Era uma vez uma cadela que foi adoptada por uma família de humanos. A cadela era pequenina e peluda, com um tufo de pêlos encaracolados erguidos na testa que fazia lembrar uns rabiscos feitos no ar. Algo que lhe dava um ar muito escanifobético, mas, ao mesmo tempo, muito amoroso. Foi por isso que os humanos passaram a chamar-lhe Amora. A cadelinha adorou o nome e desatou a abanar o rabo e a ladrar sempre que alguém dizia o seu nome. Um ladrar fininho, pois ela era bebé:

— IAU, IAU, IAU, IAU...

Quando a cadelinha chegou à sua nova casa teve uma surpresa. Já lá viviam, para além da família de humanos, um gato chamado Atum - porque tinha o pêlo da cor do atum enlatado, e outro gato chamado Choco - pois o seu pêlo era da cor da tinta que os chocos deitam (um cinzento-escuro). Ora, estes gatos não gostavam de cães. Um sentimento que é muito generalizado nos gatos, pois consta que os cães também não gostam deles. Parece, ninguém percebe bem porquê, que são inimigos antigos. Mas a Amora não sabia nada disto, nunca lhe disseram que era inimiga dos gatos. Daí que, mal chegou e os viu, quis logo brincar com eles, como fazia com os seus irmãos cachorrinhos, quando vivia junto deles e da sua mãe.

— IAU IAU IAU - ladrou ela, abanando a cauda e saltando em volta do Atum e do Choco.

Estes reagiram com uma grande indignação.

— Mas que raio de ideia foi essa de trazerem um cão cá para casa? – disse o Atum.

— Os humanos nossos donos devem estar malucos da cachimónia! – disse o Choco.

A Amora continuou a ladrar e a saltar em volta dos dois gatos, à espera que estes entrassem na brincadeira, mas o Choco reagiu como um gato inimigo dos cães: arqueou o corpo, eriçou os pêlos das costas e fez:

— FSSSSS!

A Amora assustou-se e recuou. Que raio era aquilo? Estaria o gato constipado? Mas o pior veio a seguir: o Choco fez sair da sua pata fofa uma garra e PIM! Arranhou o focinho da Amora. Ui, que dor! A Amora correu dali a ganir:

— CAIN CAIN CAIN CAIN!

E foi-se esconder debaixo da cama de um dos humanos. O focinho da Amora ardia e ela coçava-o com a patinha, tentando abafar a dor. O Choco começou a rir, como rirem os gatos, que é batendo com a cauda no chão duas ou três vezes e fazendo vibrar os bigodes. O Atum assistiu a tudo isto e ficou triste. Ele bem sabe que os gatos e os cães não se dão, mas aquela Amora parecia uma cadelinha simpática e divertida.

O tempo foi passando e a Amora foi crescendo. A certa altura já era maior que os gatos e já ladrava de uma forma muito mais forte. Em vez do

— IAU IAU IAU

já fazia:

— UAU UAU UAU UAU.

Os gatos, esses, mantiveram-se do mesmo tamanho, não cresceram nada. Mas se o Choco se manteve inimigo da Amora, o Atum deixou-se ficar seu amigo e companheiro de brincadeiras. Ambos aprenderam que o que se dizia dos cães e dos gatos não era verdade, eles não tinham de ser inimigos. Assim, o Atum e a Amora fartavam-se de brincar e de comer e de ver televisão e de dormir juntos, sem quaisquer problemas. E jogavam computador. Como é que jogavam computador? Ora, é simples: quando os donos faziam uma pausa e iam buscar umas bolachas à cozinha, deixando o computador ligado, eles iam pisar as teclas fazendo com que computador piscasse e fizesse ruídos. Eles achavam aquilo muito divertido. Mas a brincadeira favorita deles eram as emboscadas. A Amora era especialista em se esconder nas esquinas da casa, esperando a passagem do Atum. E depois:

ZUM!

Atacava-o rapidamente, fingindo morder-lhe as orelhas. O Atum deixava-se cair, fingindo-se rendido ao ataque. Depois riam muito, a Amora ladrando:

— UAU UAU UAU UAU UAU!

e o Atum batendo com a cauda no chão duas ou três vezes e fazendo vibrar os bigodes.

Já o Choco, nunca queria brincar com a Amora e quando ela falava com ele, limitava se a fazer:

— FSSSSS!

E a ficar de pêlos eriçados. O que assustava a Amora e a fazia meter o rabo entre as pernas e esconder-se debaixo da cama.

Acontece que, certo dia, o Choco arrependeu-se de ser tão mau para a Amora. Arrependeu-se mesmo muito. Foi durante as férias de verão. A família de humanos levou os seus animais de estimação com eles para uma casa junto à praia. Essa casa tinha um pátio grande e lá podia-se brincar e fazer explorações. A Amora, que vivera num apartamento a maior parte da sua vida, achou aquilo o máximo. Fartou-se de correr pelo pátio, perseguindo lagartixas que vinham apanhar sol, ladrando aos pássaros que pousavam nos arbustos em volta, brincando com o Atum, que adorava ficar estendido ao sol, a ronronar.

RRRRRRRRRRR

O Choco, por seu lado, como não queria conviver e brincar com a Amora, passava o tempo a explorar as redondezas, saindo do pátio e percorrendo os caminhos em volta.

Numa dessas explorações quase se dava uma tragédia. Ao saltar um pequeno muro, o Choco deu de caras com um cão enorme, a rosnar, de dentes arreganhados.

— GRRRRRR!

O cão pertencia a um vizinho dos humanos e também concordava com o Choco de que os cães e gatos deviam ser inimigos.

— GRRRRRR! - fazia ele, maldoso.

O Choco ficou cheio de medo. Mas quando o cão enorme o tentou morder, o Choco deu um salto maluco, com uma pirueta para trás, e desatou a fugir dali, em direcção à casa de férias dos humanos. Só que o cão enorme perseguiu-o, sempre a ladrar, muito forte e muito feio, com os dentes arreganhados.

— GRRRRRRRR!

O Choco correu, correu, correu e entrou no pátio onde a Amora e o Atum estavam a brincar às emboscadas. O cão também entrou no pátio, quase a morder a cauda ao Choco, e conseguiu encurralá-lo entre a parede e os seus dentes arreganhados. Que aflição! O Choco estava prestes a ser mordido. Mas eis que a Amora, cheia de coragem e bravura, começou a ladrar para o cão enorme com uma fúria muito grande.

— UAU UAU UAU UAU UAU!

O cão enorme achou aquela atitude ridícula. Quem é que aquela cadelinha pequenina pensa que assusta? Mas a Amora estava decidida a defender o Choco e

ZÁS!

Mordeu o cão enorme no rabiosque.

— AUUUUUU! - fez o cão enorme.

E desatou a fugir dali para fora, ganindo de dor.

— CAIN, CAIN, CAIN!

O Choco estava salvo. O Atum veio a correr dar os parabéns à Amora. A Amora estava feliz pois tinha ajudado o Choco e talvez ele agora quisesse ser seu amigo. E assim foi. O Choco foi dar uma turrinha na orelha da Amora e ronronou um bocadinho.

— RRRRRRRRRRR….

Ficaram os três muito amigos e a partir daí passaram brincar juntos.

E pronto, acabou a história.