Os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas não são os Jogos Olímpicos Indígenas. Pode até ter causado estranhamento no início, mas com o passar dos jogos, caiu no senso comum: falava-se Jogos Mundiais dos Povos Indígenas e pronto. Pela repetição se cunhou o termo. Porém, em minha cabeça, esse estranhamento latente continuava e matutei na tentativa de compreender os motivos subjacentes de tal escolha.

Viajar no tempo, então, é preciso. Ao me voltar às origens dos Jogos Olímpicos, pude perceber que a associação natural que era feita entre Jogos Olímpicos e os Jogos Indígenas ia além do mnemônico da palavra jogos em si, por ser um evento esportivo, mas contemplava também muitas semelhanças entre os dois eventos. Percebi que, na verdade, tais semelhanças existem pois ambos os eventos dividem as características distintivas principais, a meu ver, entre os Jogos Olímpicos e todas as outras competições esportivas: a motivação para os jogos serem realizados, a configuração das cerimônias, as modalidades e a premiação.

A prática esportiva na Grécia antiga estava atrelada a um conceito bem amplo de educação grega. Em linhas gerais, a paideia grega era um grande aprendizado que passava pela ética, dança, canto, escrita e prática de diversos jogos. Afinal, o vigor físico atrelado à saúde eram necessários para defender a pólis, a cidade, tanto nas guerras quanto nos estádios, onde os jogos públicos aconteciam. O que soa familiar quando pensamos nos povos indígenas, pois, embora o sistema educacional indígena não partilhe das mesmas premissas, as crianças e jovens estão também inseridos em um contexto de proteção do território e do seu povo. Além disso, no contexto atual, um dos objetivos da realização dos Jogos dos Povos Indígenas nacionais, evento bienal desde 1996, é utilizar o esporte como uma ferramenta importante para a manutenção da cultura tradicional e para o afastamento dos indígenas do alcoolismo e das drogas, alguns dos vilões mais temidos.

Há registros de jogos fúnebres realizados na Grécia por volta do século X a.C. e, por volta do século VIII a.C., os jogos públicos já eram periódicos, tinham cunho religioso com data e local determinados e reuniam multidões, o que deve ter sido um fator primordial para o intercâmbio cultural que gerou coesão entre os povos helênicos e perpetrou as práticas esportivas para além dos estádios ou palestras. Pois, tamanha era a importância da cultura atlética que a pintura cerâmica, as esculturas, os poemas retrataram e imortalizaram atletas e seus êxitos esportivos. Se pararmos para pensar e adentrarmos a questão, a magnitude do esporte que vivemos hoje, e que é coroada pelos jogos olímpicos, nada mais é do que o impacto das obras de tais artistas reverberando em nós, como uma onda na praia. O ideário grego da beleza do corpo, advindo obviamente do esporte e da moderação das paixões humanas, é como o embrião do nosso contemporâneo culto ao esporte e ao corpo.

Isócrates (436-338 a.C.), orador grego, no discurso de título Panegírico (43-44) louva os organizadores das panegíricas, festivais atenienses onde havia competições esportivas e rituais religiosos, afirmando que esses festivais eram momentos de paz (não podia haver guerra durante as festividades). Durante tais festividades, os gregos podiam se reunir em um mesmo lugar para cultuar os deuses e também para “lembrar do parentesco em comum”, “renovar antigos e estabelecer novos traços de hospitalidade e, é claro, para exibir e contemplar proezas físicas. Com muitos séculos de diferença, encontramos o mesmo propósito nos discursos dos organizadores dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, pois o objetivo maior era o de reunir pela primeira vez em um lugar, povos originários para intercâmbio cultural e esportivo. Assim, tal como Isócrates assinalou a importância dos jogos para a integração, reafirmação e tolerância entre os gregos, o mesmo foi proposto pelos irmãos Terena, idealizadores do evento indígena.

Saltando para a modernidade, muitas outras semelhanças encontrei no meio do caminho. A primeira delas foi a cerimônia do fogo sagrado. Tanto nos Jogos Olímpicos de verão quanto nos de inverno o fogo da tocha é gerado em uma cerimônia que remeteria ao culto da deusa Hera. No sítio arqueológico de Olímpia, no meio das ruínas do templo da deusa, mulheres vestidas de sacerdotisas dançavam e cantavam ao redor do espelho côncavo, voltado para o sol colocado no meio do templo. Assim que os raios atingem o espelho em determinada angulação, a faísca é criada e a tocha é acesa e vai, de mão em mão, até o local de abertura dos jogos. Nos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, a cerimônia também foi feita ao ar livre, na Praça dos Girassóis em Palmas e também foi composta por mini rituais. Como a cerimônia não foi tão protocolar quanto se esperava, enquanto se aguardava o pôr-do-sol, cada tribo cantava e dançava naquele aglomerado multicolorido. Assim que o sol se pôs, alguns representantes de diferentes povos acenderam o fogo no chão a partir de folhas secas, gravetos e pedras, rodeados por rezas e cantos. Acendeu-se uma tocha também, mas não houve o revezamento entre as pessoas, pois somente no dia seguinte, durante a cerimônia de abertura, a grande pira da arena verde foi acesa.

Uma outra semelhança, a propósito, foi a cerimônia de abertura. Com a presença de autoridades e sob vaias e aplausos para a presidente do Brasil houve a entrada dos atletas e muitos fogos de artifício, como nos Jogos Olímpicos. Interessante notar que, como muito da programação, não se sabia o que ia acontecer naquele momento. Precavidos, alguns povos trouxeram suas bandeiras para uma entrada como nos Jogos Olímpicos, porém nada disso parecia fazer parte do show. De qualquer maneira, alguns discursos foram feitos e os povos iam entrando e sendo anunciados calorosamente por um locutor muito animado. Tendo todos os povos ingressado na arena, nada de pop stars conduzindo a festa. A filosofia “menos é mais” reinou. Houve apresentação de forró ao som de uma orquestra de sanfonas, uma música de composição da cantora Margareth Menezes, madrinha do evento e uma música cantada por um indígena, mas todos antes da entrada dos povos. O resto do show se deu só pela entrada das delegações e suas danças e cantos. Um dos pontos mais emocionantes foi o hino nacional cantado em duas línguas e ao som de violão e chocalhos. Cantado pela indígena Djuena, o hino foi dividido em duas partes, sendo a primeira na língua Ticuna, do povo homônimo e a segunda em português. Ao término da cerimônia, o ascendimento do fogo sagrado foi feito através de flechas lançadas por homens e mulheres, quase um déjà vu dos Jogos Olímpicos de 1992 em Barcelona.

Já em relação às modalidades, dos Jogos Olímpicos da Grécia antiga, o arremesso de lança e a corrida são modalidades integrantes dos Jogos Olímpicos e dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas. O arco e flecha, a canoagem, a natação e o futebol foram as outras modalidades que já estamos acostumados a ver nas competições olímpicas. Interessante notar que, com exceção do futebol, as outras modalidades fazem parte da vida cotidiana indígena e nós, os brancos, os encaramos como esporte apenas.

Sem corrida no quadro de medalhas, sem hino e sem hasteamento de bandeiras durante a premiação. Praxes dos Jogos Olímpicos ausentes entre os indígenas. Entretanto, havia medalhas, que, com exceção das finais do futebol, foram entregues aos campeões das outras modalidades na cerimônia de encerramento. Diferentemente dos Jogos Olímpicos, todos os participantes ganharam medalhas que se distinguiam daquelas que os vencedores receberam por serem completamente de um metal que imitava a prata e por possuir a cor verde no cordão. Enquanto as medalhas olímpicas são de metais nobres, as medalhas indígenas foram feitas de madeira com o centro de cores distintas, seguindo as cores dos metais nobres tradicionais: ouro, prata e bronze. Ao redor desse centro metalizado, havia um arco de capim dourado, uma espécie de capim típica da região do Tocantins e, inversamente proporcional ao cordão da medalha, havia um pequeno vidro com água do rio Tocantins.

Não podemos só viver do lado romântico dos Jogos. Apesar de a idealização dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas ter advindo de um sonho e apesar de possuir um ideal integrador e de disseminação da cultura indígena em nível internacional, não podemos deixar de lado o fator comercial, determinante para a realização de um evento de tal porte. Tal como acontece em uma escala absurdamente maior nos Jogos Olímpicos, a comercialização dos jogos também se fez presente pela feira de artesanato e outros espaços de consumo, mas nada comparado ao escancarado apelo comercial dos Jogos Olímpicos hoje em dia. Entretanto, como esta foi a primeira edição, não se pode afirmar quais rumos serão dados aos Jogos na próxima edição, em 2017 no Canadá. Por enquanto, apesar das semelhanças que encontrei na minha reflexão, os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas não são Jogos Olímpicos. E, para que continuem não o sendo, que as grandes corporações e a mercantilização do esporte apontem seus holofotes em outras direções. Embora os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas não sejam os Jogos Olímpicos de hoje, meu desejo é que eles se mantenham mais alinhados aos jogos gregos da antiguidade, no sentido de visarem o kléos dos esportistas e a união e hospitalidade entre os povos. Que uma nova chama esportiva possa queimar e iluminar os caminhos da integração dos povos originários, sem estar às custas de um ideal glorioso vazio de sentido!