No aniversário dos 20 anos da transição da administração de Macau de Portugal para a China.

Macau é um extremo Oriente que se desdobra em coreografias de espantar. De face radiante como o Sol e suave como a Lua, Macau é borboleta metamórfica em perpétuo movimento.

Entre superstições milenárias, lendas e mitos; Buda, Lao Tse e Confúcio convivem num caminho que aspira à conquista da Felicidade. Entre o Thai Chi nos jardins e pássaros cativos que convivem com os da liberdade; entre violas chinesas e violoncelos de Camilo Pessanha, os tons musicais da língua chinesa invocam Kun-Iam; a deusa da Misericórdia, para que ela faça abrir todas as flores de lótus (a flor mística do Oriente e agora simbólica, de Macau).

Ana Maria Tamagnini, autora de Flor de lótus, escreve o seguinte poema:

Ah! Se eu pudesse como outrora ao luar,
Por esses lagos nos jardins dispersos,
Ir as flores de lótus apanhar
Para sobre elas escrever meus versos…

Sentir tudo de todas as maneiras, ao jeito de Pessoa, é uma máxima para quem percorre as ruas e vielas de Macau. Entre montras de jade e jóias de ouro, cores, luzes e perfumes transportam mensagens e símbolos de um cenário inquieto, desassossegado e continuamente renascido entre rostos e máscaras, entre nostalgia e euforia, entre o país do dia e o país da noite (de Sophia de Mello Breyner).

Macau atravessa todas as contradições, todas as utopias e chega ao Ser Plural num só pequeno / gigante território. Macau é um caleidoscópio pessoano em que o mito é o nada que é tudo e onde as muitas e desvairadas gentes que aí passeiam podem permitir-se ser do tamanho dos seus sonhos; tornarem-se pessoanos.

Macau é um hipertexto onírico!

Sendo Fernando Pessoa o Príncipe dos Desdobramentos e o Rei da Heteronímia (Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos); decerto se sentiria como “ peixe na água”, sobretudo neste ano em que celebra 130 anos de nascimento, nesta “ ostra /espelho” ou “ “Mar / espelho”, como era conhecida a antiga Macau. Um Oriente, que aliás, ele próprio desfolhou no belo poema do seu heterónimo, Álvaro de Campos, do qual transcrevemos este excerto:

Vem noite antiquíssima

Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, Sintoísta, Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde- quem sabe?- Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando em tudo….

Poema, que, depois de sentido ao ler-se, deixa no leitor interrogações como estas:

Será o Oriente o Norte de Pessoa?
Será que F. Pessoa nasceu de uma Flor de Lótus?
Será o Oriente, o Devir Outro?

Entre o verde das árvores de raízes bailarinas e rizomas gigantes e montanhas de jóias, Macau surge como um labirinto fotográfico de praças e pracinhas encantadoras e surpreendentes que só a poesia sublime de Li Bai pode traduzir:

Procurando o mestre em Macau
Você vive livre e se esquece da passagem dos anos

Talvez porque existem montanhas de jade, árvores bailarinas e um rio das Pérolas; uma sintaxe aglutinada de ilhas e pontes e uma semântica simbólica de um encantamento maravilhoso em que uma figura de estilo parece não bastar para descrever.

Macau é uma Hipérbole porque é excessivo; é uma Metáfora porque aproxima universos distantes num abrir e fechar de olhos; é Personificação de Mulher sedutora e exuberante; é Sinestesia que apura os nossos sentidos, é uma eterna Comparação, que é a grande figura de estilo da nossa vida e, de facto, em Macau, podemos comparar tudo com tudo, focalizando as diferenças e as semelhanças ao pormenor.

Macau cumpre o desejo pessoano: Sê Plural como o Universo!

Cumpre igualmente a máxima latina: Alea jacta est A sorte está lançada e abençoada em Macau: A-MA-GAO.

Podemos facilmente imaginar um poliedro de oito faces, a que poderiam corresponder:

  • O Farol da Guia ( o primeiro farol de características modernas e ocidentais a ser construído na Ásia)
  • Os Anjos (da bandeira do Leal Senado)
  • A Flor de Lotus (actual bandeira do território)
  • As Ruínas de S. Paulo
  • A Borboleta / Ovo (símbolos de metamorfose e renascimento)
  • As Árvores (bailarinas e únicas de Macau com as suas raízes e os seus rizomas…)
  • O rio das Pérolas
  • O Coração de Portugal (típico formato em filigrana).

Este Octaedro, que lançado na sintaxe da vida quotidiana, transforma. E o verbo transformar é um verbo cujo prefixo trans-, em latim, quer dizer para lá de, remontando ao indo-europeu – ter- contem a ideia de atravessar.

É este exercício que o sujeito humano, enquanto Pessoa, em Macau, é convidado a fazer: a atravessar níveis de realidade múltiplos; a criar uma supra-realidade que culmina no auto e heteroconhecimento e, portanto, numa metamorfose do Si Mesmo como um Outro. Uma metamorfose Pessoana; um selo que poderíamos colar no envelope da História de Macau.

Macau é exotismo, brilho, sofisticação, espectáculo e mais do que isso, é uma fusão de horizontes: China, Portugal e todo o espaço geográfico por onde a alma lusa andou “ as sete partidas do mundo”: Índia, Malásia, Japão, Hong Kong, África, América do Sul …

Aliás, como o pode atestar a culinária dos macaenses através da diversidade da origem dos termos e expressões usadas nas suas receitas (ex: Chouriço China; peixe cucuz; pombos à indiana…)

Macau requer, para ser profundamente compreendido e interpretado, uma hermenêutica de símbolos, um decifrar de narrativas encantadas como as de Jaime do Inso ( in Cenas da Vida de Macau, Instituto Cultural de Macau ), onde o leitor atravessa Tin- Tins, Bazares, cataratas de luz , Pagodes e Festas de Ano Novo; e histórias como as de João António Ferreira Lamas ( no seu livro A culinária dos Macaenses, Lello Editores), que nos descreve o tradicional Chá gordo, característico dos macaenses como uma refeição especial servida de pé em ocasiões festivas como aniversários e datas comemorativas. Um chá constituído por iguarias variadas, salgadas e doces, quentes e frias; tinha início à hora usual e prolongava-se até à hora de jantar. A identidade macaense é uma alteridade em si mesma, combinando Ocidente e Oriente no mesmo prato… Note-se a intercessão de horizontes na calçada à portuguesa em várias ruas do centro histórico de Macau. Poderemos mesmo afirmar que existe uma geografia lírica dos loca sancta: “Rua da Felicidade”, “Calçada de S. Agostinho”, “ Rua da Harmonia”...

Macau é uma fusão de saudade, de memórias e de sonho, utopia e imaginário; por isso mesmo torna-se, aos olhos de quem o visita: espetentacular, isto é, um espectáculo que agarra como um polvo e seus inúmeros tentáculos. O seu magnetismo é poderoso.

Macau é um íman pessoano!

Não podemos esquecer que Fernando Pessoa “encontrou” na Cidade do Santo Nome de Deus, na China, o seu Mestre: Camilo Pessanha; num território privilegiadamente iluminado para o encontro entre culturas. Macau é um espaço (u) tópico; encontro entre o não saber do Tao e o não saber Socratiano; um encontro entre espiritualidades, dialógico, entre o não agir do Tao e o imaginar Platónico; porque quer para Platão, como aliás para Camilo Pessanha (simbólica personagem que aqui viveu, amou e morreu), “se nos deixarmos guiar pela luz, a utopia realizar-se-á”.

Somos Ícaros, como Platão refere:

Pouco importa que tal cidade exista ou jamais venha a existir algures, aquele que a contemplar agirá consoante as leis de tal cidade ideal.

(Leis, 592).

Contemplativo e guerreiro foi Camilo Pessanha; guardou sopros divinos, sejam eles de Buda, Cristo ou da Esfinge egípcia, nos seus versos.

Adepto da pedagogia negativa, característica do pensamento oriental, Pessanha sublinha e amplifica o silêncio na sua, nossa Clepsidra, uma estética simbólica que ensina a apreender o universo como um todo, tal como qualquer livro sagrado do Oriente.

Pessanha escolheu caminhar sobre os símbolos do mar e construiu pontes entre oceanos de luz (vide Poema Branco e vermelho). Guardador de tatuagens, das que trazemos de nascença e das que a vida vai gravando no nosso coração, Pessanha “viu a luz em um país perdido”- aqui- ele, que por um lado traz consigo o herói platónico que insiste na harmonia do espírito e do carácter e, por outro, o paradigma camoniano da descoberta e da conquista.

Camilo Pessanha, educador épico-ético, é o herói construtor; a sua poesia é uma constructio universalis, inovadora e fazedora de estrelas: guias de sabedoria, de um “saber ser contemporâneo de “ onde Confúcio, Cristo e Buda conversam, entram em diálogo numa viagem, que é por excelência a suspensão do tempo. Com Pessanha cruzamo-nos com uma visão do mundo que parece caracterizar-se pela consciência lúcida da fugacidade e da ilusão, não só dos nossos sentimentos, como do próprio destino do Homem.

Clepsidra é a metáfora da água e que se por um lado sublinha o sentimento trágico do transitório, por outro, é um apelo forte ao Renascimento.

Em Macau, junto à “Gruta de Camões”, Pessanha fez a ligação entre o húmus da terra, as raízes crípticas do ser humano e o épico, que se adivinha nas pedras sobre pedras - o devir da universalização. Atou ambos com o “Li”, regras de conduta que estabelecem as relações inter-humanas e o modo como se deve agir em dada situação; além de expressar a atitude interior de humanidade. O “Li” é uma lei que Pessanha teve em conta na sua vida e obra; o equilíbrio e o diálogo entre o particular exemplar e o universal simbólico; é algo que tem que ver com Sócrates e simultaneamente com o Farol Oriental, cuja simbologia já foi referida.

Camilo Pessanha é ele próprio um ponto de encontro simbólico, de tonalidade iniciática, pois tinha absoluta consciência de que a própria existência humana é ela própria uma iniciação. A sua missão foi a de compreender os símbolos, pois só assim é possível viver o universal, partilhar e fazer eco do épico. Esta foi a sua cruzada.

Não será também a nossa?

Integrar as dimensões do ser humano?

Operar uma viragem através de uma síntese grandiosa do ocidente e do oriente?

Viver de acordo com a alma cósmica?

Despossuirmo-nos para possuir de verdade?

Tornar visível o essencial?

Tornarmo-nos responsáveis pelo nosso destino e termos luz própria?

Para isto acontecer, a própria escola, como referiu Agostinho da Silva (1998), vai ter de mergulhar nas suas raízes gregas, pois a palavra escola, em grego, significa “ tempo livre”.

Será uma escola que dará a possibilidade de criar, de imaginar com audácia, de fazer metáforas e vislumbrar utopias viáveis.

Sublinhe-se que o altruísmo baseado no amor ao semelhante é considerado na Ásia, desde há séculos, como o valor humano mais elevado. Confúcio e Platão poderiam andar de braço dado, pois a aristocracia confucionista (“os funcionários letrados”), unida pelo mérito mais do que pelos privilégios hereditários, aproximava-se muito do “ governo dos melhores”, imaginado pelos gregos.

De facto, é a educação que pode lançar pontes entre as culturas orientais e ocidentais. O Oriente e o Ocidente são capazes de aprender um com o outro, combinando, por exemplo, a iniciativa individual e o espírito de equipa, a competitividade e a solidariedade, as competências técnicas e as qualidades morais—aí os valores universais e os bens comuns, a verdadeira comunhão vão impor-se ; uma revolução de consciência acompanhará uma Ética global e a humanidade poderá ter uma consciência educada e holística. Uma liberdade cujo silêncio ilumina a própria voz.

É, talvez, a hora da Escola, e neste caso particular, da Escola Portuguesa em Macau se erguer como um Farol, iluminando um Magistério de paixão criadora; ser um ponto de encontro de histórias do sol nascente e poente, comparando símbolos e rituais; uma escola que dá tempo ao sonho para que as obras renasçam e se formem criadores de pontes como é o caso de poetas filósofos ou de filósofos poetas, como Camões, Pessanha e Pessoa.