Do alto destas pirâmides, 40 séculos vos contemplam.

(Napoleão Bonaparte)

Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.

(Tradição popular)

Ó nau Catarineta
Em que andei no mar
Por caminhos de ir,
Nunca de voltar!

Veio a tempestade
Perder-se do mundo,
Fez-se o céu infindo,
Fez-se o mar sem fundo
Branquinho da Fonseca.

(«O Arquipélago das Sereias», 1961)

Primeira imagem de quem chega e a última para quem parte. Imagem inscrita na memória das gentes. Na gare de Alcântara, o tríptico da Nau Catrineta (1942-45), de Almada Negreiros, olha-nos, oferecendo-nos uma narrativa simbólica da aventura dos descobrimentos, mas, mais do que isso, uma leitura simbólica da História de Portugal como país eleito e protegido pela transcendência, com um Anjo Custódio a vencer o Diabo e a fazer sobreviver a tripulação condenada pela fome e pela exaustão, tentada pelo pacto faustiano… simbólica de esperança e de confiança que desde o milagre de Ourique (Fundação), passando pelo tratado de Tordesilhas, pelo juramento da Imaculada Conceição (Refundação/Restauração) e pela vieirina História do Futuro, com todo o imaginário quinto-imperial, chegando a Fátima, com as visões de 1917, e às comemorações do duplo centenário de 1940 (com a célebre Exposição do Mundo Português). Claro que a linha do gráfico é oscilante e chega a abismos de histeria colectiva aquando do Ultimato e do fim-de-século ou de violência (regicídio e noite sangrenta de 1921).

As novas gerações, alienadas pela vertigem das novas tecnologias e pela perda de referências nacionais (embaladas num ensino condicionado pelas estatísticas das aprovações, pelo alijamento da História e das Artes nacionais, pela desmoralização dos docentes e pela indisciplina), descrentes de modelos e de futuro, empurradas para a diáspora, deixaram de ser capazes de ler esta Nau Catrineta… e sentem-se num’A Nave dos Loucos (c. 1490-1500) de boschiana memória, em cuja árvore central espreita o rosto do Diabo, sinal da crise de valores da época, obra quiçá inspirada na sátira A nave dos tolos (Stultifera Navis ou Narrenschiff) (1494), de Sebastian Brant, por onde desfilam as fraquezas humanas ao longo da viagem de um grupo de loucos para uma prometida Narragonien, mas que passa por Schlaraffenland, a terra da riqueza, antes do naufrágio final… matéria, afinal, do Elogio da loucura (1509), de Erasmo.

Após a entrada na UE, essas esperanças e confianças tradicionais têm vindo a dissolver-se, o Índice de Felicidade a baixar (89º lugar de 106 países em 2017, 95º no das mudanças entre 2004-7 e 2014-16), e a narrativa começa a ser a da decadência mais irremediável e marcada pela falta de referências identitárias nacionais. Passemo-la em revista sinteticamente.

Actualidade. Preâmbulo

De acordo com muitos especialistas, há 3 vias para destruir um país: guerra, catástrofes “naturais” e finanças. Às vezes, basta uma lei.

Dada a natureza reconhecidamente pacífica dos portugueses, as outras vias (finanças e catástrofes “naturais”) surgem, logicamente, potenciadas. Normalmente, com a corrupção associada à burocracia e à desigualdade.

Vamos, pois, observar com brevidade, as 2 vias potenciadas: finanças e catástrofes. Agora analisamos a primeira.

De Portugal a saque: «Uma história de pasmar»

Generalidades & representações

Em Final de Setembro de 2017, a dívida pública portuguesa atingiu um record, segundo o Banco de Portugal: 250,38 mil milhões de euros. É a 3ª maior da EU. Idem em % do PIB. Os juros correspondentes também: são os segundos mais elevados entre as 4 economias mais endividadas dos países desenvolvidos. Regista, aliás, aumentos impressionantes em pouco tempo. A qualidade de vida dos cidadãos está a abaixo da média europeia.

A evolução da dívida regista contínua subida, apenas com variação de grau, como revela o gráfico da Pordata:

Dezembro de 2010 : 158.736 mil milhões de €€ (boletim 04/2013)
Dezembro de 2011 : 170.904 (boletim 04/2013)
Dezembro de 2012 : 187.900 (boletim 04/2013)
Dezembro de 2013 : 196.304 (boletim 04/2014)
Dezembro de 2014 : 208.195 (boletim 01/2016)
Dezembro de 2015 : 218.093 (boletim 03/2016) (v. gráfico)
Dezembro de 2016 : 223.881 (boletim 12/2016)
Setembro de 2017 : 250.380

Elaboram-se cenários até 2035. E receitas. Ou apenas a da austeridade: recomendada pelo FMI e contestada como “suicídio económico” por um dos seus ex-líderes e Nobel de economia e, depois, reconhecida em 2017 como erro pelo mesmo FMI.

Em 2011, o Barómetro da Transparency International indicava 83% dos portugueses com a percepção que a corrupção está a aumentar em Portugal e 75% considerando a ineficácia das medidas governamentais contra o fenómeno. Foi criada a TIAC- Transparência e Integridade Associação Cívica, ponto de contacto da Transparency International em Portugal. No ranking da percepção da corrupção, em 2016, Portugal estava em 29º numa lista de 176 países e no score, mantinha-se entre a posição 62 e 64 desde 2012 num total de 76 países da UE & Europa Oriental.

Os processos e os nomes apontados multiplicam-se nos media num crescendo vertiginoso: Operação Marquês, Operação Monte Branco, Lemon Brothers, Panamá Papers… elaboram-se listas de centenas e até o Sindicato dos Magistrados debate as razões de tais números.

Lá fora, também domina o princípio da incerteza (Heidelberg) e perscruta-se a sociedade do espectáculo (Lipovetsky). A controvérsia emoldura outros nomes (Goldman Sachs, os “4 Cavaleiros do Apocalipse”, p. ex.). Apontam-se casos (“Como a Goldman Sachs pôs a Grécia de joelhos em 10 anos”, p. ex.). No Parlamento Europeu, proclama-se a “fraude do sistema bancário” (Godfrey Bloom), de “fraudulenta criação de dívida”, acusa-se (Nigel Farage, Presidente do grupo EFD-Europe of Freedom and Democracy).

Há narrativas a respeito, geometrias explicativas (“golpe da pirâmide”) com protagonistas designados “os donos disto tudo” em 100 anos de poder, destaque de meios profissionais (p. ex., o militar ou o dos gestores, CEOs premiados), responsabilização de governantes, indexação do PIB à corrupção e ao desemprego. Rábulas televisivas e outras mais dramáticas e circunscritas a um banco e sua rede extensíssima e complexa: “Assalto ao Castelo”, da autoria do jornalista Pedro Coelho, com imagem de José Silva e Luís Pinto e edição de imagem de Rui Berton. Gráficos simplificados associando a burocracia à corrupção e outros com nomes e rostos do aparelho de estado, com variáveis. Vídeos explicam o sistema da dívida pública, até “para Totós”, como na colecção.

Após a crise da banca, os bancos, que competiam no aliciamento de clientes, fazem-nos agora pagar múltiplas taxas (de depósitos, de cartões, de movimentos de conta, de…), inevitáveis, pois o emprego obriga a ter conta para processar os vencimentos (destaque para a CGD)… impotentes para contrariarem essa imposição, os cidadãos pagam.

No 3º aniversário do jornal O Observador, a revista apresentava 6 rostos e intitulava-se “Como arruinar um país”.

Em 2012, José Rodrigues dos Santos ficcionou a rede e o processo de corrupção responsável pela ruína do país sob um título expressivo: A Mão do Diabo. Ficção declarando revelar “A verdade oculta sobre a crise”, “divulga[ndo] informação verdadeira” e assumindo-se como “um precioso guia para entender a crise, conhecer os seus autores e compreender o que nos reserva o futuro”.

Aponta-se como modelo o exemplo da revolução da Islândia na resolução da crise de 2008-10 (3º lugar no ranking da Felicidade/Relatório de 2017), enfrentando políticos, gestores, banca…

Eis, pois, a nossa Nau Catrineta “em caminhos de ir, nunca de voltar”…

Veio a tempestade
Perder-se do mundo,
Fez-se o céu infindo,
Fez-se o mar sem fundo
Branquinho da Fonseca.

«O Arquipélago das Sereias» (1961)

I'm not finished!
As I came in here, I heard those words:
"cradle of leadership."
Well, when the bow breaks, the cradle will fall. And it has fallen here; it has fallen.
Makers of men, creators of leaders, be careful what kind of leaders you're producin' here.

(Frank Slade, «Scent of a Woman», 1992)