Qual é a maior doença do mundo? A dúvida surgiu quando um cidadão que orientava sua equipe no conserto das telhas de uma casa, indagou-me com o referido questionamento enquanto eu passava andando pela rua, numa tarde árida da chapada do Araripe. Era um senhor de mais ou menos setenta anos que trazia mais alma do que corpo. Possuía uma estética de vida, na qual, o suor do descaso do poder consistia estampado em cada ruga que nele habitava. O seu olhar revelava uma trajetória de amargura com reflexo de dias melhores. Entretanto, sem que eu pensasse, o falado senhor, automaticamente me respondeu com veemência que era a fome. Então, fiquei a pensar, há fome em tudo que vejo. Fome no descaso do desmantelo perverso das prioridades por algumas gestões políticas, fome nos lares pelo consumo exagerado. Fome oferecida na estética das dietas, entre outras fomes. Temos hoje um holograma da fome, tanto pelo suor do desprezo por parte de alguns governantes, tanto pela ganância de quereres supérfluo.

Como pode em pleno século XXI a fome ainda ser a maior doença do mundo? Para isso, temos a FAO:

“Organização para Alimentação e Agricultura que é uma agência especializada das nações Unidas que lidera os esforços internacionais para derrotar a fome.”

A FAO trabalha com o tema da insuficiência da fome numa perspectiva internacional desde a má nutrição, desnutrição, subnutrição e da própria fome. Paralelamente a isso temos o pensamento do médico pernambucano, Josué de Castro que tinha essa preocupação com o tema da fome. Pesquisou sobre a fome endêmica e epidêmica, considerando o mapa das carências nutricionais do Brasil explicando os percalços da trajetória do monstro da fome. Digamos que da fome nasce toda tipo de mazela, dor, tortura, vícios, frieza, amargura, revolta, silêncio, pobreza, penúria entre outra escassez existente nos humanos.

Não é a toa que a fome deixa sequelas na moral e na ética da conduta das pessoas em suas relações sociais. Evidentemente que ainda há o abandono e um descompasso entre as necessidades alheias. Nossa máquina desejante (termo utilizado pelo filósofo francês Gilles Deleuze) é nutrida pelos alimentos, são eles que nos oferecem um corpo e por sua vez uma alma. A fome não deve ser vista apenas em paralaxe (paralaxe é um termo da astronomia para medir a distância dos astros dependendo do ponto do observador), não deveríamos nos preocupar com isso, mas, infelizmente o cenário da fome é a fotografia da concentração de renda e dos desinteresses por algumas gestões públicas.

Para pensar nesse assunto, ainda não apareceu algo ou alguém para cortar nó górdio da insuficiência da fome que assola o mundo. No Brasil temos a famosa campanha do sociólogo Betinho que afirmava, “A miséria é uma produção humana. Miséria e fome é um problema ético. (Betinho – ONU, 1994)”. Em nove de dezembro de 2017 foi lançado o documentário A História da fome no Brasil, dirigido por Camilo Tavares que atesta:

Com roteiro e direção de Camilo Tavares, estreia no próximo dia 9 de dezembro, no tradicional cinema Odeon, no Rio de Janeiro, Histórias da Fome no Brasil. Idealizado por Daniel de Souza, presidente da Ação da Cidadania e filho de Herbert José de Souza, o Betinho, o documentário mostra uma cronologia da fome no país – do Brasil Colônia até as políticas públicas recentes que culminaram na saída do Brasil do Mapa da Fome divulgado pela ONU, assim como o seu enfrentamento por parte da sociedade.

Essa triste realidade designa o quanto ainda somos apequenados. E, enquanto deixarmos a insensatez comandar nossas atitudes, sentiremos pena do outro e passaremos a não vislumbrar um mundo melhor. A filósofa Viviane Mosé afirma que há uma exaustão do humano. Estamos cansados do outro por não possuirmos mais cuidado no cotidiano de nossas relações sociais. Nossas condutas perderam a faísca do sentimento. Para Edgar Morin:

Nos obriga a rever formas de pensar sobre nossa sociedade, a sua cultura, as suas deficiências e misérias, tanto físicas e morais, a nossa República, o nosso presente, para o nosso futuro, e para repensar nossa política. Continua dizendo que a crise atual é, acima de tudo, uma crise de fé e confiança.

Como ainda suportar tamanha aversão com o que temos de mais remoto que é o alimento? Seria o aparecimento da agricultura um erro para nossa respeitável evolução ética? Veja esse artigo que encontrei sobre o pior erro na história da raça humana (O advento da agricultura foi um momento decisivo para a raça humana. Pode também ter sido o nosso maior erro — elaborado por Jared Diamond em 1999):

Nós apreciamos os alimentos mais abundantes e variados, as melhores ferramentas e bens materiais, algumas das vidas mais longas e saudáveis ​​da história. A maioria de nós está a salvo de inanição e predadores. Nós obtemos nossa energia do óleo e das máquinas, não do nosso suor. Que neoludita entre nós trocaria sua vida pela de um camponês medieval, um homem das cavernas ou um macaco? Durante a maior parte de nossa história, nos apoiamos na caça e na coleta: caçávamos animais selvagens e procurávamos plantas silvestres. É uma vida que os filósofos tradicionalmente consideram desagradável, brutal e curta. Uma vez que nenhum alimento é cultivado e pouco é armazenado, não há (nesta visão) nenhum alívio da luta que começa de novo a cada dia para encontrar alimentos silvestres e evitar morrer de fome. Nossa fuga desta miséria foi facilitada apenas 10.000 anos atrás, quando em diferentes partes do mundo as pessoas começaram a domesticar plantas e animais. A revolução agrícola espalhada até hoje é quase universal e poucas tribos de caçadores-coletores sobrevivem.

Há de se considerar que a fome desencadeia uma corrente de estratégias políticas, econômicas e sociais. Vale ressaltar que temos três grandes indicadores que desembocam nos parâmetros do descaso sobre a fome. O primeiro pauta-se na lista de desinteresses que é maior do que a dos interesses. O poeta mexicano Octávio Paz diz que se “os líderes lessem poesias seriam mais sábios.” Há uma pauta nas gestões públicas que extravia todo valor da vida humana. Os líderes endeusam os programas de políticas públicas para colocarem as prioridades necessárias da vida como coadjuvantes num mundo do wi-fi. O segundo ponto está relacionado à nobilitudes, aos emergentes sociais. O despreparo na formação de líderes fornece um favorecimento nas políticas de favores, impedindo que os direitos sejam alcançados para todos. Como reivindicar algo que era para ser em primeiro lugar, que é o alimento para todos os seres humanos?

O terceiro fator está voltado a tudo que geram rotas, ou seja, ao impedimento dessas rotas em relação a distribuição de alimentos. A rota sempre foi algo que desbravou o aparecimento de cidades em sua exploração. Nesse sentido, toda rota foi importante no desenvolvimento e progresso de várias regiões do Brasil. Para o geógrafo pernambucano Manoel Correia de Andrade,

Em compensação, as guerras travadas na Europa na segunda metade do século XVIII, em que se envolveram as principais potências colonizadoras, e as revoluções sugeridas nos fins daquele século nas Antilhas – Haiti, sobretudo -, favoreceram muito a nossa indústria açucareira, dando uma fase de euforia econômica, adiando, em consequência, para início do século XIX, as lutas emancipacionistas que se deram com tanta intensidade em Pernambuco. Isto porque, ficando Portugal à margem daqueles conflitos, colocava facilmente a produção brasileira do açúcar no mercado europeu. (1) Produção de açúcar que apesar de seus altos e baixos, deu À potência colonizadora, em todo o seu período de domínio sobre o Brasil, mais renda do que a mineração do ouro.” (ANDRADE, 1973,p.82)

Quando o alimento gera uma rota vale mais do que qualquer pedra preciosa. Para mim, o alimento é a nossa pedra preciosa. É cabível de registro, argumentar a questão do espaço que para Castells, (2001, p. 435) “é tempo cristalizado.” O antropólogo indiano Ajur Appadurai fala de uma soberania sem territorialidade, ou seja, o local ainda é o ponto de partida de mudança e transformação no desenvolvimento de novas pontes para a insuficiência alimentar.

O trabalho de produzir localidades — no sentido de que localidades são mundos da vida constituídos por associações relativamente estáveis, histórias relativamente conhecidas e compartilhadas e espaços e lugares reconhecíveis e coletivamente ocupados — entra frequentemente em conflito com os projetos do Estado-nação. Em parte porque os compromissos e conexões que caracterizam a subjetividade local (por vezes erroneamente caracterizada como "primordial") fazem mais pressão, são mais contínuos e por vezes promovem maior dispersão do que o Estado-nação suporta.

(Disponível aqui)

O alimento em 3D

É sabido que o mundo é bombardeado pela dimensão da tecnologia. Então, como pensar na fome num futuro próximo recheado de tecnologias na qual a fome seria resolvida por uma impressão em 3D? Isso equivalia a uma nova aposta em um novo ser humano? Seria uma invenção para acabar ou minimizar a fome no mundo? Ou a vaidade entre a moda e a consciência ainda traz problemas éticos nas invenções humanas?

Equipe sul-coreana investiga possibilidades de impressão de alimentos em 3D Impressora 3D criada na Coreia do Sul fornece alimentos conforme a consistência escolhida pelo usuário. Há ainda a possibilidade de manipular aspectos nutritivos, interferindo, por exemplo, no processo de digestão.

(Disponível aqui)

Queremos compreender para qual lugar está indo o sentimento humano. São tantos necessitados, tanta dor no mundo, tanto descaso, tanta amargura sem compadecimento. Será mesmo que estamos aumentando a consciência em relação aos seres humanos ou atrofiado nossos sentimentos a favor de uma sociedade do espetáculo? Enquanto a fome permanecer no cenário mundial, o medo, a revolta e a dor reinarão nas almas desnutridas.

“Metade da humanidade não come e a outra não dorme, com medo da que não come.”

(Josué de Castro)

Referências

Castells, Manuel. A Sociedade em rede. VI 5ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
Castro J. Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 10a Ed. Rio de Janeiro: Antares Achiamé; 1980.
Andrade, Manuel Correia de. A terra e o homem no nordeste. 3. ed. São Paulo: Brasiliense , 1973.