desejos dos curiosos. As micros, como ele se referia, eram pequenos textos de 4 a 6 laudas escritos por folcloristas e estudiosos do folclore e da cultura popular que passavam por um crivo de uma comissão de pesquisadores para serem publicadas e distribuídas nas bibliotecas do nordeste, do Brasil e do Mundo. Eram datadas pelo mês e ano.

Alguns títulos foram realizados pelo próprio Mário Souto Maior como O folclore do negro, Três estórias de Deus quando fez o mundo, Mel de engenho, Agosto/desgosto, Contadores de estórias, Santeiros, imaginários, O Recife: a riqueza de seu folclore, Sogras: comes e bebes, Os Folhetos: provas incontestes da popularidade de Frei Damião no Nordeste, A dureza vocabular do ferro, Gilberto Freyre e o folclore, Cachaça etc e tal, Estudo etno-lingüístico da palavra 'camarada', Coco: sua importância na cozinha do Nordeste, Brinquedos e jogos nordestinos. Contribuição ao estudo da lúdica regional: Um depoimento, Cantigas de ninar: origens remota, Por que o ano é bissexto, Algumas considerações em torno do folclore, Curiosos remédios populares do nordeste, Moça, casamento & orações, Os bichos na linguagem popular, entre outras com a parceria de vários pesquisadores.

Sua disposição em pesquisar o que temos de melhor era tanta, que esquecia do tempo. Sempre parava na hora do pôr do sol. O céu de meu pai como diz seu filho Jan Souto Maior, eu digo, o céu de Dr. Souto, é o momento de reflexão e inspiração.

Certa vez ele me emprestou um livro com muito cuidado e cautela, se eu não me engano foi um livro sobre personalidades nordestinas. Levei para casa por um final de semana, mas na segunda-feira fiz questão de devolver o tão falado livro. Pois bem. Estava em casa quando recebi uma ligação. Era Dr. Souto perguntando sobre o referido livro. Expliquei que tinha devolvido, mas ele não lembrava. Fiquei tão nervosa que passei o final de semana procurando o bendito livro. Quando cheguei na Fundação Joaquim Nabuco fui direto falar com Dr. Souto , e ele disse sorrindo: minha filha, o livro tinha caído atrás da estante, me pediu desculpas e culpou a estante (risos).

Bem, farei aqui uma homenagem para Dr. Souto de agradecimento pela sua incansável coragem de pesquisar a alma do povo. E do privilégio em ter sido sua estagiária.

Agradecer é pouco. Dr. Souto depositou confiança para que eu fosse dar continuidade ao seu trabalho. Isto para mim foi o melhor presente que ganhei na minha vida. Dr. Souto acreditou em mim. Lembro muito bem, que Zé Fernando da Comissão Pernambucana de Folclore juntamente com o meu querido professor Roberto Benjamin, me pediu com muito carinho para que eu ficasse no lugar de Dr. Souto.

Pense no desespero. Fiquei muito nervosa e aceitei. Aprendi muito na Fundação Joaquim Nabuco no Centro de Estudos Folclóricos Mário Souto Maior. Certa vez, fui chamada para uma reunião em outro órgão público, quando eu cheguei, encontrei várias senhoras e elas me olharam com espanto. Uma mais audaciosa falou, você é muito nova. Eu, sem saber como apareceu esse pensamento, disse: não me vejam como uma pessoa nova e sim como uma novidade! Assim, cai na graça dessa senhoras e fiquei na reunião. Confesso que ficava muito apavorada, mas são coisas da vida e das convivências.

Dr. Souto gostava muito de ajudar as pessoas. Eu posso dizer a vocês que aprendi com Dr. Souto a ter coragem, a servir, a ter paciência e compaixão. Não há riqueza maior do que você poder enxergar no outro os valores de um ser humano. Dr. Souto mostrava o mundo pela coisas do cotidiano.

Ele gostava de contar os carros que passavam nas ruas nas tardes dos finais de semana, contava também as bicicletas. Outra atitude que me encantava era que ele no natal organizava os envelopes para colocar dinheiro. Genros, noras, filhos e netos ganhavam esse envelope com dinheiro. A família era algo primordial para Dr. Souto.

Em suas idéias era persistente, ganhou prêmios, foi entrevistado por Jô Soares, e por muitos estudantes de colégios de Pernambuco. Fazia questão de atender a todos com muito carinho e atenção.

Durante o período de estágio, fizemos a quatro mãos o Dicionário de Folclore para Estudantes baseado no Dicionário de Folclore de Câmara Cascudo. Para realizar as estrofes tive que convocar minhas duas filhas para analisarem os verbetes. O livro foi pensado para ajudar os alunos nas tarefas da escola.

Então, o que dizer de Dr. Souto. Ele fez e faz parte da minha vida. Dr. Souto foi e é um ser humano de muita luz. Com humildade e humor me conduziu para vida e para o folclore. Seus trabalhos, pesquisas e livros são tão importantes porque foram feitos e pensado para o povo. Ela não só me mostrou os estudos do folclore como me mostrou os valores de ser humano.

Por isso, em todo entardecer, em todo pôr do sol, lembro Dr. Souto. O céu de dr. Souto é um céu de esperança de um mundo com mais amor e compaixão.

Obrigada Dr. Souto. Muito obrigada.