Importante liderança dos movimentos populares no Brasil durante os anos de chumbo da Ditadura Militar, fala sobre sua história, a política do corpo a corpo das comunidades de base, a luta pela democracia no Brasil de ontem, hoje, e o que ela gostaria de deixar como legado.

Na década de 1970, um grupo de mulheres dos Clubes de Mães da periferia da Zona Sul de São Paulo, desencadeou um processo que ousou desafiar a ordem estabelecida pela ditadura militar tanto no plano econômico como na forma como as pessoas “à margem” compreendiam seus direitos e seu lugar na vida política do país.

Essas mulheres, em sua maioria donas de casa e esposas de operários, começaram a se dar conta de que a insuficiência do salário de seus maridos não era um problema particular, mas consequência de um processo histórico que estava em curso: o aumento do custo de vida, o arrocho salarial vinculado ao desemprego crescente.

Em 1973, esta percepção motivou-as a escrever uma carta endereçada às autoridades (dos vereadores até o presidente da República) denunciando o constante aumento de preço dos alimentos da cesta básica e a estagnação dos salários. Um mês depois, o texto, conhecido como Carta Das Mães da Periferia, seria lido pelo Deputado Freitas Nobre, líder da oposição na Câmara dos Deputados, publicado pelo jornal “O São Paulo” e transmitido nas rádios “9 de Julho” e “Radiobrás”.

Cinco anos mais tarde, em 1978, a carta se transformaria num documento com mais de 1 milhão e duzentas mil assinaturas, colhidas por todo o país. Sua força mobilizadora reuniu 20 mil pessoas, na Praça da Sé, no ato de entrega da carta às autoridades, em plena ditadura. Mas nenhum governante compareceu ao evento, e a manifestação foi duramente reprimida pelos policiais militares.

Apesar do aparente revés, o movimento das mulheres das periferias de São Paulo já havia criado uma fissura no silêncio imposto pela ditadura. E de onde o establishment menos esperava, a democracia eclodia. Esse grupo de mulheres criava uma democracia substantiva e participativa, que ia muito além dos princípios formais da democracia representativa.

Elas costumavam dizer que o movimento que construíram foi “do preço do pão ao planalto”. E que “quando saíram de casa, o espaço da rua ficou pequeno demais para elas.” Em reuniões comunitárias, elas teciam uma forma de fazer política corpo a corpo: uma política feita de forma horizontal, sem hierarquia rígida, criada e recriada cotidianamente como experiência coletiva, baseada na reciprocidade.

E enquanto engendraram o cotidiano dos movimentos de base, reconectaram e re-compreenderam seu desejo e reinventaram as possibilidades de sua feminilidade. Um processo derivado das contradições e tensões que essas mulheres experimentavam em casa, na igreja, na rua; acentuadas pela realidade de um país autoritário e machista.

Entre essas mulheres estava Irma Rossetto Passoni - que, nos idos dos anos 1970, se preparava como noviça para votos perpétuos. Irma, então militante da Igreja Católica, logo emerge como uma das vozes importantes desse movimento. E junto a outras companheiras de noviciato, iniciam um processo de esclarecimento, coalisão e construção social que inspiram avanços históricos.

Acredito que essa história, que foge aos tradicionais imaginários que temos do período (que giram em torno da guerrilha, do movimento estudantil, dos intelectuais, dos operários, dos partidos clandestinos) e de nossa própria noção de "povo”, tem muito a nos dizer sobre as preocupações que rondam o destino da democracia em nosso mundo contemporâneo, que parece caminhar para um acirramento do autoritarismo, racismo, fascismo.

Falar com Irma é também resgatar um pouco da história dessas mulheres e de seu modo de fazer política. Mulheres que ocuparam as praças públicas com coragem, alegria, celebração, e desse modo, com a energia da comunidade, fizeram oposição à força bruta da ditadura.

É também clarificar o que é isso que chamamos política de base. E adentrar na experiência desafiadora de ser uma mãe de filhos pequenos e participar da vida política do país - algo que se retroalimenta, mas também, por vezes, entra em tensão. É falar de espiritualidade e modos de construção de futuro. Irma foi para o bairro do Jardim Ângela ainda como noviça.

Em 1978 foi uma das três mulheres a se eleger Deputada Estadual por São Paulo na época com 32 mil votos. Participou da fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980. E foi uma das 23 mulheres a se eleger Deputada Federal com mais de 80 mil votos em 1982, cargo que ocupou por três mandatos, sendo deputada constituinte, escreveu a Constituição da Nova República.

Foi avaliada e recebeu a nota máxima por sua atuação pelo DIAP - Departamento Intersindical junto ao poder Legislativo - que faz o acompanhamento e avaliação das atividades dos parlamentares.

Seus sobrenomes são Rossetto e Passoni, familia italiana? Como e por que vieram da Itália para o Brasil?

Minha história de família é uma história de imigrantes. Rossetto, Slongo, Furlan, Michelin, entre outras; instalaram-se inicialmente no Rio Grande do Sul imigrando para Santa Catarina, Paraná e demais Regiões do Brasil. São parte das famílias que por volta de 1875 a 1914 trocaram sua terra natal por terras gaúchas. Vieram da Itália em condições absolutamente difíceis porque a Itália vivia uma situação de empobrecimento e o Brasil era a ‘promessa’ de receber terra e trabalho.

Esses imigrantes chegaram em navios com toda família, entre eles um dos meus bisavós: Epaminondas Rossetto. Eles iniciaram suas atividades na agricultura quando se instalaram na região sul do Brasil. O que foi muito diferente das famílias que foram para outros lugares e que enfrentaram condições muito menos favoráveis à recriação da vida do outro lado do continente. Trabalhávamos muito na roça, a música sempre foi nossa companheira. Em nossa família nós cantávamos o tempo todo. As músicas brasileiras se misturaram às músicas tradicionais da Itália e formaram nosso repertório.

A senhora cresceu com mulheres fortes?

Muito. Minha mãe construiu com meu pai tudo o que tinham. Meus pais mudaram de Concórdia (SC) para uma cidade pequena chamada Castelhano (município de Joaçaba, Santa Catarina) e anos depois voltamos para Concórdia. Em Castelhano meus pais montaram um armazém com mercadorias que oferecia vários produtos, minha mãe passou a gerenciar. Comercializávamos de tudo um pouco, equipamentos para agricultura, itens para casa, comida, entre várias outras coisas.

A senhora acha que isso acabou a influenciando?

Eu acho que sim, porque o ambiente nosso era assim na época: eu comecei a trabalhar com 7 anos. Minha mãe teve 7 filhos. Ela teve um problema de depressão pós-parto e eu cuidei da minha irmãzinha que se chamava Maria de Lurdes.

Eu tinha 10 anos, cuidava dela e todo dia a levava até a casa de minha tia para amamentá-la, minha mãe ficou com depressão por mais de um ano e meio. Foi internada em um hospital de Porto Alegre. Meu pai ia visitá-la e a grande alegria que a gente teve em casa, meus irmãos e eu, foi ouvi-lo dizer: “Encontrei a mãe de vocês rindo, brincando e cantando!”. Ouvir isso dele foi uma alegria imensa misturada com copiosas lágrimas…

O que a senhora lembra mais da sua infância?

Nasci em Concórdia, mas, como te disse antes, minha família se mudou para Castelhano, município de Joaçaba, Santa Catarina.

Meus pais instalaram a loja deles numa vila onde basicamente só tínhamos nós, alguns poucos vizinhos, a igreja e a escola. As demais famílias eram de agricultores, a maioria também vinda da Itália. Alguns deles com as marcas da guerra. Quando eu nasci, a sinalização da perseguição da guerra e do fascismo italiano também estavam presentes.

Costumo dizer que Deus não escreve certo por linhas tortas, ele as conserta e as reescreve. Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos, a senhora com certeza é uma escolhida.

Não sei se sou escolhida não (risos). Mas sei que sigo algo muito forte dentro de mim, uma fé e intuição grandes, que tem a força de um chamado. Eu acho que eu tenho de agradecer muito. Nós podemos planejar, organizar a vida, mas parece que há um fio condutor que vai nos levando por caminhos que não prevíamos. Compreender isto é descobrir nossa individualidade e a missão do porquê viemos a este mundo.

A senhora pode retornar a sua infância, na década de 1950?

As atividades durante minha infância eram: estudar, cuidar dos meus irmãos, fazer todos os afazeres de casa e trabalhar na loja. Lembro que ia fazer cobrança na região, a cavalo, sozinha nas estradas, procurando os moradores para fazerem o pagamento de suas compras na loja. Esse era o normal das mulheres: trabalhar muito, em casa, na roça, desde capinar, tratar dos porcos, vacas, da loja, cuidar dos irmãos, etc.

A vida da gente era o dia a dia de fazer toda e qualquer atividade dos adultos. Mas os momentos gostosos também eram muitos. Várias brincadeiras num rio que passava ao lado da escola, pertinho de casa. A gente se pendurava nos galhos de árvores e saltávamos no rio. Tenho memória de uma alegria muito grande até o momento da depressão da minha mãe, que gerou em todos nós um desafio e sofrimento grandes. Era uma tristeza profunda e ao mesmo tempo uma situação desafiadora porque tínhamos, eu e meu irmão mais velho que tinha 15,16 anos, e eu 12, 13 anos de idade, que resolver todos os problemas da família, cuidar da loja dos meus pais, dos meus irmãos, ir para a escola e cuidar da minha irmã recém-nascida.

Me lembro muito do momento em que superei esse processo de padecimento da minha mãe. Foi na volta dela para casa que senti que minha irmãzinha estaria protegida. A partir daquele momento, as coisas voltaram a se estruturar. Minha irmã mais velha foi para São Paulo estudar.

Meu irmão foi para Florianópolis, porque na região, na década de 1950, não havia muita estrutura para além de uma quinta série.

Morávamos em uma pequena vila. Antes de eu nascer as línguas ensinadas nas escolas eram o alemão e o italiano. Em 1938 o decreto de Getúlio Vargas passou a valer e proibiu aulas em outras línguas a não ser o português. Mas a língua portuguesa demorou muito para chegar em nossa região. Foi no fim na década de 1940 quando tivemos um primeiro professor de português, que se chamava Prof. Piagentini.

Como foi a adolescência?

Carregada de muitas responsabilidades. Não só para mim, mas para todos. O trabalho e estudos eram iniciados por volta dos 7 e 8 anos. Por volta de 1960, com 13 anos, fui estudar em um colégio de irmãs: colégio Beatíssima Virgem, conhecidas como as “damas inglesas” dedicadas a educação de jovens em São Paulo, no bairro do Brooklyn. Para vir a São Paulo utilizamos o único meio de transporte que era o trem da Sorocaba. Foram 3 dias e 3 noites até chegar na capital paulista.

No colégio tínhamos uma rotina: levantávamos às 5 horas da manhã, às 6 horas assistíamos a missa que era seguida de uma meditação e o café da manhã, em seguida preparávamos as salas de aulas, fazíamos a limpeza de toda escola para os alunos que iriam chegar, e íamos buscá-los - quando os pais não podiam trazê-los. Depois de dois anos, quando eu já frequentava a sétima série, me deram a responsabilidade de trabalhar com crianças do maternal e pré-escola, comecei a cuidar de 40 crianças!

Bem, a senhora tinha a experiência de cuidar dos seus irmãos…

Estava ainda meio sem preparo pedagógico para lidar com 40 crianças, né?! Nesse momento por exemplo, me lembro de crianças chinesas, coreanas e japonesas, cujas famílias eram expulsas de seus países e recebidas no colégio, no Brasil. Tinha um menino chamado Dewe de uma família estrangeira que veio perseguida e a escola o acolheu. E eu tinha que “me virar”, eram crianças de 5 anos que falavam japonês, inglês, etc. E eu só falava português. Esse foi um dos meus grandes dramas.

Eu adorava ser educadora, tinha que apelar para toda criatividade possível.

Como era?

Brincar com as crianças, inventar caminhos para os diálogos entre elas vindas de culturas tão diferentes, era o grande desafio. Os pais ajudavam muito. Foi um desafio imenso que me proporcionava grandes alegrias.

Quando entendi que minha ferramenta era o lazer, o brincar, o conviver, cantar e dançar, meu trabalho educativo começou a acontecer, naturalmente. Tinha muita alegria. Trabalhei também por vários anos com jovens, dava aula de matemática e fazia parte da formação humana e religiosa. As atividades iam para além das salas de aula… incluíam reflexões de textos, retiros em sítios e chácaras onde ficávamos três dias convivendo, tendo palestras, declamando poesias, propondo reflexões sobre a própria vida e realidade.

Muitos assuntos que eram difíceis ou até proibidos nos diálogos com os pais, como namoro, sexo, medos do futuro, eram debatidos e aprofundados em equipe ou no atendimento individual. E consegui dialogar muito com eles. Acho que diálogo foi uma das marcas na educação pedagógica.

Sempre procurei exercer a profissão de professora como mestre que busca fortalecer o desabrochar, as potencialidades de cada ser humano. Educar para mim é isso. Nesta época já havia me formado na Escola Normal (para formação de professores) em seguida me formei na faculdade de Pedagogia com especialidade em administração escolar.

Partilhei da vida de muitos jovens e os desafiavam a desenhar seus próprios caminhos, para não serem arrastados por outros e por consequência, não serem felizes. E de algum modo parece que aquelas mensagens foram lembradas, pelo menos por alguns deles.

Lembro de uma ocasião: depois de mais de vinte anos, estava num avião e o comandante falou com muita alegria, você foi minha professora! Outra vez chegando em Moscou, então União Soviética, fomos recebidos na Embaixada brasileira. Estávamos numa missão oficial e um jovem de 20 e poucos anos falou: Você foi minha professora e relembrou:

"Você dizia assim: ou a gente constrói o próprio caminho ou os outros vão construir por você, e você vai no arrastão, sem identidade pessoal…"

É o desafio pessoal construir o seu próprio caminho porque ninguém vai construí-lo para você! Acho que essa foi minha marca como professora no colégio, e depois quando ingressei no magistério público como concursada no Estado de São Paulo. Quando eu estudei pedagogia, tive um professor chamado Flávio, ele utilizou em suas aulas o livro cujo título era “Professores Para Quê?” Esse livro e o professor marcaram muito minha vida de educadora. Distinguia muito bem a função do professor e a função do mestre. E ser mestre para mim tinha muito a ver com a visão cristã: do mestre e de profeta.

O professor não pode ser só professor. Ele precisa ser mestre e profeta. Saber compreender a realidade e apontar o caminho para o futuro. Acho que minha vida pedagógica seguiu muito isso: entender o presente, a realidade do momento e com o olhar no futuro. O que você pode ter ou pode construir? E essa construção depende de você. Comece e faça. E faça sempre, na medida do possível com mais gente, nunca sozinho, porque sozinho você não chega lá.

Vida e aprendizagem andam juntas. A fé sem obras é morta diz São Tiago.

Por que a escolha de ser freira? Foi um processo natural por estar num colégio de freira ou a senhora sentiu um chamado diferente?

Sabe, eu serei bem honesta com você, em princípio, andei por um caminho de busca para resolver um problema educacional que meus pais me incentivaram. Meu pai dizia: “se vocês ficarem aqui, vocês não sairão do lugar”. Começou com minha irmã que veio para São Paulo antes de mim, estudar no colégio e eu vim depois. No fundo minha intenção original era de aproveitar uma oportunidade para estudar, fazer o colegial.

Evidente que nesse processo as irmãs do colégio trabalhavam com a gente também a função religiosa. Tanto que eu fui até o juniorato que é a primeira etapa de formação da vida religiosa, quando recebemos o hábito e fazemos os primeiros votos. Junto com o juniorato inter-congregacional eu cursei, em 1968, o Instituto Superior de Pastoral Catequético. Foi um momento de grandes mudanças na Igreja provocado pelo Concilio Vaticano II.

Nesse momento tínhamos o apelo de grandes documentos. Entre eles “Igreja no mundo de hoje”, Gaudium et spes: “As alegrias e as esperanças do mundo de hoje são, também, as alegrias e esperanças da igreja”. Essa nova visão da Igreja orientava à nova prática de que a fé sem obras é morta. E nos levava a compreender que a salvação eterna se inicia construindo a salvação aqui e agora, como diz o evangelho de São Mateus. E aí começamos a fazer a junção, a partir da noção de que é muito importante construir o paraíso desde já (Frei Carlos Mesters). No período de 1970-1971 - em que eu frequentei o Instituto Pastoral Catequético, o desafio era perceber a realidade e a sua relação com a fé.

Como é construir salvação na prática?

Você não salva lá na frente, você começa a salvar aqui e agora! Essa análise da missão da igreja da libertação me levou a dizer: “Bom, vou ficar no colégio fazendo o que? Vou dar aula, etc., mas aqui eu não gasto nem a sola de sapato!”.

Para mim interessava compartilhar, saber como era a vida daquelas pessoas. Fui chamada a trabalhar como secretária na sede da Regional Episcopal Sul, coordenada pelo Monsenhor Ângelo Gianola. Era da competência desta coordenação os seguintes bairros: Ipiranga, Jabaquara, Capela do Socorro, M´Boi Mirim, Campo Limpo e Vila das Belezas, eles iam desde o Ipiranga, junto a Rodovia Anchieta, até o Km 100 da BR116 em direção a Curitiba. Eram 80 paróquias. Passei a coordenar com equipes locais a formação de catequistas e organizar as comunidades a partir de um programa chamado Missão Conciliar.

Deste processo nasceram dezenas de Comunidades Eclesiais de Base, também sob orientação de cada vigário local e auxiliados por centenas de participantes. Todo trabalho era realizado de forma voluntária com muito compromisso, com amor fraterno, alegria, buscando sempre a justiça.

Isso foi depois da Conferência de 68, em Medellín?

Sim, em Medellín os bispos da América Latina criaram um documento que seguia e aplicava na América Latina os documentos do Concilio Vaticano II. Este documento, assim como centenas de outros e a Bíblia, eram instrumentos de análise e reflexão, ação, formação pessoal; o que foi construindo a visão da teologia da libertação entre nós.

A teologia da libertação era compreendida e inspirada no Novo Testamento: e como dizia Thiago em sua carta “a fé sem obras é morta”, como, aliás, você disse nas suas perguntas e é verdade.

A partir disso, o meu local de trabalho passou a ser junto a favela do Buraco Quente, Regional Episcopal Sul, perto do aeroporto de Congonhas em São Paulo. As atividades, no entanto, eram realizadas em toda a capital se estendendo a todo estado e em muitas regiões do país.

Vale a pena registar a chegada de um grupo de pessoas na Regional episcopal Sul. Vieram solicitar ao monsenhor Ângelo, apoio para comunidade de Santa Margarida, perto do Jardim Ângela. Era um grupo muito legal e preocupado em melhorar as atividades que eram desenvolvidas na pastoral. Faziam parte desde grupo: Santo Dias, Ana Dias, Senerino, Dita, Carlos, Iraci, entre muitos outros. Eram as pessoas que colaboravam com a comunidade. Eles tinham construído uma paróquia e precisavam de apoio para celebrações porque não tinha um outro padre para ajudar o Padre Luiz, vigário da paróquia na Vila Remo.

O Monsenhor Ângelo me desafiou: “Você vai pra lá”.

Marquei um dia com o Santo e a Ana, o Senerino, o Carlos e muitos outros participantes, para compreender as necessidades que eles e a comunidade tinham. A primeira demanda foi que eu falasse numa linguagem que eles entendessem. Senti firmeza da parte deles e percebi que desejavam de mim uma parceria. Até então eu morava no bairro do Brooklyn, em São Paulo, era professora de filhos da classe média e a periferia ficava distante apenas cerca de 20km, mas as diferenças eram gritantes a partir da própria linguagem. E eu tive de reaprender a falar, para poder me comunicar com eles.

A periferia “não existia” para os governos Municipal e Estadual e muito menos para o Federal. Lá faltava Tudo: escolas, creche, posto de saúde, hospital, ônibus, rede de água, esgoto, habitação, asfalto, lazer e principalmente trabalho para toda uma população recém-chegada do interior de São Paulo, Minas, Nordeste…

Dia 3 de outubro de 1973 foi realizado o primeiro encontro com a comunidade. Nessa primeira conversa logo percebi e pensei: não tenho como fazer nada aqui se eu não vier morar no bairro e construirmos juntos as soluções.

Tomei a decisão: “eu tenho de vir para cá, para fazer no dia a dia o que é necessário”. Isto incluía trabalhar para sobreviver, além de atender as necessidades de organização das comunidades em busca de soluções de seus problemas. Para atender a comunidade e organizar com eles as pastorais fui morar na comunidade.

Eram muitas as atividades a serem realizadas. Organizamos a pastoral operária, a educação popular, alfabetização a partir do método do Paulo Freire, etc. No começo dava aula de alfabetização no Jardim Ângela debaixo de uma árvore, único local disponível que a gente podia se reunir e aprender. Depois também organizamos dezenas de Clube de Mães que se reuniam todas às quintas-feiras na parte da tarde.

Um outro grupo de 40 pessoas se reunia todas às segundas-feiras, onde era feito o panejamento de como aplicar os fundamentos da igreja do Vaticano Segundo; sua relação com a Bíblia, na educação popular, na educação de mulheres, especificamente na pastoral operária e na organização sindical.

Formaram-se cerca de 30 grupos-clubes. Foi mais tarde, nesses grupos de mães, que nasceu o Movimento Contra o Custo de Vida, mais tarde chamado Movimento Contra Carestia. Movimento que em plena ditadura militar recolheu mais de um milhão e quinhentas mil assinaturas exigindo abaixo a carestia, emprego, aumento do salário e reforma agrária.

Mas esse, embora tenha tomado proporções enormes e se espalhado pelo Brasil todo, era apenas um dos movimentos sociais que participávamos e organizávamos. Por quê? Porque nessa época as pessoas da periferia vinham do interior de São Paulo, Nordeste e Minas Gerais. Eram trabalhadores rurais que, com o esvaziamento da área rural e a mecanização da terra e plantio da cana, laranja, etc, saíram - ou foram expulsos - e vieram para a periferia da cidade de São Paulo.

As famílias vinham com muita bondade no coração, com muita ousadia. Mas o desafio maior era: “onde é que eu vou morar?”.

A maioria das famílias não conseguia comprar uma casa. No início se acomodavam em pequenos barracos formando as favelas. Só que também não havia escola, nem creche, hospital, não tinha asfalto, esgoto, nem água, a periferia não tinha nenhuma infraestrutura.

Com a organização das comunidades focadas na vivência bíblica e o olhar para a realidade, as mulheres passaram a conversar nos Clubes de Mães sobre as grandes questões que as afligiam, em especial o custo de vida e o desemprego. Por exemplo: Quando eu fiz concurso público e comecei a trabalhar como professora do Estado à título precário, éramos nós, as professoras, que tínhamos a tarefa da montagem das escolas, com nossos salários. Não tinha escola, material escolar, nem merenda. Ao final do ano, as crianças também não tinham para onde irem.

Santo Dias, que também era pai de Luciana (que foi minha aluna), organizou um grupo de pessoas, que vinham de 26 bairros diferentes para reivindicar escolas para a região. Compareceram 500 pessoas na igreja da comunidade do Jardim Alfredo, junto ao Parque do Guarapiranga. Este movimento assustou o poder público. Primeiro porque na época já era proibido, pela ditadura, reunir duas ou mais pessoas. Imagine 500?! O resultado foi que cada bairro organizou uma pesquisa com um abaixo assinado com milhares de assinaturas.

Foi escolhida uma comissão que foi até a Assembleia Legislativa onde nos foi dada a orientação para irmos ao Fundo Estadual de construção Escolar - (FECE). Lá, uma engenheira chamada Mayumi, acolheu as demandas e informou que o Estado tinha dinheiro para atender as reivindicações, mas que ela precisava da ajuda da comunidade. Ela pediu para que identificássemos terrenos livres para construção das escolas.

A partir disso foi criada uma comissão em cada um dos 26 bairros para identificar o nome, a idade, o endereço de cada criança em idade escolar e também os espaços possíveis para construção de escolas. Tudo foi conquistado pela comunidade e pressionando o poder público a cumprir a obrigação do Estado.

Foi a primeira experiência vitoriosa e nos encheu de alegria e certeza de que o povo tem direito de se organizar e batalhar. A frase mais vivida era: “nosso direito vem, se não vir nosso direito o Brasil perde também”.

Foram conquistadas as 26 escolas, uma grande vitória que nos deu a certeza de que as comunidades organizadas conquistam seus direitos, sim! Um sentimento claro de pertencimento a uma nação, o que nos dava muito orgulho.

Mas não bastava só exigir. O caminho para conseguir esses direitos nos convocava para ações permanentes. Uma solução puxa a outra e de imediato exigiu nova organização. O Estado, o Governo e a Prefeitura não nos enxergavam como cidadãos. Por exemplo, um outro problema era exigência de solução em relação a necessidade de moradias populares.

Em julho de 1979 o movimento pela moradia provocou um grande enfrentamento com o governo federal e estadual por conta da ocupação de uma grande área, uma fazenda do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), no bairro do Guarapiranga, chamada fazenda ITUPU.

O exército foi até lá com um arsenal imenso: helicópteros, brucutus, cavalaria. Estávamos em 5 mil pessoas fazendo a assembleia pela moradia. Soubemos que haveria a repressão e decidimos o seguinte: “Não temos como resistir.”

Havia uma outra questão muito importante que se cruzava com a demanda por moradia - a fazenda ficava numa área que era de proteção dos mananciais, da Represa do Guarapiranga (extremo da Zona Sul da cidade de São Paulo): “Isso aqui é a represa do Guarapiranga. É onde nasce a água da represa, a água é muito importante”.

Começamos também a discutir a importância social do meio ambiente e decidimos sair. O recuo daquela ocupação foi compreendido por todos, mas a luta continuou exigindo de nós nova forma de nos organizarmos para conquista de moradias.

Mais uma Luta: O direito a ter água. A SABESP (empresa de saneamento básico da Cidade de São Paulo) detestava o movimento. Detestava! A gente juntou 40 ônibus cheios de gente e fomos lá dizer: “Nós queremos água!”. E todos os diretores sumiram! Eles diziam: “olha lá gente, lá vem o povo da Irma!”. Não era “meu povo”. Era de todo mundo.

Entre as formas de luta estavam as caravanas. Muitas foram organizadas durante vários governos, seja de Ademar de Barros, Jânio Quadros, Mário Covas, e, mais tarde Luiza Erundina, em 1988-1992.

Foi assim, também, que conquistamos hospitais, postos de saúde, transportes coletivos, construção de milhares de moradias, creches? Mais de 333 creches! A cidade de São Paulo assistiu durante anos a mobilização popular com muitas vitórias arduamente conquistadas. Era direito atrás de direito para que as comunidades tivessem as condições mínimas para viverem. A luta pelos direitos também era nossa luta por dignidade.

A moradia era essencial. A luta precisava continuar organizada sem os provocadores que sempre se infiltravam para causarem tumultos. Isto exigiu uma nova organização com cadastro dos participantes.

Com esse cadastro, fomos na Prefeitura e no Estado exigir política de moradia. Dessa maneira conseguimos um grande conjunto habitacional que começa ali na Estrada de Itapecerica, perto do supermercado Superbom.

Teve um momento que o prefeito Jânio Quadros mandou construir moradias, mas construíram habitações que a gente encostava na parede e a parede caia. Quando Mário Covas assumiu a prefeitura e em seguida a Luiza Erundina, conseguimos organizar a luta da moradia em módulos: autoconstrução (a família construiria), mutirão coletivo e/ou a empresa constrói as bases das habitações e a família completaria.

Também mobilizamos as universidades para caracterizar os melhores tipos de materiais de construção, a melhor forma de construir, garantindo que as casas, mesmo sendo pequenas, tivessem pelo menos um terreninho livre na frente. Conseguimos 5 mil casas! No Jardim Santo Eduardo também, no Embu das Artes, lá em cima, mais um conjunto habitacional.

A luta pela moradia se estende então para as zonas leste, norte, etc. Todo movimento organizado foi repercutindo e se replicando pelo país a fora. A necessidade existia. O instrumento a gente criou.

Mais tarde, quando eu já era deputada Estadual, o Estado servia uma merenda escolar vergonhosa para as crianças nas escolas. Sendo que, para muitas delas, era a única refeição que teriam durante o dia.

Era uma lavagem. “Coisas” servidas em potes de alumínio precários, sujos. O que fizemos? Quando os deputados foram tomar seu café com croissant, petit fours, frutas, etc., servimos, no lugar, a comida que eles mandavam para as crianças. É claro que eles se recusaram a comer.

Foi um escândalo. Eles ficaram loucos. Diziam que eu trazia os pobres e “maltrapilhos” para a Assembleia. Era xingamento e tentativa de desmoralização vindo de tudo quanto era lado. Lamentável que o direito à alimentação dos alunos nas escolas tem servido até hoje como mecanismo de corrupção, roubo por setores do governo.

Na época foi corrigido só em parte pela agricultura familiar que passou a oferecer durante um período o alimento comprado diretamente das mãos dos produtores locais. Esse programa de alimentação possibilitou uma ponte, uma oferta direta entre o agricultor e a comunidade escolar.

Foram oferecidos alimentos de qualidade, substituindo o alimento processado, que era similar as rações oferecidas aos animais, pelo alimento fresco: verduras, legumes, frutas para os alunos. E ao mesmo tempo fortalecia a agricultura familiar com a compra local e a diversidade de alimentos de cada região.

E isso na época da ditadura?

Plena ditadura. Anos 1970 e 1980. Mas a coisa não mudou. A necessidade das lutas por direitos básicos continuou nos anos 1990 e está de volta, nesse momento, com muita força.

A senhora ainda era freira nessa época? Por que a senhora deixou de ser freira? Foi uma decisão pessoal ou do coletivo?

Foram as duas coisas juntas. Quando eu estava para fazer votos perpétuos me perguntei: por que vou fazer votos perpétuos se isso implica ter de voltar para o Colégio? Essa era a imposição da Congregação. Pensei: “Como eu vou voltar para o colégio, se eu estou cada vez mais na realidade das comunidades que não tem apoio, não tem nada?”.

A decisão de desligamento da igreja e continuidade dos trabalhos de base com a comunidade foi coletiva e tomada em consonância com a comunidade que nos acolheu e com a Congregação que aceitou minha escolha. Além de mim, algumas outras irmãs tomaram a mesma atitude.

A Congregação, - que na época era coordenada pela Irmã Caetana - compreendeu, nos apoiou e nos ajudou no primeiro momento a alugar uma casa no bairro. Cada uma de nós conseguiu trabalho e passamos a nos autossustentar.

De todo modo, sempre houve um diálogo muito importante com a Congregação que não foi interrompido ali.

Como foi o Movimento Custo de Vida ou o Movimento Contra a Carestia? Como era?

Eu cuidava de um clube de mães, a Ana Dias cuidava de outro e assim por diante, cada uma de nós era responsável por um. Cada bairro tinha a sua estrutura. Nos clubes de mães fazíamos leituras bíblica, e cada uma ensinava a outra os ofícios que sabia: corte, costura, cozinha…

A Ana cuidava do Jardim Fujiara e eu cuidava do Santa Margarida, outra do Jardim Capela, outra do Jardim Ângela e assim por diante.

Só um parêntese, esses grupos de mulheres, ou Clubes de Mães, normalmente tinham um vínculo com a Igreja, não só com a Católica, mas a Luterana. E aos poucos foram entrando outras também. Mas não era como a lógica das igrejas monetaristas. Na época isso estava apenas começando.

Voltando.

Uma noite, estávamos lavando roupas e a Ana falou: “Olha Irma, as mulheres lá do bairro pedem pra gente escrever uma carta para o governo dizendo que a vida não dá mais! O custo de vida está muito alto e o salário pouco. Respondi: “Ok, como seria essa carta?”.

Ela e eu fizemos o primeiro rascunho:

“As mães da Periferia de São Paulo, que mais sentem a realidade da vida, vem pedir aos senhores qur (que) tomem providenc(i)a para baixar o custo de vida, porque o Brasil é uma terra tão rica e as mães choram na hora de por a panela no fogo prá fazer a comida pros filhos. Prá onde vai a carne? O feijão? O leite? Porque até agora o feijão e o arroz era comida dos pobres e agora nem os pobres podem comer mais...”.

Esse rascunho foi devolvido para o grupo de mães do Jardim Fujiara e levamos para a coordenação geral dos grupos de mães que se reuniam uma vez por mês para fazer acompanhamentos, capacitação e compartilharem as experiências vivenciadas em suas comunidades.

E de repente, todos os clubes de mães decidiram assumir a tarefa de “escrever a carta”. Mas para isso, era preciso levantar dados. No início do movimento, o governo não divulgava os índices reais da economia. Sentíamos os preços aumentando, mas não tínhamos informações - nem formação - para compreender a razão nem a proporção do aumento. Passamos a fazer uma pesquisa de preço dos itens da cesta básica. E logo percebemos que havia itens com 200% de aumento no mês!

Passamos a nos reunir com economistas e outros estudiosos, à fim de compreender o porquê daquele aumento. Passamos a compreender que os preços tinham a ver com as decisões econômicas, com a política econômica do governo.

Logo, elaborar a carta virou um processo de formação, de compreensão do porquê o custo de vida estava insustentável, dos preços exorbitantes do arroz, do feijão. Nos levou à compreensão de que aquilo era fruto de uma política econômica incapaz de enxergar e levar em consideração as necessidades do povo.

Decidimos que “um abaixo-assinado” só com as nossas assinaturas não valeria! Fomos de casa em casa recolhendo assinaturas, nós tínhamos de ter muitas assinaturas, pois, o problema não era apenas nosso, mas de todos os brasileiros.

Cada grupo de mulheres organizou as visitas. Explicávamos o que era o custo de vida, por que ele estava alto, o que era o arroxo salarial, por que havia desemprego, por que os trabalhadores foram expulsos do campo, etc. Nós sabíamos que tínhamos de reivindicar do governo uma política diferente. As condições de vida estavam insustentáveis.

O movimento começou a ganhar força e se expandir por todas as áreas de São Paulo: Zonas Sul, Leste, Oeste, Norte e, finalmente, o Centro.

Com muitas assinaturas, mostramos a carta para o jornalista Freitas Nobres, líder do MDB na Câmara Federal. Ele leu a carta em sessão. Pouco a pouco, a carta começou a tomar uma visibilidade política grande e passou a ter um caráter nacional. Nós recolhemos um milhão e duzentas mil assinaturas.

Na época era o governo militar do general, presidente João Figueiredo. Ele dizia: “Mas quem me garante que isso aqui é verdadeiro, quem me garante que vocês existem?”.

Depois, reclamavam que nós mulheres escrevíamos os nomes das pessoas para as pessoas e que, portanto, os cadastros eram falsos, sem compreender que naquele momento 25,9% da população era analfabeta, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e o que estávamos fazendo era ajudar aquelas pessoas se registarem para poderem assinar o documento.

Nossa resposta foi: “Não, não é falso, tem o número do registro das pessoas (RG)”. Esta questão desencadeia o debate político nacional: na imprensa e nos parlamentos.

“Temos sim a comprovação: um milhão e duzentas mil assinaturas para vocês respaldarem ou não”.

Ocupamos a praça da Sé em agosto de 1978. As autoridades se recusaram a nos receber. Mandaram os militares, cavalos e cachorros. Por um momento a polícia, vendo as donas de casa na linha de frente, recuaram.

Mas logo começou uma confusão - provavelmente provocada por pessoas infiltradas. Era bomba para todo lado. Dom Paulo Evaristo Arns abriu as portas da Catedral da Sé para os manifestantes. Quem não conseguiu entrar teve de sair correndo pelas ruas do centro, fugindo dos militares.

Dentro da Catedral, uma assembleia do movimento teve início. Foi definido que uma comissão fosse para Brasília tentar entregar o abaixo assinado para o General Figueiredo, no comando da presidência da república. A comissão foi a Brasília, mas não foi recebida. Mas dessa vez, o recado já estava dado.

A tentativa simbólica de entregar o abaixo assinado havia se convertido num grande movimento social nacional. O ministro Delfim Neto disse a inesquecível frase: “Não, a gente vai crescer e quando o bolo estiver grande nós vamos distribuir”. Era como justificavam o chamado “Milagre Econômico”, no começo dos anos 1970. “Se a economia crescer, depois podemos “distribuir”, mas esse pensamento, essa política econômica, foi desmascarada!

Aí entrou no movimento o Eduardo Suplicy, entre outros economistas e jornalistas da época, que nos deram todo apoio para fazer panfletos e jornais para divulgar o conceito do movimento e nos ajudavam a sustentar o debate. A própria Folha de São Paulo nos ajudou bastante. A Revista Realidade. O jornal O Movimento, e outros meios de comunicação em todo país também divulgaram.

E o Custo de Vida se tornou uma grande bandeira - uma grande tessitura -, não só das comunidades de base, mas de toda uma sociedade.

Ao mesmo tempo havia o fortalecimento das Diretas Já, da Anistia, o movimento pela Constituinte, assim veio num bojo crescendo a democracia, com a luta pelo direito ao voto direto.

O direito de representação política foi conquistado. Mas a democracia econômica ainda hoje não foi conquistada.

Acredito que, se a gente fortalecer a democracia substantiva, de pessoas que lutam por seus direitos, talvez a gente consiga solidificar a própria democracia participativa.

Como foi a transformação que essas mulheres passaram nesse período?

Olha, as mulheres chegaram do interior, elas não tinham coragem de sair da porta de casa, imagine falar em público? Era uma resistência imensa, e a gente dizia: “Hoje você vai fazer a leitura do início da reunião, vai preparar um tema e debater com a gente na outra semana”. E íamos distribuindo tarefas, desmistificando esse medo e fortalecendo a autoestima de todas. As mulheres começaram a se “auto enfrentar”, acreditando em suas capacidades e no direito de poder falar.

Enfrentaram não somente o medo pessoal, mas também a resistência dos maridos.

Começaram a enfrentar vários questionamentos, desde: "Onde é que você vai? Com quem? Por que vocês estão falando de custo de vida? Por que vocês estão falando que precisam de escolas? Por que vocês estão falando que precisam de creches e de hospitais? Quem tem que fazer isto é o governo. Quando tiver que vir estes benefícios vai acontecer”. Mas a resposta para todas essas questões era: “no dia de são nunca”.

Iniciam-se assim certos conflitos também na família. Muitas tiveram de renegociar, reinventar o casamento. E muitas delas, dialogando com os maridos, passaram a assumir o movimento. Lembro de uma companheira nossa que o marido disse para ela: “ou eu ou o movimento”. Ela respondeu: "a decisão é sua, não minha. Ou você fica comigo e com o movimento, ou com nenhum dos dois."

Ao mesmo tempo, a pastoral da família, a pastoral operária, luta pela moradia, as lutas sindicais e muitas outras, aconteciam juntos, animando a participação, criando cada vez mais a certeza de que as mudanças só aconteceriam quando o povo organizado se manifestasse.

E como a senhora virou candidata?

Em 1974 os líderes comunitários compreenderam que a participação política também era necessária. A decisão foi de apoiar candidatos a vereador e nas eleições seguintes deputados e senadores. Em 1978, 120 comunidades se juntaram e disseram: Por que não apoiar candidaturas que representassem a nossa luta? Em SP foi lançada a candidatura de Aurélio Peres para deputado federal e eu para deputada estadual. Nós dois fomos eleitos.

Claro que houve discussões. Inclusive porque eu não era representante de certos partidos que na época estavam clandestinos. Tentaram colocar outro candidato no meu lugar. As comunidades se afirmaram.

Padre Luiz, pároco da Vila Remo, juntou todo mundo e “salvou” a candidatura por achar que estava em maior sintonia com a comunidade. Foi uma candidatura belíssima onde cada um assumiu a divulgação, foi vitoriosa. A seguir fui eleita por mais três mandatos federais e também constituinte em 1988.

Como foi a sua ida para a política?

Eu acho que ela foi (pausa)… engraçado, ela foi natural. Foi uma coisa após outra, não fui eu, era de um coletivo. E esse coletivo era que dava força, orientações. A gente se mantinha, se refletia, se transformava e aprendia. Construímos um processo muito coletivo com a comunidade.

Casei com o Armelindo Passoni e tivemos dois filhos, o Paulo Thiago e depois a Moara. O Paulo ficava em desespero porque a gente saia de manhã e voltava a noite, sábado e domingo não estávamos em casa, nem eu e nem o Armelindo, meu marido. Claro que ficou para mim o peso muito grande, no sentido de: “o que o que eu faço com os filhos?”.

Eu ia para a Assembleia Legislativa e carregava a Moara num cestinho. Não tinha creche, ela ficava no departamento de saúde. Só depois de muitas negociações com a direção que conseguimos a locação de um imóvel próximo a Assembleia para todas as crianças, filhos dos funcionários e dos deputados.

A partir dessa conquista o movimento por creches cresceu; tanto nas instituições públicas, nos locais de trabalho, quanto nos bairros. Virou uma política pública. Queriam, na época, fazer creches diferentes para os filhos dos funcionários e os filhos dos deputados. Nós não deixamos - queríamos creches com as mesmas assistências para todas as crianças, juntos, com a mesma qualidade pedagógica para o desenvolvimento de todas, sem distinção.

Aquela discriminação era inaceitável! A questão de creche também tem a dimensão que a Assembleia Legislativa era tomada de homens, feita e organizada por e para homens.

A senhora sempre cuidou de filhos. Quando criança dos seus irmãos, depois de outros filhos quando a senhora foi professora, nas comunidades como catequista e orientadora de catequese também. A senhora acha que depois de ser mãe alterou alguma coisa quanto mulher? Ou foi algo que veio normalmente porque a senhora já cuidava de crianças? Ter os próprios filhos te deu mais forças?

Essa força vem de onde?

Eu vou te responder com a pergunta da Moara e do Paulo: “Mãe quando você vai ficar em casa? Por que você faz isso?”.

Eu falava: “Olha filhos, vocês só terão escola na hora que a gente batalhar por escola para todo mundo. Saúde na hora que a gente batalhar por saúde para todo mundo. Todo o bem que criaremos é para vocês também”.

Foi essa a minha força. Era a força da comunidade. E também a força da necessidade dos meus filhos e dos filhos das outras mulheres. A força de ter certeza de que estávamos lutando por justiça social e pela possibilidade de futuro não apenas para a comunidade, mas também para uma nação inteira, que começava a sonhar com o amanhã.

“Vamos em frente porque tudo que a gente construir para o bem comum servirá pra gente também”, tinha essa certeza. Na verdade, tinha a certeza de que a nossa felicidade também estava relacionada à felicidade da comunidade. Quem já experienciou isso sabe o que estou dizendo. E quando a luta encontra esse lugar de alegria, ela torna-se um processo muito gratificante.

Na época a avalanche das necessidades dos trabalhos eram tão grandes que uma coisa puxava a outra, não tinha como parar.

A escolha pela política e a função de deputada me deu mais responsabilidades ainda, porque éramos chamados para irmos a vários lugares para ajudar e também para falar: “Por que é que a luta pela moradia deu certo para vocês? Por que a luta do transporte coletivo - que era um caos -, deu certo?” e assim por diante.

E por que é que deu certo?

Porque a gente junta as pessoas que têm as mesmas necessidades e dizemos: “olha, o problema é nosso, então vamos nos juntar e vamos tentar conquistar uma solução”. O governo só respeita o povo quando é organizado, disso eles tem medo e respeitam.

A senhora acha que é mais que uma missão, um chamado?

Sim, sim, eu me sentia como um instrumento de um benefício que era comum. Era uma missão minha, e sabia que essa missão contemplava os meus filhos, mas era maior do que meus próprios filhos, e que era uma ideia de salvação.

A gente sempre trabalhava isso na missão conciliar, a gente fazia grandes encontros. Nós íamos lá para o Instituto Paulo VI e passávamos o dia refletindo, discutindo isso tudo. Ou íamos para um centro de lazer da prefeitura - porque a gente fazia vários encontros de lazer, também, de brincadeiras e de convivência, não só de reflexão. Era um misto de atender todas as necessidades: do custo de vida, do desemprego, do transporte, moradia, saúde, água e ao mesmo tempo a necessidade de convivência, amizade e de encontro. Era tão bom, tão legal fazer, que a gente só foi sentir o peso quando, claro, a gente ingressou na política e aí começou a perseguição.

O Aurélio Peres foi preso e torturado, vários operários. Era perseguição física, mas também moral.

Santo Dias foi assassinado em 1979. Santo, Ana e eu atuávamos muito juntos. Um dava apoio ao outro. Éramos vizinhos de portas abertas. E Santo foi um importante líder sindical, da Pastoral Operária e da Comunidade de Base, ele foi assassinado em frente a fábrica Sylvania, no bairro do Campo Grande, em São Paulo, em outubro de 1979. Seu assassinato foi cruel, covarde.

Foi um dia que todos nós levantamos às 5 horas da manhã, fizemos uma reflexão bíblica antes de sairmos para acompanhar o movimento da greve, em 1979 em São Paulo. Deixei o Santo no meu escritório porque sabíamos que ele estava sendo ameaçado de morte… E fui acompanhar a greve na zona leste, eles estavam sofrendo muita repressão. Voltando da zona leste, ouvi pelo rádio que Santo havia sido assassinado.

Ele queria estar junto aos trabalhadores, era para ele ter ficado no meu escritório dando suporte aos trabalhadores que estavam em greve, mas o chamado para estar presente, junto dos companheiros “falou mais alto”, e ele foi.

Havia uma intensa repressão policial contra os trabalhadores, quando Santo chegou na fábrica ele foi morto a tiros pela Polícia Militar de São Paulo. Do IML (Instituto Médico Legal), ele foi levado e velado na igreja da Consolação. Depois milhares de pessoas acompanharam, num cortejo fúnebre, até a catedral de São Paulo, onde eu e o Dom Paulo Evaristo Arns requeremos que a polícia não estivesse presente e que nós garantiríamos a “paz” e a segurança até o enterro que foi no cemitério de Santo Amaro. Diante da revolta dos trabalhadores, nós mediamos para que a polícia não estivesse presente.

A gente sentia a opressão na pele. A gente ia para as celebrações e a gente era “marcado”. Tanto que quando eu fui eleita deputada eu dizia assim: “Eu me sinto uma leprosa! Sou comunista para as comunidades e uma papa hóstia para os militares”, como se eu estivesse usando esse instrumento para manipular o povo, de um lado.

A minha presença era sempre requerida junto a Pastoral da Terra, porque eu era deputada e fazia vários pronunciamentos ao Parlamento. Fiz uma CPI sobre a violência no campo, no Vale do Ribeira, em São Paulo.

Virei uma referência tanto em São Paulo quanto em outros locais do Brasil. No Araguaia, no Bico do Papagaio, Vilhena e Chapada dos Guimarães (Mato Grosso), em Rondônia e em muitos outros locais onde havia movimento pela reforma agrária e conflitos pela posse de terra.

Fui para o Mato Grosso, na chapada dos Guimarães, apoiando o movimento para a reforma agrária no dia do agricultor a convite do Dante de Oliveira (mais tarde eleito deputado federal), em 1979.

No mesmo ano eu fui para Andradina e região. Acompanhei a luta pela regulamentação da fazenda Primavera, no Pontal do Paranapanema, onde havia muitos conflitos armados.

Em 1989/90 fui coautora junto com o deputado Antônio Resk, o deputado Rubens Lara, da criação da CPI da violência do campo, lá no Vale do Ribeira.

Foi realizada a investigação das denúncias sobre a grilagem (crime de lotear ou registar terras públicas sem autorização do órgão competente). O então governador Paulo Maluf, na época, queria retirar os quilombolas, antigos proprietários da terra e distribuí-las através do Instituto de Terras para médicos, advogados, as elites de São Paulo.

Era fácil ter um terreno. Se você tivesse condições financeiras você ia lá do lado da Catedral da Sé, e requeria o mapa de terras devolutas. Você fazia o desenho do mapa da terra que você queria se apropriar e passava a ser o proprietário, despejando os antigos moradores.

Isso acontecia no Vale do Ribeira, em Itupeva, acontecia também no Pontal do Paranapanema. Com a denúncia da CPI foi possível iniciar a titulação das propriedades para os posseiros e quilombolas, sob o controle e a organização do ITESP (Instituto de Terras do Estado de São Paulo). Foi a partir desta experiência que apresentei um projeto de lei estadual, criando o Parque PETAR, no Vale do Ribeira

Você foi eleita no MDB e como foi a sua ida para o PT? E por que o PT?

Fui eleita no MDB, e após 400 reuniões com grupos organizados em diferentes cidades no Estado de São Paulo e revisitando os apoiadores da campanha, decidimos coletivamente a nossa filiação ao PT.

No partido eu fui a secretaria de organização no Estado de São Paulo e depois na organização nacional do PT no Brasil.

Foi uma outra luta, exigiu muito esforço porque não havia infraestrutura para organizar o partido, havia apoio sim das comunidades locais que me davam o suporte para cumprir a questão legal da organização de 123 municípios para a consolidação do partido.

Como a senhora consegue explicar que um núcleo pequeno na periferia de São Paulo se expande pelo Brasil?

Trabalhávamos 24 horas. Trabalho de formiguinhas. De organizar as comunidades, reuniões com as pessoas, organizar o partido. Construir um país. Também havia pessoas das igrejas, católicos e protestantes, que na época assumiram o Custo de Vida e permitiram que as atividades se multiplicassem.

E assim como na cidade, a situação no campo era muito precária. Foi decisiva a participação de bispos e padres no apoio à pauta da reforma agrária. E da mesma forma que a gente tinha a necessidade imediata de reforma urbana para as pessoas conquistarem casa, havia necessidade de reforma agrária no campo. E a resistência era violenta. Muito.

Por exemplo, eu cheguei no norte do estado de Goiás, que agora é Palmas, e fomos para uma cidade que tinha uma Pastoral da Terra.

O Manoel da Conceição tinha perdido uma perna na luta da terra. Juntamos um número muito grande de pessoas. Era um pessoal ribeirinho, que vinha montado a cavalo, outros chegaram em barcos, alguns andaram dias a pé. Fomos para uma cidadezinha chamada Agostinópolis. Lá só tinha um terreno da igreja e o resto era tudo barraco de palha. Nós fizemos uma assembleia com milhares de pessoas naquele núcleo do sertão. Havia 3 policiais que o governo tinha enviado para nos espionarem. E depois chegou um vereador num carro, um Chevette vermelho, e começou a rodar pelo ambiente onde a gente estava, buzinou, buzinou várias vezes para atrapalhar a assembleia. Eu desci do palanque e fui lá conversar com ele. Ele falou: “eu sou vereador”. Ok, eu falei: “eu sou deputada, você quer a palavra a gente te dá a palavra, sobe lá e fala, não adianta só você protestar contra a assembleia”.

Ele deu um arranque no carro, desceu a rua e foi num barzinho do lado e começou a provocar as pessoas que estavam ali, os trabalhadores não tiveram dúvida: mataram ele na hora. Foi um caos. Porque daí, claro que a família do vereador começou a reagir e começou a vir todo mundo contra aquele povo. Eu peguei o microfone e falei: “pelo amor de Deus, cada uma pega o caminhão, o carro, o cavalo, o que for e vai embora, porque nós vamos ter um confronto que a gente não vai aguentar”.

E nós conseguimos desmontar tudo rapidamente. As coisas não eram fáceis, não eram. Não são…

Quando eu fui para Vilhena, no Mato Grosso, houve um despejo e me disseram: “Irma, pelo amor de Deus, vem aqui porque não tem ninguém representando a gente”.

E como era para a senhora, mãe de um bebê de 6 meses sabendo que havia risco, ter de falar: “mamãe está indo”. Como fica o coração de mãe dentro desse cenário caótico e de violência?

Angústia por deixar minha filha, deixar de amamentar. “Tô deixando de amamentar e não tenho ninguém que possa me acompanhar para isso!”. Eu entendia que aquilo era minha missão, que o pessoal estava sendo despejado em massa. E o despejo foi assim: eles foram até o assentamento e pegaram as pessoas num dia de frio, gelado, chovendo! Pegavam as pessoas e as deixavam em pequenos blocos na estrada escura, num barro imenso durante a madrugada.

Como ficava a sua cabeça de mãe naquela situação toda?

Em certos momentos sentia raiva. E em alguns momentos inclusive com a direção do partido. “Eu deixo de amamentar minha filha para ir organizar as comunidades, a luta, e não tenho nenhum suporte?!” Mas a gente tinha uma missão maior. E a raiva dissolvia logo. Há uma coisa que nos move, esse movimento interno que faz a gente arriscar qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, inclusive os filhos. E dizer: vamos em frente.

De certa maneira eu tinha o Armelindo (Irma e Armelindo estão casados há 44 anos) que dava um apoio maior com a família. Ele também estava na política, porém ficava mais em São Paulo. Na época organizou dezenas de associações de bairro. E havia a comunidade onde nós morávamos, que também era muita solidária.

Quando eu fui para a política institucional, para o partido político, ficou difícil. Por quê? Porque na verdade a gente começou a ser muito assaltado, coisa que não acontecia. Por exemplo, uma vez entramos em embate com um senhor que queria se apropriar de um terreno no bairro Santa Margarida para fazer um estacionamento de cargas roubadas e nós estávamos brigando para que o local virasse uma creche. Eles falavam: “tem de tirar a Irma daqui, enquanto a Irma estiver aqui nós não conseguiremos fazer ‘as coisas que a gente quer fazer no bairro”.

Chegamos num ponto de angústia gigante e decidimos mudar para outro bairro, para Santo Amaro. Num certo sentido foi uma saída por sobrevivência. Eu sou muito cobrada até hoje. Me cobro…

Ontem eu recebi uma ligação telefônica de uma senhora chamada Marlene, aqui do fórum de Campinas, região que ajudei muito. E ela me perguntou: “Como que a gente constrói outra vez, nesse momento, algo para reagir contra a miséria e a fome que assola o Brasil, com a pandemia junto? O que a gente deve fazer?”.

Eu penso o tempo todo: como eu respondo à Marlene?

O jeito que as mulheres fazem política é diferente dos homens?

Na minha segunda, terceira semana de mandato como deputada estadual, um grupo de pessoas da periferia me trouxe um abaixo-assinado para encaminharmos. Aí o deputado estadual Manoel Sala, pegou o microfone no plenário e fala assim: “Está andando por esses corredores a deputada Irma Passoni com os maltrapilhos e “desgravatados” que nunca tinham entrado na Assembleia Legislativa”. E aí começaram a me questionar muito, sempre, e tentavam me desmoralizar. Eu não dava bola.

Mais do que ser mulher, trazer os “desgravatados” para a política, incomodava, muito. Mas ser mulher e trazer os desgravatados…

Nós estávamos sempre incomodando.

Por que uma CPMI tratando da ciência e de tecnologia?

Quando fui deputada federal, também nesse processo, cuidei de uma área: a ciência e tecnologia. Pra mim era claro a importância da informática. Em 1982 eu e a Cristina Tavares discutimos como fazer a regulamentação da fábrica de computadores, de substituir o supercomputador pelo minicomputador, foi uma guerra.

Nós éramos chamados de jurássicos, era um horror, mas nos dizíamos: “Não, nós também podemos ter esse conhecimento!”. Eu comecei a também militar no âmbito da ciência e tecnologia e propus uma CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito): Causas e Dimensões do Atraso Científico e Tecnológico Brasileiro, em 1991/1992. Fui relatora.

Foi um marco. A primeira vez que fizemos uma comissão para tratar de assuntos de desenvolvimento estratégico do país que envolvia a análise das grandes áreas estratégicas que tinham o potencial para o desenvolvimento do Brasil como, por exemplo: a indústria aeronáutica, com a fabricação dos aviões pela Embraer e se sustentando na pesquisa do CTA (Centro de Tecnologia Avançada) e INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), e na educação no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) para a formação técnica dos profissionais, gerando inteligência de todo o complexo da indústria aeroespacial.

Outro exemplo: pegamos o setor agrícola onde tínhamos a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), como órgão de excelência na pesquisa na agricultura que desenvolveu grandes pesquisas aplicadas na produção da agricultura, de grãos, da carne suína, frangos, houve um grande boom de desenvolvimento.

O desafio era como transformar toda a cadeia produtiva no agronegócio, na agricultura familiar, garantido a segurança alimentar e assegurando o equilíbrio do desenvolvimento do meio ambiente.

Esses são apenas dois exemplos.

Começamos a compreender que o desenvolvimento é complexo, mas que tínhamos no Brasil todo um potencial a ser desenvolvido de uma forma integrada todos os conhecimentos e saberes populares em diálogo com os saberes científicos e tecnológicos que podiam criar grandes projetos de desenvolvimento, mas esse processo foi interrompido e agora desmontou tudo outra vez.

Por quê? Porque não há uma preocupação com o desenvolvimento de uma nação. O parlamento já havia alertado para o desafio da necessidade de um processo contínuo e sustentável.

Qual seria o legado que a senhora gostaria de deixar?

Acho que o legado é a pessoa buscar ouvir mais o próprio coração.

Se perguntar: Por que eu nasci? Qual é a minha missão? O que eu tenho de fazer para me realizar e realizar o bem comum? Qual é o papel de cada cidadão numa nação? Compreender muito profundamente o papel da cidadania e da democracia, num ambiente melhor para que a gente possa se desenvolver como um todo: Do ponto de vista político, social, humano e, também com cidadania plena.

Que as pessoas se valorizem internamente, acreditem na voz interna, acho que a gente adquire muita força lá pelos 7, 8 anos de idade quando a gente toma consciência de si próprio. Perceber quais são os apelos que vem na vida e enfrentá-los. Esse momento chega, pra mim veio lá pelos 20, 30 anos, que é a liberdade, sentir-se livre e responsável pela própria vida. Quero que as pessoas tenham a sabedoria da vivência do dia a dia, se reconheçam e realizem aquilo que as fazem felizes.

O que faz essa pessoa feliz? Essa felicidade, eu tenho certeza, aparece quando a pessoa vive para o bem comum e para o seu bem próprio, dessa maneira ela constrói um caminho de felicidade.

Acho que essa identidade pessoal e o compromisso público do bem comum faz a vida da gente ter sentido. Toda ação, luta realizada em equipe, com participação e tomada de decisão coletiva será vitoriosa.

Se cada um de nós puder olhar o outro e ser feliz com a felicidade do próximo, ter fé e confiança que a gente tem limites, o resto a gente põe nas mãos de Deus e Ele completa a obra da gente.