Ficou famoso por ter inventado estilos musicais. Mas acredito que a música, que escolheu correr por suas veias, o inventou primeiro. E o deu a nós. Ele ignorou as classificações musicais e misturou tudo. Ele revolucionou a música negra nos Estados Unidos.

Fundiu o jazz e soul, criou o rhythm & blues. Juntou o gospel ao blues e ao rock & roll, foi mandado ao inferno pelos puritanos, foi adorado pelos boêmios. Popularizou o country em versões românticas. Sua originalidade resultou em estilos inovadores e surpreendentes, embalando em seu próprio ritmo toda uma geração. Cego, rebelde, infiel, infrator, viciado em drogas, mas com um poderoso barítono e um extraordinário talento ao piano. Se houve alguém que reinventou a arte sonora, seu nome é Ray Charles. O compositor Billy Joel afirmou que Ray Charles foi, para a cultura musical, mais importante que Elvis Presley, pela notória revolução que dispensou ao mundo, como um “verdadeiro arquiteto da música”. Nunca ninguém juntou tantos estilos e conseguiu fazer tudo funcionar.

Além de sua excepcional criatividade, Ray tem uma voz única e peculiar, com um tempero rústico – como aquelas cordas vocais ásperas – coisa que se percebe sempre que ele alcança um tom mais alto do que o timbre que lhe compete. É aí que rebenta em falsetes e dá voltas pelas notas mais altas. Fica lá por cima até deslizar suavemente aos tons mais graves, surfando nas variações, produzindo um som tão agradável aos ouvidos quanto as espumas das pequenas ondinhas que vão e voltam na maré, morrendo num ruído rouco e suave. E ele o faz com firmeza, encaixando sua voz cadente e seus tons imprevisíveis nos compassos que ele mesmo inventa, criando e dominando um som enarmônico, quase vacilante, e o conduzindo elegantemente sentado ao piano.

Diferente de alguns amigos que adoram ouvir o som de Ray bebericando algum lote caro de alto teor alcoólico, eu gosto que Ray me acompanhe nas noites de biscoitos de chocolate mergulhados na caneca de leite quente. Porque apesar de ele ter prenunciado um novo estilo de música, reinventando-a numa energia quase colérica, Ray Charles me traz a tranquilidade provinciana de quem repousa os olhos através da janela para olhar um céu estrelado – com uma caneca de leite quente na mão. Uma roça, uma varanda, um portão. É com isso que relaciono o som de Ray Charles, num clima simples e despretensioso, apesar do ineditismo e originalidade eufórica de seu som.

Talvez eu tenha esta impressão por causa da sua própria história. Até começar a ter alguma notoriedade pelo seu dom musical, Ray teve uma vida dificílima, sendo negro no sul dos Estados Unidos, na década de 50, rural, órfão e pobre. Tudo isso me remete a qualquer cena amarelada, empoeirada, que espera o gemido de uma corda ou de um sopro de um músico que toca angustiado na varanda, numa tarde quente. É tão deep soul.

Assim como outros músicos de sua geração, Ray Charles cresceu protestante e teve os primeiros contatos com a música por meio da igreja. Veio de uma família muito pobre, do interior do estado da Geórgia – estado que viria a homenagear com sua voz, na clássica de Hoagy Carmichael, Georgia on My Mind, uma de suas mais famosas e belas interpretações. Ainda criança, sua família se mudou para o estado da Flórida, para morar num pobre vilarejo de negros. Ele perdeu um irmão afogado, fato que jamais superou, já que Ray testemunhou sua morte. Isso bastou para que ele carregasse sobre os ombros uma culpa da qual jamais conseguiu se livrar.

Quando Ray Charles tinha cinco anos começou a perder a visão; com sete, já estava completamente cego devido a um suposto glaucoma. Entrou para uma escola especial, a qual estimulava os sentidos dos alunos cegos e surdos através da música e dos instrumentos. Ray Charles viu seu interesse musical despertar. Quis aprender a tocar as músicas que ouvia na rádio e na igreja. Com o passar do tempo, tornou-se um dos melhores alunos e começou a se destacar por toda a comunidade e região, tocando em apresentações públicas, promovidas pela escola. A esta altura, era adolescente e já órfão de pai e mãe. Um dia ousou fazer o seu próprio arranjo musical num dos temas. E fez, agradando grande parte do público. Descobria-se, então, um talento nato da música negra nos Estados Unidos. Surgia Ray Charles.

Começou a carreira tocando piano para algumas bandas. Por ser cego, era mal remunerado e enganado pelos contratantes. Essa situação perdurou até se mudar para Seattle, cidade que foi palco de seus primeiros sucessos e onde conseguiu seu contrato com a Atlantic Records, seguido pelo da ABC-Paramount Records – a qual lhe fez uma das mais liberais e lucrativas propostas já feitas a um músico. Este fato deu a Ray Charles o posto de celebridade - tornou-se um dos músicos mais bem sucedidos dos Estados Unidos até então, no começo dos anos 60. Também se engajou em lutas sociais, usando sua influência para apoiar o “Movimento dos Direitos Civis”, nos Estados Unidos, liderado por Martin Luther King, Jr.

Entre os seus maiores sucessos estão I Got a Woman, Hallelujah I Love Her So, Ain't That Love, Sinner's Prayer, What'd I Say. Seu álbum mais memorável foi The Genius Sings the Blues, 1960, que levou inúmeros prêmios com seu forte estilo southern soul, misturando influência gospel e folk blues. Umas das pérolas deste álbum são as melódicas Hard Times e I Wonder Who, verdadeiras celebrações ao country blues.

O álbum The Genius Hits the Road também chega em 1960, com nova roupagem e energia nos estilos pelos quais navegava. Ray aqui experimentou todas as possibilidades. Destaque para Georgia on My Mind, Mississippi Mud e Carry Me Back to Old Virginy. Em 1962, o álbum Ray Charles Greatest Hits trouxe as deliciosasUnchain My Heart, Hit The Road Jack - e também representa seu som experimental. Durante toda a sua carreira fez parcerias com outros grandes nomes da música como Aretha Franklin, B.B.King, Johnny Cash, Stevie Wonder, entre outros.

Obviamente, ganhou inúmeros prêmios da indústria audiovisual. Ray deixou sua marca também no cinema, fazendo participações especiais em produções como Ballad in Blue (1964), The Blues Brothers (1980) e Love Affair (1994). O músico chegou a participar da concepção e produção de sua biografia para as telas, Ray (2004), mas morreu alguns meses antes da estreia do filme.

Hoje, não o podemos classificar. Sua flexibilidade musical não permite. Foi um inventor, um precursor, um gênio dos sentidos. Talvez essa energia musical de Ray venha da intensidade de se viver num mundo cinza. E lá do seu universo nublado vinha colorir nosso ritmo débil com sua paleta sonora. Essa diversidade musical o tornou um mestre em todos os estilos com que flertou.

Por isso, Ray é considerado pela Rolling Stone um dos 100 maiores nomes da música de todos os tempos. Para mim, ele está no topo da lista – o maior nome da música de todos os tempos. Ele não somente tinha a música dentro dele, mas a construiu fora dele. Nada mais, nada menos.