L’efant accaparé par les belles images
Ecarquille les siens moins démesurément
Quand tu fais les grands yeux je ne sais tu mens
On dirait que l’averse ouvre fleurs sauvages.

(Louis Aragon)

A tentativa de apreensão do discurso imagético sempre foi problemática. É importante perceber que a necessidade de desvendar completamente a imagem, de encontrar uma interpretação iluminadora, é típica da modernidade. O que não pode ser interpretado não pode ser dominado pelo homem-intelecto que necessita apreender o mundo racionalmente. Domado o inefável, destrói-se o mito e tudo fica no terreno do compreensível."Le temps de l'image est venu!", disse um dos pioneiros do cinema francês, Abel Gance, ainda nos anos 20. O cinema encontra-se hoje atravessado por novos textos e contextos e pela quase omnipresença da imagem digital.

Somos expostos, diariamente, a milhares de imagens que se multiplicam nos mais diversos ecrãs, e todas elas são, de alguma maneira, devedoras da linguagem que o cinema construiu, ao longo da sua centenária existência, e continuam a emanar o cunho ontológico que a imagem produzida mecanicamente, através da câmara e com o auxílio da luz, imprimiu à imagem cinematográfica desde os seus primórdios. Compreender que a imagem cinematográfica não é inocente e que é fonte inesgotável de significações é uma arma eficaz contra o embotamento dos sentidos e contra a absorção cega dos significados, engendrada por um dispositivo que se transforma e se adequa a novas realidades, mas que mantém intacta a sua capacidade de sedução pela imagem.

O cinema é a arte do espaço e do tempo - de um espaço que se arrasta no tempo e de um tempo feito de uma espacialidade muito própria – um tempo construído de fragmentos. Como a psicanálise, coloca em evidência o sujeito e é através dele que se constitui enquanto instrumento de compreensão ou de sedução da mente humana: o sujeito passa a se reconhecer como lugar originário do sentido. Há, no entanto, uma distância entre o sujeito e a imagem que o cinema tentou, diversas vezes, ultrapassar. Para os realizadores, quanto menor a fronteira entre sujeito/espectador e objeto/filme, melhor.

Os filmes destinados ao grande público procuram ocultar a sua condição de arte da representação e pretendem ser absorvidos como um dispositivo de “apresentação”, um simulador do real, um espelho hiperdimensionado que reflete, inocentemente, o mundo que o circunda. A nossa relação com o cinema assenta no seguinte paradoxo: de um lado temos a sensação de penetrar na realidade, mas, de outro, reconhecemos as limitações do nosso campo de visão, circunscrito pelo enquadramento. Convertemo-nos em voyeurs, voluntária ou involuntariamente e como tal, espreitamos fragmentos do mundo tangível. O cinema simula, ou emula, uma efetividade que assumimos como passível de ser visitada e habitada por cada um de nós.

Em 1947, um filme de Robert Montgomery, baseado na obra de Raymond Chandler, The Lady in the Lake, provocou uma grande perturbação no universo do cinema clássico, cuja tónica sempre esteve assente na criação de um discurso da realidade e da projeção. The Lady in the Lake é um filme noir e o realizador decidiu transpor a história para o ecrã utilizando o mesmo estilo da escrita de Chandler: o texto narrado em primeira pessoa e com uma personagem/narrador omnisciente.

O protagonista do filme, o detetive Philip Marlowe, só nos é mostrado muito rapidamente no princípio e no final do filme e em breves frames, através de espelhos ou do reflexo do vidro de uma porta. O filme, como o livro, segue a tendência da literatura policial hard boiled, herdeira de uma tradição que remonta aos Crimes da Rua Morgue de Edgar Allan Poe, uma história policial cheia de ação, em que o detetive erra, apanha e sofre, ao contrário dos cerebrais personagens de Aghata Christie ou de Conan Doyle.

O filme é a primeira experiência realizada em Hollywood que leva ao extremo o papel da câmara subjetiva: vemos através dos olhos do detetive e só vemos o que ele vê. As mãos dele aparecem algumas vezes em cena e a ideia do realizador era permitir que o espectador sentisse estas mãos como suas. O que não aconteceu. Aliás, o filme foi um fracasso de bilheteira apesar de toda a promoção que foi feita à sua volta. Montgomery não percebeu que, para criar a identificação com as personagens dos ecrãs, é preciso mostrá-las, exibir evidências que, de alguma maneira, elas são de carne e osso como nós.

Jean-Louis Comolli, ao falar do cinema de John Cassavetes afirma: “El cine es un arte ambicioso. Lo que desea es que el adentro se libre en el afuera. Filmar el exterior para descubrir el interior (…)” (2007: 153). Ora, o processo de filmagem de The Lady in the Lake faz precisamente o contrário: filma o interior para que se veja o exterior. Ou seja, não vemos a superfície do corpo do ator, só vemos o seu olhar, a direção que ele toma ou o seu ângulo de visão. Como se estivéssemos dentro da sua cabeça. Mas, conforme Comolli, para entrar no interior da personagem é preciso personificá-la, dar corpo ao olhar.

Anos mais tarde, em 1975, a cineasta e escritora Marguerite Duras realiza o seu Indian Song, cujo argumento provém de uma peça nunca encenada da autora. O filme conta uma história de amor que poderia ser banal, não fosse a opção que Duras faz de narrar visualmente os diálogos, que se ouvem fora de campo, mas que quase nunca são mostrados a serem enunciados pelas personagens. Sentimo-nos como alguém que ouve uma conversa que não deveria ouvir, como alguém que, inopinadamente está no lugar errado e participa, à distância, do drama que se desenrola, ao mesmo tempo perto e distante de nós. O vazio e o tédio da relação entre a mulher e o marido e a paixão culpada, mas permitida, entre a mulher e o amante, são representados duplamente: primeiro pelo texto, que nos conta a história através das personagens cujos diálogos são quase monólogos; e segundo, pelo vazio do próprio ecrã, pelo papel da câmara que, neste filme, parece estar sempre fora do sítio.

O filme, rapidamente, transformou-se em obra de culto, sobretudo porque relembrava, anos depois, o clima de O ano passado em Marienbad, obra de Alain Resnais, baseado num guião original de Alain Robbe-Grillet. Como Duras, Resnais não nos oferece um filme de fácil degustação. A narrativa não segue os meandros, nem as regras, impostas pelo cinema clássico, rompendo o fluxo espácio-temporal criando no espectador a sensação de desequilíbrio e de insegurança, pois neste caso ele não domina a narrativa, não sabe o que vem a seguir e muito menos consegue prever como será o final. Ambos os realizadores fizeram parte da Nouvelle Vague, a nova vaga do cinema francês, que juntamente com o neorrealismo italiano provocou roturas irreparáveis na ordem do cinema clássico norte-americano.

O filme de Montgomery apesar de profundamente inovador, pertence à lógica de produção dos estúdios e o realizador não pretendia perturbar os seus espectadores, a sua intenção era permitir que o lugar do voyeur, que todo espectador, voluntária ou involuntariamente ocupa, fosse substituído pelo papel de participante ativo da ação, de personagem do filme. O problema é que o filme existe enquanto imagem, mesmo que o seu processo de significação seja um processo mental, os espectadores se veem não apenas na narrativa, mas precipuamente vestem a pele dos atores, habitam, ou desejam fazê-lo, os corpos que povoam o ecrã.

O processo de identificação no cinema dá-se através do reconhecimento da alteridade, o espectador ocupa o lugar do “outro”: “En su parte documental- que es la marca de su nacimiento y la condición de su invención -, el cine no hace más que abrir el diafragma de una lente, la sensibilidad de una emulsión (…) a la presencia luminosa del outro, más o menos, es todo el asunto, de ese outro que viene hacia la cámara tanto como ésta va hacia él.” (Comolli, 2007: 46). Para Comolli, o outro que vemos no ecrã, que é capturado pela câmara, é um corpo que reconhecemos como diverso e igual. E é na associação entre o que vê e o que é olhado, na crença do milagre efetuado pela luz que imprime o real no fotograma, que se estabelece uma relação de poder. O espectador ocupa, normalmente, o lugar do morto, não é ele quem conduz a narrativa, mas sim é conduzido por ela.

O número de espectadores que o cinema norte-americano conseguia atrair nos seus primórdios foi crescendo, à medida que crescia também a capacidade deste dispositivo de se tornar mais próximo do real, e paradoxalmente, mais distante. O som sincrónico e mais tarde o aparecimento da cor, ajudaram o cinema a aproximar-se do mundo extra-ecrã transformando os seus artifícios paradoxalmente em elementos de realidade, ou seja, cada novo efeito especial, ajudava os realizadores a criarem no público a sensação efetiva de estar diante de uma janela aberta para o mundo. Ao contrário daquilo que as Vanguardas Históricas preconizaram, ou realizaram com o cinema, os filmes caminham em direção à normatização e da organização da mise en scène a favor da duplicação do real e não da criação de novas possibilidades de leitura do mundo.

Os filmes destinados ao grande público, mesmo na era digital, que permite uma maior plasticidade às imagens e maior versatilidade na montagem, através da edição, continuam a apostar na narrativa do séc. XIX e na vertente realista do cinema, entendendo este realismo como a capacidade que o dispositivo tem de dar ao espectador a ilusão de espreitar, através de uma janela, que é o ecrã, um mundo possível, um duplo da sua própria realidade, ou uma alteridade desejada e desejável.

O cinema clássico escamoteia o discurso, ou melhor, escamoteia a sua condição de discurso, permitindo ao sujeito identificar-se com o que vê mais do que em qualquer outra arte do espetáculo.

No prefácio do livro Ver y Poder de Jean-Louis Comolli, Eduardo A. Russo enumera alguns conceitos do teórico francês e ressalta a ideia que este defende da afinidade documentário-ficção: “Ambivalencia del cine. La dualidade de deseos y de miedos está en el mismo punto de partida de la oposición ficción/documental; es ella quien al mismo tiempo la funda y la agota.” (Comolli, 2007: 24). Comolli vê o espectador como um ser ambíguo que deseja, simultaneamente, a imagem do cinema e o seu oposto, ou seja, a sua existência enquanto coisa no mundo real. O público de cinema quer “(…) la cosa, su imagen y el contrario de su imagen.” (idem: ibidem). Como na tese do duplo vínculo batesoniana, aqui o espectador reconhece e rechaça a falta de densidade, de corpo, que a imagem possui. Mas não deixa de desejar ver-se representado por aquela sombra projetada no ecrã.

Herdeiro da fotografia, o cinema trouxe consigo a marca do Real. Como disse Jean-Claude Carrière, “Todo filme é uma sucessão de reproduções fotográficas, e uma foto (não importa o que você faça com ela) é sempre algo que já existiu, que, em certo momento específico, foi real.” (1995: 57). O universo simbólico e ideológico, construído pelos estúdios de cinema em Hollywood, perpetuaram um modelo de corpo a ser imitado, um modelo de sociedade a ser copiado porque o público desejava estar representado no ecrã, desejava se reconhecer naquilo que o cinema apresentava. O modelo perpetua-se também porque se adapta aos tempos, às modas e às novas tecnologias.

A experiência limite do filme The Lady in the Lake foi repetida, diversas vezes, com algum êxito, no cinema hollywoodiano: o uso da câmara subjetiva, ocupando o lugar do sujeito/personagem, aparece em filmes de terror, aumentando assim a sensação de imersão e excitando ainda mais a imaginação do espectador, sensações que este género deseja proporcionar. Nenhuma outra experiência, no entanto, foi tão longe como o filme de Montgomery porque o cinema da “identificação” percebeu rapidamente que precisa de um corpo para que o efeito especular se realize.

Referências Bibliográficas

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Aumont, Jacques e Marie, Michel (2003), Dicionário teórico e crítico de cinema, Campinas, Papirus.
Barthes, Roland et alii (1984), Psicanálise e cinema, Lisboa, Relógio D’Água.
Baudry, Jean-Louis (1974-1975), “Ideological effects of the basic cinematographic apparatus” in Film Quarterly, vol. 28, nº 2.
Carrière, Jean-Claude. (1995), A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
Comolli, Jean-Louis (2007), Ver y Poder - La inocencia perdida: cine, televisión, ficción, documental, Buenos Aires, Aurelia Rivera.
Mauerhofer, Hugo (1983), “A Psicologia da Experiência Cinematográfica”. In Xavier, Ismail (org.), A Experiência do Cinema, Rio de Janeiro, Graal.
Munsterberg, Hugo (1916), The Photoplay - A Psychological Study, The Project Gutenberg EBook
Tavares, Mirian Nogueira, (2008), “Cinema digital: novos suportes, mesmas histórias”, ARS (São Paulo), São Paulo, v. 6, n. 12, Dec. 2008.
Xavier, Ismail (1996), O Cinema no século, Rio de Janeiro, Imago.