Às 15h30, na Cinemateca Portuguesa, as luzes desvaneceram suavemente, anunciando a chegada do inigualável Douglas Sirk à tela da Félix Ribeiro. O filme era "A Time to Love and a Time to Die" e integrou a parte III de um ciclo a que a Cinemateca Portuguesa deu o nome de "A guerra no cinema: Para além do campo de batalha".

Nascido a partir de um romance de Erich Maria Remarque, o filme de 1958 apresenta-nos um retrato cru e austero: os destroços e escombros da Alemanha do pós-guerra surgem como cenário apocalíptico, no qual se desenvolve um romance intenso vivido pelos protagonistas. Douglas Sirk é conhecido como um dos grandes mestres do cinema alemão. Destacou-se em Hollywood na década de 50, a par dos seus emblemáticos melodramas intensos. É possível que tenha ouvido falar de "Imitation of Life", "All that Heaven Allows" ou "Written on the Wind". Com formação académica em Teatro pela Universidade de Munique, a quinta arte foi a raiz do seu percurso nas artes – e, no cinema. Tendo como motor o estudo do teatro e a eclosão da segunda grande guerra, o realizador viu-se imigrado na década de 40 nos EUA, onde iniciou a sua história no cinema – e a sua estreia em Hollywood. Escrevemos mesmo sobre aquilo que sabemos e, neste caso, Douglas Sirk sabia demasiado – “A Time to Love and to Die” foi, a meu ver, a materialização mais realisticamente simbólica da experiência de um soldado contaminado pela desumanização da guerra.

Durante uma hora e meia, o filme entrou coração adentro – note-se os comentários que volta e meia o senhor atrás de mim lançava, relativos à “beleza dos diálogos” de Douglas Sirk que, aliado a Orin Jannings e a Erich Maria Remarque, nos proporcionou este belíssimo filme. No fim da sessão, todos os espetadores se levantaram, na evidência de que esta teria sido uma experiência de cinema profundamente agridoce – as lágrimas escorriam no escuro da sala, os corações estavam feridos e, para alguns, as memórias desbloqueadas. Inclusive, o mesmo senhor que, anteriormente, se pronunciava, disse com emoção: “Bravo Cinemateca! Já não se fazem obras destas”.

Sendo que, num contexto epistemológico da história do cinema, este filme – e, este realizador – se poderia inserir no período a que chamamos de “cinema clássico”, não pude deixar de achar interessante esta dicotomia que opõe qualitativamente o cinema clássico do cinema “dos dias de hoje”: Será que já não se fazem mesmo obras assim? Será que o cinema contemporâneo, para estas pessoas está arruinado? O que estará na base deste argumento?

Na companhia das pessoas mais velhas parece haver este script meio pré-programado do que havia antes era melhor – ouço-o em conversas e, em todas elas, esta disputa se circunscreve ao universo das artes. Quantas vezes não vamos à exposição com o avô (ou com quem quer que seja, desde que da “velha guarda”) e de frente para os quadros de da Vinci, Caravaggio ou Velázquez, em comparação com o piso da arte contemporânea, ouvimos: “Isto é que é!”. Serve este artigo para desmistificar esta questão e abrir um espaço de conversa: Terá este argumento raiz na ligação emocional-nostálgica de um tempo desejado ser vivido novamente?

Importante notar que o meu objetivo não é categorizar obras de arte na cadeia hierárquica do valor, muito menos assumir que a arte pode ser definida em conformidade com critérios objetivo-racionais: escrevo isto sob os alicerces da subjetividade. O que me interessa verdadeiramente é entender a origem desta preferência, atendendo o universo artístico no seu todo.

Muitos teóricos colocam o relativismo artístico como fator gerador deste preconceito relativo à arte moderna e contemporânea. O impressionismo como vaga modernista do século XIX, permitiu instaurar pela primeira vez, uma rutura com os ditos valores clássico-tradicionais da academia. Critérios objetivos apoiados no cumprimento de uma disciplina estética estanque foram dando lugar a uma humanização progressiva baseada na legitimação do eu – o que eu acho? O que eu sinto? Servindo isto para assumir a modernidade como a fase de desenvolvimento de uma mentalidade associada ao desligamento teórico-prático de regras e convenções dogmáticas.

Esta nova liberdade e individualidade criou, aos olhos de muitos, espaço para o absurdismo. “At this point I can just sell my little sister's scribble drawings for millions of dollars and say they're on par with Da Vinci's works with deep meanings” e “Modern art would be like releasing a music album consisting of the sounds your washing machine makes and then saying it's on par with Mozart” são dois dos muitos comentários – de um vídeo do Youtube “Why modern art sucks” - que surgiram durante as minhas pesquisas. Existe uma certa ridicularização em torno da arte dos dias de hoje em função do “eu podia fazer igual”. Muitos chegando a considerar que o valor das ditas obras de arte moderna surge associado meramente à legitimação das próprias instituições artísticas - a entrada nesse universo significo transforma o objeto e renomeia-o: pertinente mencionar a obra de Duchamp a propósito desta ideia.

Ora, a conceptualização simbólica e intelectual subtrai-se no esquema de apreciação pública quando comparada com a apreciação estética do objeto. É pertinente referir Deleuze a propósito deste contexto e, especificá-lo ao cinema. Em “A imagem-tempo” o autor discute a transição do cinema clássico para o contemporâneo. Deleuze considera que o cinema clássico se desenvolve sob uma lógica que pressupõe a construção de uma narrativa lógica linear que imita a realidade – assim como é percetível no filme de Douglas Sirk acima mencionado. Em contrapartida, o cinema contemporâneo – na sequência do relativismo artístico – parte de uma abordagem mais subjetiva em que a imagem-tempo se concretiza em conformidade com as próprias pretensões singulares do criador. É um cinema que tem desafiado convenções narrativas clássicas e, apostando mais numa complexidade maior a nível temporal, conceptual e emocional.

Será esta a raiz deste desagrado comum referente ao cinema atual – e à arte no geral? A priorização da subjetividade individual que, aos olhos de muitos, abre porta para uma desvalorização do objeto em si em prol das intenções do próprio criador? É interessante refletir acerca disto e das consequências de uma arte que deixa de basear-se numa mimética objetiva da realidade para passar a estar interessada numa exploração interior de sentido (por parte de quem a faz e de quem a recebe) – estaremos menos aptos para entender obras de arte sob este prisma que pressupõe uma criação mais complexa de pontes e relações simbólicas? Será que por isso que “gostamos menos” da arte atual? Porque na verdade não a compreendemos?

É esta “transgressão narrativa” - que muitos culpabilizam como geradora de uma maior liberdade criativa - que coloca o cinema contemporâneo aquém do “grande cinema clássico” de Hollywood dos anos 50.

Acusa-se também o cinema contemporâneo de “falta de autenticidade e individualidade”. Claro que o desligamento acima mencionado é razão suficiente para justificar esta negligência de que se fala no fazer cinema atual – sobretudo pela óbvia ausência de rigidez teórico-prática. Interessante este antagonismo: por um lado, a aposta na subjetividade criativa faz com que o cinema dos dias de hoje abra porta a uma maior complexidade conceptual, por outro, promove a criação de um “cinema desligado de essência”. Esta última vem, a meu ver, de mãos dadas com o grande negócio que é o cinema atualmente. O Netflix, a HBO e todas as grandes plataformas de streaming lançam-se hoje como produtoras independentes que vêm alterar o paradigma de criação e distribuição cinematográfica: os cineastas produzem para uma plataforma. Perde-se o valor autoral e os filmes tornam-se despersonalizados em função de uma grande indústria lucrativa.

Embora considere importante este questionamento, não nos percamos demasiado nisto. Importa assumir - e, adotando uma ponto de vista arqueológico das coisas – a influência e relevância temporal que o cinema de ontem e o cinema de hoje estabelecem um com o outro.