O cinema, na América Latina, começou muito cedo e de uma forma bastante diversa em cada país. Apesar das diferenças de condição de produção, difusão e mesmo diferenças formais, há algumas características que podem ser apontadas em toda a cinematografia da região, como por exemplo, a realização de um cinema político, em que a política é muito mais que uma questão partidária - envolve todas as escolhas que a sociedade faz e fez, ao longo da sua História, em relação às questões sociais, económicas, culturais e ambientais. O cinema latino-americano é um cinema que possui uma voz dissonante e desigual, dificilmente ouvida fora das suas fronteiras, e por isso vale a pena perceber melhor o que é dito por ali.

O cinema é a arte do espaço e do tempo. O tempo, no cinema, é aquele preconizado por Freud para o inconsciente – o eterno presente que contém, em simultâneo, o passado e o futuro. O cinema, como a psicanálise, coloca em evidência o sujeito e é através dele que se constitui enquanto instrumento de compreensão ou de sedução da mente humana. O sujeito passa a se reconhecer como lugar originário do sentido. Há uma distância entre o sujeito e a imagem que o cinema tentou, diversas vezes, ultrapassar. Para os realizadores, quanto menor a fronteira entre sujeito/espectador e objeto/filme, melhor. E é sobre fronteiras que falo. Fronteira entre o cinema visível e o cinema invisível (Hollywood vs América Latina); entre o cinema de ficção e o documentário; entre a narrativa e a sua desconstrução. Escolhi trabalhar com realizadores de 3 países bastantes representativos em termos de produção cinematográfica na região: Argentina, México e Brasil. Dentre os realizadores destes países, elegi aqueles que ultrapassam a fronteira entre o documentário e a ficção, cujos filmes, mesmo quando são vincadamente ficcionais, trazem a marca indelével do real e quando são documentais, exploram os limites da narrativa e constroem uma realidade outra Ao analisar o cinema enquanto dispositivo de representação, Hugo Munsterberg, um dos pioneiros da Teoria do Cinema, encontra imensas similitudes entre o cinema e o funcionamento da mente humana. Para este autor era óbvio que as propriedades cinemáticas eram também propriedades mentais, e que o cinema não acontece no ecrã, onde é projetado, mas é a nossa mente, que organiza o relato. Tomemos, por exemplo, o mecanismo da atenção. A mente não vive apenas num mundo em movimento, ela organiza esse mundo através da propriedade da atenção. Somos capazes de hierarquizar aquilo que nos rodeia e construir o nosso próprio percurso no real. O cinema utiliza este mesmo mecanismo só que de uma maneira bastante perversa. Ele manipula a nossa atenção, obrigando-nos a ver apenas aquilo que o olho da câmara capta. Além daquela imagem ali plasmada, só há o escuro da sala que nos circunda.

Danzón, de María Novaro

Danzón, filme da realizadora mexicana María Novaro, constrói uma Cidade do México muito particular, uma cidade que não se mostra completamente, mas que vai sendo desvelada aos poucos e que é palco da busca de uma mulher pelo seu par, dos encontros e desencontros, que não são exibidos a nu no ecrã, mas cujos fragmentos vamos recebendo aos poucos através de imagens metonímicas.

O filme começa com um baile. Vemos os pés de uma mulher, depois a câmara desliza pelo salão e vai mostrando os pés dos casais que dançam ao som de uma orquestra, ao fundo. A câmara sobe e vemos os casais a deleitarem-se com os passos e a aplaudirem quando a música chega ao fim. Como no filme de Ettore Scola, O Baile, de 1983, são os corpos que falam, através da dança. Ao sair do baile, o luminoso com o nome do salão toma o ecrã por completo: Salón de Baile Colonia. E começa aqui a história de um universo muito feminino, onde mulheres de todas as idades trabalham, falam, vivem e, sobretudo, buscam o seu par ideal.

O filme é quase todo feito em planos fechados. Os corpos das pessoas, que é o que interessa à realizadora, ocupam o seu lugar de ponto de fuga no ecrã. Para onde quer que olhemos, eles estão sempre lá. Mulheres gordas, magras, novas ou velhas. Homens que desfilam diante dos seus olhares. A cidade é apenas um pano de fundo recortado que teima, de vez em quando, em aparecer porque a cidade, neste filme, são as pessoas e os seus desejos. O filme acaba como começa, no salón de baile Colonia. Parece que a busca pelo par ideal foi concretizada. E é através da dança dos olhares que percebemos que estamos diante de um final feliz.

María Novaro, como vários realizadores latino-americanos, fala do seu país e daquilo que o une e divide. Mostra uma realidade muitas vezes ocultada que revela uma dissonância onde, aparentemente, existe uma única voz. Traducción Simultanea, curta-metragem feito sob encomenda para um projeto da Secretaria de la Función Publica, em coordenação com o IMCINE e CONACULTA, revela as outras vozes que se falam no México que, dificilmente, são ouvidas.

Cinema, espaço dos sonhos: Spiner, Retjman, Solanas

O cinema possui uma característica que vai concretizar o sonho de vanguardas como o surrealismo: a possibilidade de fragmentar o tempo. De mostrar simultaneamente passado, presente e futuro. Yvonne Duplessis, que analisou a fundo a relação entre os surrealistas e o cinema, afirmou: “É, pois, o cinema que irá oferecer o máximo de possibilidades aos surrealistas. Primeiro, porque se desenrola no tempo, reproduzindo assim o decurso do pensamento; depois, porque é constituído por fotografias objetivas que, graças à colagem, permitem que o maravilhoso se integre no real, restituindo-lhe a sua profundidade.”

O sujeito torna-se o lugar originário do sentido – a partir dele o tempo e o espaço são reorganizados e recompostos. Há um filme de Fernando Spiner, realizador argentino, que explora esta convergência entre o tempo dos relógios e o outro, aquele sobre o qual os surrealistas, e psicanalistas, falaram – o tempo do sonho. La Sonámbula, filme de 1998, revela uma Buenos Aires quotidiana e diversa. Num clima que lembra Alphaville de Godard e o cinema de Buñuel, vemos a fusão do espaço exterior, da cidade, e do espaço interior, sem que consigamos traçar fronteiras muito fixas.

La Sonámbula é um filme de ficção-científica e a relação entre uma possível realidade e o pesadelo começa por ser revelada através do recurso ao uso das cores e do preto-e-branco. Durante o filme, torna-se difícil separar estes espaços que convergem, dando-nos conta de uma realidade multiforme e múltipla, em que o medo dos poderosos que decidem os destinos, que ainda faz parte dos sonhos (ou pesadelos) de muitos argentinos, apareça transfigurado em ficção no ecrã.

Testigos en cadena, curta-metragem de Fernando Spiner, realizada em 1982, explora a relação da câmara com o sujeito: como é possível organizar uma narrativa através das imagens? Ou melhor, o filme mostra como só é possível, nos tempos que correm, ou que corriam, organizar uma narrativa mediada por um aparelho ótico capaz de ampliar a visão humana, de penetrar onde ela não consegue chegar, por limitações fisiológicas ou políticas. O filme retoma um princípio magnificamente utilizado por Hitchcock em Rear Window (1954) e conjuga-o com a ideia central do filme Blow Up (1966), de Antonioni.

A capacidade que o cinema tem de recriar o espaço à sua volta pode ser ilustrada pelo documentário de Martín Retjman, Copacabana. Retjman é mais conhecido como realizador de filmes de ficção e usa o seu olhar acurado para mostrar a vida de uma comunidade de imigrantes bolivianos que vive em Buenos Aires. A cidade é transformada pelos olhos dos outros que ali chegam e esta nova forma de estar neste espaço é-nos revelada pela câmara do realizador. Em Copacabana (2006) assistimos a uma festa. É por ela que o filme começa. E da festa, Retjman vai conduzindo o espectador a tudo aquilo que está por trás da festa, a imigração, as fronteiras, as ausências, as memórias. É através de um álbum de fotografias que saímos de Buenos Aires para a Bolívia e daí de volta a Buenos Aires.

Ao contrário de alguns documentários mais pessoais, onde a interferência do realizador é mais visível, em Copacabana as imagens falam, é o espectador que constrói as ligações. Claro que as imagens falam pelas mãos de Retjman que costura o discurso, que escolhe os enquadramentos, que decide qual fragmento vai vir antes ou depois. Mas o seu discurso é, sobretudo, imagético. Como Hitchcock, ele prefere mostrar do que dizer. Ou dizer mostrando.

Num outro registo, Fernando Solanas realiza, em 2007, Argentina Latente, terceiro filme de uma trilogia iniciada com Memorias del Saqueo. Solanas entra no documentário onde realiza pessoalmente entrevistas e emite opiniões sobre as questões apresentadas. Mas, além da sua narrativa verbal, há um aparato imagético muito bem cuidado, onde ele revela uma Argentina desconhecida, mesmo para aqueles que lá nasceram. E mais do que uma Argentina possível, ele mostra, e fala, de um país viável. Um país latente cuja baixa autoestima é incentivada pelos media, pelo discurso quotidiano do derrotismo e do medo. E é contra isto que Solanas usa o seu filme.

Cinema brasileiro: Fernando Meireles

O cinema, mesmo quando não é documental, é um documento – porque, antes de mais nada, é fotografia em movimento, com carácter ontológico que nos relembra uma presença, agora ausente. O cinema da América Latina, de um modo geral e com as devidas diferenças entre a produção de cada país, é um cinema desconhecido fora das suas fronteiras. Apesar de sobreviver exatamente da sua capacidade de saltar fronteiras, de derrubar barreiras, de dar voz aos heróis anónimos e aos anti-heróis. E às vezes consegue, por causa disto, fazer-se ouvir no mundo todo. O que aconteceu com Cidade de Deus, de Fernando Meireles.

O cinema contemporâneo brasileiro tem duas influências muito fortes: o cinema novo e o cinema marginal. Uma e outra cinematografia mostraram um país rural e urbano, rico e pobre, preto e branco, samba e funk. Um país de contrastes e de convívio ou de mistura, de miscigenação. O filme de Meireles vai buscar todas as referências, como também vai traduzir a obra que lhe deu origem, o livro de Paulo Lins. Entre a cidade que cresce violentamente, perdendo o seu ar de vila e perdendo-se na outra cidade, maior, que a engole, Lins narra uma história que pode ser a sua. E que pode ser a de todos os outros que vivem, ou viveram, como ele, no limite. Meireles retira da história os fragmentos que melhor podem ser enquadrados pela sua câmara e constrói a sua história – o filme que navega entre a ficção e o documentário, que ousa maquilhar os corpos para que eles apareçam melhor na fotografia, que ousa assumir-se como apenas um filme, um ponto de vista. Ou melhor, como um filme, instrumento capaz de revelar muitos pontos de vistas e de fundir, num mesmo plano, tempo e espaço, tempos e espaços outros, realidade e ficção.

A favela é um espaço múltiplo, de ruelas e esconderijos, de pessoas boas e más. É o resultado visível de uma realidade desigual. Os morros, no Rio de Janeiro, viraram paisagem. Mas não são paisagens que se prestem à contemplação. A sua fealdade converte-se num pano de fundo da cidade maravilhosa, voltada para o mar, de costas para as favelas e para quem nelas habita. A cidade quer esquecer que há morros, mas os seus habitantes, que descem e sobem dia após dia os caminhos tortuosos e íngremes, querem provar que não são apenas paisagem. São cidadãos. Ou tentam sê-lo. É este universo invisível, apesar de omnipresente, que Fernando Meirelles revela no seu filme. Cada plano é um fragmento do morro, cada plano é um fragmento de uma vida que é, mas que poderia ter sido diferente. E o resto é memória.

O cinema pode servir como mecanismo de recalque ou sublimação, pode servir também para revelar o não-dito. Para mostrar o que o espaço das paredes, entre as janelas, esconde. Para algumas vezes, deixar que o fora de campo invada o cenário. Para deixar que outras vozes, dissonantes e distantes, que outras imagens, invisíveis ou ocultadas, cruzem fronteiras e cheguem a todos nós. María Novaro, Fernando Spiner, Martín Rejtman, Fernando Solanas e Fernando Meirelles, cada um, à sua maneira, dialogam com o espaço que os envolve. Com o espaço ou com fragmentos dele que revelam aquilo que a imagem oficial de cada país prefere ocultar. Um país é feito de muitos corpos, de muitas vozes, de muitos sons. O cinema latino-americano procura ampliar o nosso campo de visão e mostrar que há muito ainda por fazer. E, sobretudo, por ver.