Há algo intrigante e inusitado na posição do Portugal oficial para com Eduardo Lourenço: o consenso que se gerou à volta das suas ideias e o reconhecimento virtualmente unânime do seu altíssimo mérito intelectual. É algo tão inusitado que gera alguma perplexidade. Dizia Antero de Quental:

Cada vez sinto mais o falso da minha posição nesta terra lusitana. Não me entendo com homens e cousas: apenas com o céu e os montes; mas isto não é suficiente.

Noutra ocasião, perguntava impaciente: “Mas, ex.mo senhor, será possível viver sem ideias? Esta é a grande questão”. Mostrando o seu desdém cáustico pelo Portugal oficial, e descontando eu a sua injustiça para com os poetas, Alexandre Herculano desabafava: “Aqui o estadista nasce como nasce o poeta; precede a escola; dispensa-a até”. Tudo isto foi conhecido e vivido por um dos nossos maiores intelectuais do século XX, António Sérgio. Dizia ele em 1932:

Todas as desgraças que nos caíram em cima foram o justo castigo de não havermos sabido, pelos meios pacíficos e constitucionais, obrigar ao juízo os nossos homens públicos – pessoas que nasceram com notáveis dotes para serem propagandistas de sentimentos políticos, mas já menos capazes para realizarem ideias (as quais eles, aliás, não tiveram nunca).

Em Portugal, os intelectuais que anos mais tarde iremos admirar foram em geral ignorados ou insultados enquanto vivos. Raramente foram discutidos seriamente e com ponderação; quando muito, foram tolerados como os excêntricos da república da mediocridade bem-pensante. Os mais afortunados procuraram o reconhecimento no estrangeiro, e só muito poucos conseguiram que tal reconhecimento se filtrasse intramuros. Mas nem sequer o reconhecimento estrangeiro foi sempre auspicioso. Que o digam os “estrangeirados” do final do século XVII e do século XVIII que tiveram de enfrentar os muitos Index Librorum Prohibitorum – uns formais, outros informais – que foram existindo ao longo dos séculos até hoje.

Os nomes que hoje admiramos tiveram vidas bem difíceis. Eis alguns: Alexandre de Gusmão (brasileiro de nascimento), Avelar Brotero, Luís António Verney, Francisco Xavier de Oliveira (Cavaleiro de Oliveira), António Nunes Ribeiro Sanches, Jacob de Castro Sarmento. Não por acaso, muitos deles morreram no estrangeiro. Mais perto de nós, outro grande intelectual, Jaime Cortesão, teve de passar pelo exílio, pelo silenciamento e pela prisão antes de ser agraciado, se bem que, como quase sempre, a título póstumo.

Em face disto, é intrigante que Eduardo Lourenço, grande intelectual que ele inequivocamente é, tenha conseguido em vida tão extraordinário consenso acerca do seu mérito. Uma possível resposta é que Portugal mudou muito depois da noite da ditadura e, sobretudo, depois da Revolução do 25 de Abril de 1974. É hoje uma sociedade democrática, talvez mais culta, que, por se sentir devolvida à Europa, dá mais atenção ao mérito dos seus filhos (o mesmo não se podendo dizer das filhas, como se viu no caso de Maria de Lourdes Pintasilgo, que nem exéquias de Estado mereceu). Este argumento tem alguma validade. Basta ter presente que, depois da Revolução, quando Eduardo Lourenço veio a Coimbra, muitos de nós, que o conhecíamos das Heterodoxias, queríamos que ele assumisse uma cátedra de filosofia na Faculdade de Letras. Tratava-se de um departamento muito reacionário, povoado de monárquicos e fascistas, embora com algumas excepções. A mais sonora e eloquente era a do saudoso Vítor Matos, meu querido amigo, que morreria pouco depois num trágico acidente de viação quando viajava para Salamanca onde ia comprar livros há muito em falta no departamento. Iam com ele dois jovens assistentes muito promissores, Rui Raimundo, que também morreu no acidente, e Tito Cardoso e Cunha, que ficou em estado de coma e foi depois professor na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade da Beira Interior. O argumento dos catedráticos contra o convite a EL, convite que ele muito provavelmente não aceitaria, era que não tinha doutoramento, uma capitis diminutio fatal. Um argumento que causaria o menor dos abalos a EL, se é que não era um elogio por vir donde vinha.

O argumento das mudanças havidas na sociedade portuguesa não explica cabalmente o enigma de EL. Para isso, seria preciso que um tratamento semelhante tivesse sido dado a outros intelectuais, e tal não é o caso. Pelo contrário, o consenso a respeito de EL brilha pela sua excepcionalidade. É necessário procurar outras razões. Sugiro três: o consenso da sedução, a sedução da grandeza trágica, e a sedução do consenso.

Quanto à primeira, EL era uma figura única pela sua simplicidade e modéstia, pela afabilidade com que dialogava sem nunca polarizar. Dava mesmo a sensação de concordar com quem discordava dele, buscando sempre pontes para depois, claro, levar a água ao seu moinho. Esta razão combinada com a sua quase inesgotável capacidade para participar em eventos públicos, congressos e seminários não terá sido a razão principal, mas certamente ajudou a desarmar muitos dos que estariam dispostos a discordar publicamente dele.

A segunda razão é a sedução da grandeza trágica. Num momento em que Portugal perdia o império e se conformava com um lugar na geral do teatro da Europa, ainda sem saber se era só para assistir ao espectáculo ou para participar num papel de humilde figurante, EL dizia aos portugueses que eles não só eram europeus como tinham sido sempre europeus e, aliás, dos mais genuínos e antigos na sua forma geopolítica. O problema de Portugal não era a pequenez, era a grandeza inconsciente, não plenamente assumida, era o ter conseguido historicamente ir muito além daquilo que seria de esperar de um país do seu tamanho e com os seus recursos. Esta desproporção resultava num labirinto de incompreensões e exageros, tanto no plano externo, como no plano interno. No plano externo, Portugal fora visto pelos outros (e via-se a si mesmo) como um europeu relutante, o que não lhe permitira fruir da centralidade política e cultural que a Europa granjeara nos últimos séculos. No plano interno, a desproporção tanto causara euforia triunfalista, como miserabilismo derrotista, a primeira, monopólio dos intelectuais e políticos de direita, o segundo, monopólio de intelectuais e políticos de esquerda. Para EL esta desproporção não era o problema, era a solução desde que assumida...com proporção. Sendo um homem de esquerda, EL posicionava-se acima tanto do campo triunfalista, como do campo derrotista. Assumia-se como o solícito e paternal terapeuta. Nenhum dos campos se revia plenamente nele, mas todos eventualmente procuraram instrumentalizá-lo. Só que EL não era presa fácil. Em sua ironia, erudição e incessante problematizar, EL sabia medir exactamente até onde podia ir. Quem o quis instrumentalizar acabou instrumentalizado por ele.

A terceira razão para o enigma do consenso é a mais decisiva, a sedução do consenso. De que Portugal e de que portugueses falava EL tão sedutora como convincentemente? EL não era dado a detalhes e especificações, mas é evidente que o Portugal de que ele falava era uma entidade muito selectiva. Os portugueses do bairro da Cova da Moura ou do Bairro da Jamaica não vivem no Portugal de EL nem são os portugueses imaginados por EL. Estes portugueses, aqui nascidos há duas ou mais gerações, não vivem no labirinto da saudade. Vivem no labirinto da opressão e do racismo. Têm talvez saudade das suas raízes muito longe destes bairros, raízes que nunca tiveram porque lhes foram violentamente arrancadas pelas vicissitudes da violência colonial. Acontece que o Portugal destes portugueses raramente tem voz para confrontar EL. Nem isso seria uma prioridade para eles, ocupados como estão em confrontar regularmente a brutalidade policial.

EL viveu brilhantemente o seu tempo histórico. Foi simultaneamente um produto e um produtor de uma conjuntura histórica específica. Esta conjuntura consistiu no interregno que se criou entre o fim do colonialismo histórico e a descolonização da história de Portugal, ainda por fazer. Esse interregno teve uma causa muita específica: os últimos e mais violentos protagonistas da violência colonial (as forças armadas) foram não só os libertadores do jugo fascista a que os portugueses tinham sido condenados durante 48 anos, como também contribuíram decisivamente para que a independência das ex-colónias africanas fosse a mais plena possível em relação à potência colonial, a menos desprovida de sujeições neocoloniais. Basta recordar – caso histórico único – que as colónias portuguesas, sem excepção, adoptaram, depois da independência, o ideário mais distante dos interesses da Europa colonizadora – o socialismo.

Nestas condições, seria difícil proceder com serenidade à descolonização do passado e do presente de Portugal. Foi este o tempo que EL viveu. Se o tema da descolonização tivesse assumido entre nós a virulência que tem hoje na França ou na Inglaterra, estou certo que EL, sempre ávido de intervenção, acabaria por se envolver e as opiniões a seu respeito se dividiriam. Mas tal não aconteceu, e foi por isso que EL pôde representar o máximo de consciência possível do eurocentrismo sem ter de se confrontar com isso. Pelo contrário, fê-lo com uma aura que fazia da decadência europeia (que tanto o impacientava) uma espécie de vingança auto-infligida por não entender bem Portugal, a nossa Jangada de Pedra. Eduardo Lourenço vai ser certamente mais polémico nos próximos anos. Quem o admira, como eu, pensa que isso é o melhor que lhe pode acontecer. Vamos discuti-lo serena e afavelmente, como afinal ele sempre esperou de nós, e será essa a melhor homenagem que lhe podemos prestar.