Quando eu tinha 11 anos, lembro-me de voltar da escola aos pulos, com os olhos rasos d'água, as mãos trêmulas e um contagiante sorriso no rosto. Minha mãe (que estava no tanque lavando roupas) bem que estranhou. Ela olhou para mim, espantada, e não teve outra alternativa senão me abraçar. Sentindo as batidas do meu coração em sua barriga, e acariciando minhas costas, ela perguntou:

— O que aconteceu, Daniela?! Alguém veio correndo atrás de você?
— Não, mãe! A professora veio falar comigo!
— E o que ela disse? - Perguntou minha mãe com sangue nos olhos.
— Ela disse que eu consegui passar da quinta para a sexta série, como a primeira aluna da turma!

Na década de 90, durante os meus tempos de ensino fundamental, havia o que chamavam de “síndrome da quinta série” (hoje conhecida como síndrome do sexto ano”). Se trata da transição da dinâmica em sala de aula, em que a criança na quarta série tinha apenas 1 professor na classe para todas as matérias escolares, ao contrário da quinta série em que se deparava com quase 8 professores diferentes, 1 para cada disciplina. Era dito que nós, alunos, tínhamos que ser ágeis e astutos, pois os professores não seriam tão zelosos e pacientes como eram na quarta série. Assim, já entrávamos com medo na quinta série, com a quase certeza de que seríamos reprovados.

Agora voltando para o início da conversa, o fato de eu ter conseguido ser aprovada da quinta para a sexta série, significou um marco histórico na minha vida, ainda mais como primeira aluna da turma. Eu queria mais o quê? Férias, com certeza...rs.

Foi então que minha mãe gentilmente olhou para mim e disse:

— Minha filha, não sorria tanto, não fique tão feliz ou poderá infartar como sua avó. Ela morreu de felicidade, de tanta emoção.

Eu bem que me lembro dessa época. Vovó morreu numa madrugada, depois de ter dado uma superfesta para a família, em comemoração às suas bodas de prata. Ela inclusive dançou na festa com um véu, que na semana seguinte cobriu seu corpo na caixa de madeira. Muito triste.

Me lembro também da minha mãe me repreender enquanto eu jogava stop com a minha irmã. Quando uma de nós gritava stop, era aquela emoção. Minha mãe, no entanto, me olhava nos olhos e dizia:

— Calma, Dani, muita calma.

Assim, após os 11 anos, eu cresci tendo uma infância sisuda, circunspecta, com testa franzida e cara de seriedade, desconfiando até da minha sombra. Foi difícil ter muitos amigos, brincar com outras crianças (a menos que minha irmã estivesse junto), pois cresci tendo uma aparência austera, convivendo com a palidez como camisa de força.

A felicidade bem que veio em outros momentos, mas minha postura quanto a ela sempre foi de medo, hiper vigilância e autodefesa. “E se uma tragédia se abater sobre mim?” – eu pensava. “E se alguém da minha família morrer?” - outro pensamento cheio de incerteza e medo.

Meu medo e quiçá aversão à felicidade eram tanto que resolvi pesquisar no “Dr. Google” se havia alguém assim como eu. Para minha surpresa, encontrei tanto em sites nacionais quanto internacionais, respostas e até pesquisas bem interessantes. Vou compartilhá-las com vocês.

O medo e a aversão de ser feliz ou estar alegre têm nome. Chama-se querofobia. O termo tem origem grega em que quero (χαρά) significa alegre e fobia (φοβία) significa medo. Segundo este editorial de saúde mental, a fobia da felicidade tem a ver com a ansiedade que uma pessoa tem em fazer alguma atividade que a fará alegre. Por causa desta ansiedade, a pessoa deixa de fazê-la, rejeitando qualquer coisa que a faça feliz.

A pessoa com esta fobia não deseja estar triste, mas rejeita a felicidade porque acredita que demonstrar alegria deixará outras pessoas frustradas ou descontentes. Além disso, querofóbicos acreditam que a felicidade atrairá coisas ruins para sua vida, por isso evitam estar rodeados de pessoas, ou participar de eventos que os levem a um estado de prazer e bem-estar, como festas de aniversário, almoços em família, ou outros eventos sociais, salienta o artigo.

Mas além da felicidade estar relacionada a emoções negativas, ela também pode estar ligada a problemas psicológicos na infância. É o que aponta um estudo publicado no Indian Journal of Psychiatry por pesquisadores na Turquia. O objetivo do estudo foi avaliar o medo da felicidade entre estudantes universitários turcos e sua relação com gênero, trauma psicológico na infância e dissociação. A todos os participantes, a maioria mulheres, foram aplicados escalas e questionários. A saber: Escala de Medo da Felicidade; Questionário de Trauma Infantil; e a Escala de Experiências Dissociativas.

De acordo com o estudo, as mulheres pontuaram mais alto para abuso emocional na infância e medo de sentir alegria. Já entre os homens, experiências de despersonalização (tipo de transtorno dissociativo, em que a pessoa tem a sensação de estar desconectado do próprio corpo, devido a eventos traumáticos) se relacionaram significativamente com o medo da felicidade.

O artigo cita ainda quecrianças que foram punidas por adultos após um prazer, aprendem a não se sentir bem com emoções positivas, e que indivíduos supersticiosos acreditam que ser feliz demais pode atrair algo ruim, como mal olhado e inveja, por exemplo.

O estudo conclui ainda que há de fato uma relação entre trauma psicológico na infância, dissociação e medo da felicidade de forma mais explícita nas mulheres do que nos homens. No entanto, é especulado se a negação do trauma na infância ajuda as mulheres a derrotarem o medo da felicidade, enquanto a absorção (um mecanismo alternativo de evitar memórias traumáticas em que a pessoa fica absorvida em suas próprias imagens mentais) aumenta esses medos entre os homens, finaliza o artigo.

Outra questão muito levantada por pesquisadores, tem a ver com as principais causas da aversão e do conceito de felicidade entre diferentes culturas. Sobre isso, um artigo de pesquisa publicado pela International Coach Academy nos apresenta alguns pontos relevantes sobre o tema. Segundo o estudo:

  • Nem todas as culturas promovem a autofelicidade, assim cada cultura tem a sua crença e valor próprio sobre a felicidade.
  • Algumas culturas apresentam aversão à felicidade, por acreditarem que estados alegres podem gerar maus resultados.
  • As culturas ocidentais são mais propensas a associar a felicidade com ideias de progresso, liberdade e igualdade. Nos Estados Unidos, por exemplo, a felicidade é um direito consagrado pela Declaração de Independência dos Estados Unidos (que salienta que todos os homens são criados iguais, dotados por seu criador de certos Direitos inalienáveis, como a Vida, a Liberdade, e a Busca da Felicidade).
  • Para os orientais, a felicidade vai muito além do bem-estar individual, mas tem a ver com o papel que cada um representa na sociedade. Para eles a felicidade pessoal pode atrapalhar as relações sociais, sentindo-se mais pressionados a pertencer do que a buscar a felicidade para si.
  • O conceito japonês de felicidade tem relação com a importância que se dá ao trabalho, bem como o papel que este tem para impactar positivamente a sociedade. Tem a ver também com harmonia social, e não com estados de euforia, por exemplo.
  • Para os americanos excitação e euforia tem a ver com estados alegres de espírito. Ao contrário dos chineses (de Hong Kong) que associam a felicidade a tranquilidade e calmaria.

Como podemos perceber o conceito de felicidade, como ela é compreendida e buscada, é bastante complexo e subjetivo. Considera o conjunto de valores, crenças, concepções e normas sociais de cada sujeito inserido em um país e cultura distintos. Tal como a busca pela felicidade, a aversão à ela também é bastante particular e envolve crenças, pensamentos e comportamentos variados.

O artigo finaliza apontando as crenças mais comuns associadas ao medo da felicidade. Dentre elas estão a de associar a felicidade a tristeza, como se uma dependesse da outra; a de considerar a felicidade como um estado que acabará logo, tal como as mudanças da vida; medo de ficar desapontado quando a razão da felicidade for embora; ficar feliz demais pode levar uma pessoa à loucura; ficar muito feliz torna a pessoa mais distraída e descuidada; alguns artistas acreditam que a tristeza os deixa mais criativos e produtivos no trabalho.

Seja qual for o motivo para temer a felicidade, ele é pessoal e intrasferível. Tem a ver com a história de vida e a forma com que cada pessoa enxerga, compreende e sente o mundo. E é justamente por causar medo, inquietação e pensamentos obsessivos, é que a querofobia deveria ser mais estudada e observada por terapeutas, pesquisadores e clínicos em saúde mental.

Mesmo não sendo reconhecida clinicamente no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a querofobia é um tipo de fobia e, portanto, se encaixa dentro dos Transtornos de Ansiedade.

A fobia da felicidade ocorre quando a pessoa desenvolve um medo irracional e desproporcional acerca de qualquer situação que o deixe feliz, causando assim prejuízo, ansiedade e comportamento de evitação na rotina da pessoa. No entanto, como qualquer fobia, a querofobia pode ser tratada. Dentre os tratamentos mais sugeridos por profissionais estão a Terapia Cognitivo Comportamental, em que a pessoa aprende a identificar pensamentos e crenças negativas, e de que forma pode gerenciar melhor seus medos e ansiedades; Técnicas de relaxamento e meditação como o Mindfulness, onde o praticante é estimulado a respirar pausadamente enquanto foca sua atenção e pensamentos no momento presente, ao invés de manter o seu foco no passado ou ansiar acerca do futuro, sobre “o que lhe pode acontecer”.

Quanto a mim, a querofobia que tanto me perseguia, aprendi a levar para a terapia. Tanto a terapia cognitivo comportamental, quanto as práticas de mindfulness tem me ajudado bastante. Tenho focado mais no tempo presente, e aprendido a gerenciar meus pensamentos e medos quanto à felicidade, de maneira a observar expectativa versus realidade.

Muitas pessoas sofrem por temer a felicidade em suas vidas, mas desconhecem que não estão sozinhas. A querofobia é um medo real, e merece toda a atenção de pesquisadores e profissionais da saúde mental. Afinal de contas, viver com fobia é viver angustiado e todo mundo merece ser feliz. Sem medo.