Não sei até onde foi bom termos deixado de ser bicho para virarmos gente. Aqui onde estou, em meu estado atual, era melhor ter continuado sendo bicho mesmo. Não sei se eles têm alma, até onde pensam os bichos; sei agora que os instintos lhes bastam muito mais que isso.

Os que aqui convivem comigo, sendo eu ainda gente, seguem unicamente o intuito de predar-me. De nada me valem os dentes, as unhas, o olfato. Melhor serventia teriam o faro, as garras e as presas. Além disso, são terríveis o frio e o calor. A imundície que aprendi a repudiar. E a miséria, o remorso, e a culpa. Devo ter sido feliz enquanto cri na razão e no arbítrio, agora creio somente em destino. Sem isso não poderia ter aceitado minha sentença. Porém, como se isso não bastasse, me atormentam dia e noite os bichos.

Não reprovarei os que disserem que minha condição de condenado viciou o que digo, afinal sou um derrotado. Julgarão que meus sucessivos fracassos transformaram Deus, a natureza e a roda da fortuna em coisas hostis para mim. Mas dentro da caverna obscura foi que pude ficar a sós com essas coisas. Acurei meus pensamentos e o alcance dos meus sentidos no escuro, e me desvencilhei das distrações, engodos e adulações da vida. Ficamos eu e os bichos. Estes seres que na calada tramam a derrocada do mundo.

Antes eram quase imperceptíveis, mas agora fazem um rumor surdo, como um eco voraz e incessante. Vão comendo pelas beiradas, fermentando, roendo, carcomendo, infectando tudo. Este livro que trago nas mãos, e que foi o começo disto tudo, tem um furo oblíquo que o trespassa de fora a fora, obra de gerações de traças invisíveis. Passo horas espanando as teias de aranha, mas elas se reconstituem da noite para o dia, denunciando minha inépcia. Os grãos de areia que as formigas vão depositando num canto da cela comporão um dia uma enorme duna, que com outras comporão um deserto.

Dá para sentir batendo com os nós dos dedos que as paredes e o teto estão ficando ocos pela ação dos cupins, mais dia menos dia vão desmoronar, há um rumorejar eterno. O fedor das fezes das baratas e dos fungos me inspira com horror sua patogênese. Sinto indignado e impotente as picadas dos mosquitos carniceiros, roubando, saqueando meu sangue. Outro dia rasparam meu quengo alegando que só assim podiam acabar com meus piolhos.

Durante o banho de sol, percebi que a amendoeira do pátio onde pousam os bandos de urubus já não fazia sombra, as lagartas comeram o que restava das folhas que refrescavam a grade alta do duto de ar que areja minha recâmara. Não sei como alguns desses bichos se infiltraram aqui e morderam meu colchão e meu travesseiro. Vi que foram elas por causa do rasto pegajoso e fumegante que deixaram.

Tive de dormir no assoalho naquela noite, com muita dificuldade em pegar no sono devido ao piso duro e gelado, mas permaneci quieto e de bruços quando os ladrões de outra cela entraram para pilhar as sacolas de biscoitos e cigarros que uns parentes me haviam trazido durante a visita do último domingo. Sei quem foram, e na certa me matariam, esses bichos demoníacos sempre estão dispostos a isso, se descobrissem que eu fosse capaz de reconhecê-los e denunciá-los.

Sob um amontoado de cacos de telhas num canto da cadeia perto do refeitório, descobri que cresce uma planta viscosa, entre seus ramos há um ninho de escorpiões. E têm os beirais das janelas além das barras das grades de ferro, infectados pelas fezes dos pombos. Ouço os ratos cruzarem o assoalho à noite toda, pra lá e pra cá. São meus parasitas. Mas quando acabarem as sobras que deixo pelo chão, não tenho a menor dúvida de que serão capazes de tentar me devorar enquanto durmo. Várias noites acordei combalido e não consegui mais dormir com a impressão de que na escuridão centenas deles me espionavam.

Há as moscas varejeiras, procurando feridas por onde infiltrarem seus vermes em minha pele. E os bichos multiplicam-se. Vigiam o desmazelo dos homens. São os agentes físicos da degenerescência da matéria.

Às vezes procuro esquecer minha repulsa, pensar que a higiene e a assepsia são apenas vaidosos caprichos mundanos, não passam de filhas bastardas de séculos de podridão. Entendi que a moda e a estética corromperam o necessário asseio em extravagâncias e futilidades. E quando sua ameaça ainda era uma falácia ou uma novidade, cheguei a estimar os bichos como companheiros no bom humor que ainda me restava.

O humor foi durante anos o melhor amigo de minha sobrevivência aqui. Mas a realidade mostrou-me que aos poucos eles vão me atraiçoando. Foi quando lembrei que os hipócritas vivem apregoando que os animais são todos filhos de Deus, mas se contradizem ao deixarem de contar no número dessa fauna estes micróbios transmissores da peste.

Agora mesmo sinto o avanço meticuloso e perverso dessas pragas. Os bichos travam uma batalha silenciosa contra nossa decência. Aqui, neste ambiente sórdido, está claro que eles estão vencendo, invadindo, tomando de conta, apoderando-se de tudo; e em qualquer lugar em que os vençamos nessa luta pela dignidade, sempre restará um germe a esperar outra oportunidade. Descreio que um dia seremos capazes de bani-los. Os homens que se cuidem. Os aliados dos bichos são essa poeira eterna, e a preguiça, a umidade, a depressão, os fantasmas, as sombras e a solidão.

Há meses que prometeram dedetizar minha cela. Até agora não vieram. Conformei-me. Primeiro, porque não fazia sentido prolongarem a vida de quem querem matar; depois, porque me convenci que qualquer medida profilática é apenas o recomeço de um novo ciclo. Estes bichos estarão em toda parte, incipientes e vorazes a ameaçar nosso gênero.

Ao cair da tarde de hoje, descobri uma porção de larvas debaixo do meu estrado. Vasculhei detalhadamente todos os recantos da cela e não pude descobrir de onde vinham. Não havia resto de comida, nada. Cheguei a me atemorizar com isso. Um carcereiro disse-me que na certa eram larvas de cupim. Mas não tinha como serem de cupim. Depois de muito limpar e as larvas tornarem a aparecer, estremeci com a possibilidade de aquilo ser um mau agouro. Mas como sou um condenado à morte, envergonhei-me com a possibilidade de esse sentimento não ser senão a prova de que eu, ainda que sem saber, tenho alguma esperança de livrar-me da execução.

Em todo o caso, devo estar perto de me libertar ou de esquecer esses bichos. Dormirei tranquilo esta noite, não mais me intimidarão. Afeito que estou com sua presença, o tempo que falta é curto para que alcancem seu propósito de me destruírem com suas torturas e ameaças. Amanhã de manhã bem cedo, tomarei banho, lavarei o cabelo, farei a barba, comerei o desjejum. Talvez me perfume. Talvez faça alguma prece antes de virem me buscar os carrascos.

Quando não sobrar mais nada de mim, os vermes enfim deixarão meus ossos em paz na cova, onde se extinguirá também esse meu derradeiro juízo: o de que só se exterminarão os bichos quando se exterminarem nós todos, os homens.