Ver um filme russo, no cinema, atualmente, é em si mesmo uma experiência quase transgressiva. Mesmo sem nunca ter sido uma cinematografia popular, a Russia teve sempre respeito, interesse e seguidores no resto do mundo, sem excepção para Portugal. Nikita Mikhalkov, para dar um exemplo ainda recente, era regularmente exibido em Lisboa em cinemas comerciais. Hoje, por causa da invasão da Ucrânia, dificilmente poderia ser assim. Fácil seria montar uma campanha de denúncia e protesto, semelhante (e talvez ainda mais eficiente do ponto de vista mediático) às que se geraram logo em 2022 em torno da Literatura russa. Com uma ou outra honrosa excepção, o cinema russo está efectivamente banido, quase tão efectivamente quanto as emissões dos seus canais televisivos. Claro, há sempre excepções culturais, como a exibição, no dia em que escrevo, de Eisenstein na esplanada da Cinemateca. Mas essas excepções apenas comprovam a regra actual, o estado de facto das coisas (a verdade efectiva da coisa, digamos). O tema só se torna diverso quando, sem essas cláusulas excepcionais (a museologia, no caso da Cinemateca), se pode assistir a cinema russo, hoje.

E a oportunidade existiu em Lisboa, em Julho de 2023, ainda que de forma quase clandestina. Numa sala de cinema longe de comercial, na verdade um cinema universitário (a sala Fernando Lopes, na ULHT, Campo Grande), em que o público que noutras alturas se deslocaria ao Nimas ou ao Quarteto pôde assistir a A Fuga do Capitão Volkonogov, produção de 2021 coproduzida por russos e estonianos. Quando este artigo for publicado é certo que o filme já terá saído de cena; mas graças à WWW o leitor pode sempre encontrar uma solução. Nunca é a mesma coisa que ver numa sala de cinema, mas nem por isso deixa de ser uma possibilidade valiosa, que em tempos não muito distantes seria recebida como um luxo salvífico.

Muito bem recebido pela crítica e pelo público, o filme passa bem sem um resumo, dado o seu interesse exceder em quase tudo o registo de thriller histórico que ostenta. O filme não é apenas russo na língua nem no cenário. O tema, a realização, a música, a dança, enfim, a experiência do filme é uma imersão em muito – nunca poderia ser tudo, num cinema tão matizado como o soviético/russo – do que associamos àquela filmografia e, mais do que isso, a uma cultura que só por uma redução muito canhestra se pode resumir a «eslava». É quase totalmente um filme da parte europeia da Rússia, geograficamente menor mas institucionalmente dominante – e por isso culturalmente definidora.

Nisso a territorialidade da Federação Russa, como antes a da URSS (cenário do filme), é expressão fiel da condição do continente europeu, esse pequeno cabo da Ásia como Valéry um dia o disse. Provavelmente nunca será um «clássico» dessa cinematografia; mas ainda assim, e sem dúvida que para isso contribui o cenário geopolítico actual, é um filme distinto de quase tudo o que podemos ver e que nos fala de um modo invulgar – um modo que conhecemos bem daquela tradição.

«Falar» não é modo de dizer meramente aproximativo. É notável como a violência, quase contínua nos 126 minutos de duração, não serve para efeito visual, compensatório da exiguidade do argumento, como ocorre em tanto cinema que se vê nas salas e em todos os outros écrans; é como fala, como discurso, que essa violência adquire preponderância. Símbolo disso mesmo, o final do protagonista, que o enuncia ao seu interlocutor no próprio instante em que consuma essa violência. O choque tem ali um verdadeiro valor simbólico. E todo o filme, mesmo naquilo que tem de cenografia propositadamente estilizada (os uniformes ‘orangeclockworkianos’, os cenários desolados de pobreza extrema), fala simbolicamente.

Muita da sua recepção crítica nota-o, ainda que apenas pelo ângulo do contexto actual (a associação Estaline-Putin) – e isso não é incorrecto, mas felizmente é muito mais do que isso o que o filme diz, dando-nos a ver.

Num cotejo talvez injusto em termos absolutos, mas que aqui serve apenas para efeito ilustrativo, a coincidência temporal deste filme com a exibição de Asteroid City de Wes Anderson é útil para destacar essa dimensão simbólica. Onde o filme de Anderson é todo ele (nos pontos fortes e nos fracos) feito de reconhecimento do já visto – a figura parental ausente, as crianças precoces, os adultos infantilizados – o percurso do nosso Capitão é todo diverso, feito de assalto do espectador pelo simbolismo de cada imagem, de cada diálogo, de cada expressão (sem os maneirismos das personagens de sempre de Anderson, por vezes A Fuga... parece descendente de um expressionismo característico do cinema mudo, soviético e alemão).

Saindo do domínio cinematográfico – e sem qualquer outro alcance que o da associação de ideias – A Fuga do Capitão Volkonogov recorda em numerosos momentos a leitura de O Passo da Floresta, de Ernst Jünger. Como no capítulo 22 do ensaio é explicado pelo autor, a dita floresta pode estar num quarteirão de uma grande cidade. E o protagonista deste filme, confrontado pelo medo generalizado em seu redor, procura uma passagem para fora dele, percorrendo as várias facetas da reflexão jungeriana de forma original, passando de trabalhador a desterrado para acabar soldado desconhecido – o que neste contexto tem um sentido adicional, pois o mundo deste filme não é já descendente da cavalaria ocidental. Nesse sentido, estamos todos mais próximos do Capitão do que o isolamento actual da Rússia poderia sugerir, o que é algo que não poderá espantar o leitor de Jünger.

Assista ao trailer oficial do filme: