Ainda diante do espelho das águas do Tejo, no espelho de água em que a margem se remata…
No meu texto anterior (“À beira-Tejo. A ponte, as pontes!”, 17/6/2023), elegi as pontes, símbolo de (re)ligação, via de passagem, sinal do processamento metonímico do pensamento, marca da acção do homem na natureza, afeiçoando-a a si. E concluí com a referência a uma enorme instalação de Lorenzo Quinn na Bienal de Arte de Veneza 2019 com uma espécie de túnel composto pela sucessão de seis pares de mãos entrelaçadas no ar na entrada do Arsenal de Veneza em ovação ou oração pela Humanidade desorientada. Ora, as mãos são, por excelência, a ponte entre o ser humano e o seu contexto, o gerador simbólico da sua pegada antropocénica…

Unidas e erguidas em posição de oração constituem, performativamente, a prece em quase todas as grandes tradições religiosas e espirituais: exprimem a ânsia de “um pouco mais de azul” (Mário de Sá-Carneiro), esse azul em que convergem poetas e cientistas (Hubert Reeves consagra-a em título de obra). Nessa convergência ansiosa, evidenciam-se em toda a obra humana e favorecem uma volta ao mundo tão rica e espantosa como as pontes que as formatam desumanizadamente. Ensaiemos essa viagem pela sua diversificada ocorrência. E enfrentemos a vertigem das listas com que Umberto Eco nos acenava…

Comecemos onde a vida parece ter começado a organizar-se: nas cavernas. Será exactamente uma mão quiçá a mais antiga pintura rupestre: com pelo menos 40 mil anos, foi descoberta na parede de uma gruta na Ilha de Celebes, na Indonésia. O mistério do gesto e a impressão de contemporaneidade atravessam os tempos, acenam com enigmatismo.

Passemos aos templos, esses lugares onde se cultua a inscrição vertical da humanidade entre imanência e transcendência.

No templo de Kinkaku-ji (Pavilhão Dourado), em Kyoto, Japão, a escultura "yubi no taki" ("cascata de dedos"), com mãos em relevo, entrelaçadas numa cascata, unidas em prece , ocupam uma parede de pedra lembrando a união, a oração e a harmonia entre as pessoas. Com o mesmo sentido, podemos observar, dentre outros motivos, essas mãos entrelaçadas e simbólicas na fachada do Taj Mahal, em Agra, Índia, e no Wat Rong Khun (Templo Branco), em Chiang Rai, Tailândia.

Na literatura

Passemos às Letras.
Em Macbeth, Lady Macbeth tenta lavar o sentimento de culpa nas mãos manchadas de sangue na famosa fala "Out, damned spot! Out, I say!" ("Fora, maldita mancha! Fora, eu digo!"), sinalizando as sombras do espírito humano…

E, contrastivamente, evoquemos alguns poemas dedicados às mãos: "Manos de mujer", de Alfonsina Storni (Argentina) celebram as mãos de uma mulher como "flores frágeis" e "asas de um colibri"; "Las Manos", de Miguel Hernández, assinala-as como ferramenta de trabalho com poder de transformação; "The Hand," de Robinson Jeffers, elogiando o seu poder criativo, também alerta para o potencial destrutivo. Mais desalentadas são as de "La Mancha en el Espejo", de Octavio Paz, "árvores caídas" anunciando a mortalidade, ainda que a confiança surja, semi-compensatoriamente, no poema americano "Hands", de Sara Teasdale, juntas "até o fim do caminho". "Ode to Hands", de Walt Whitman, celebra a sua diversa e contrastiva capacidade (lesiva, defensiva, produtiva, criadora…)

Na pintura

Na pintura, elas surgem como protagonistas e/ou integradas numa mais vasta composição. Protagonistas, ei-las nas renascentistas Praying Hands (1508), de Albrecht Dürer, nos “Estudos de Mãos”, de Leonardo da Vinci, e nos jogos de ilusão óptica de M. C. Escher, com destaque para as recíprocas "Drawing Hands" (1948) e a erecta "Hand with Reflecting Sphere" (1935), e nas "The Hands" (1940s), de Alberto Giacometti. Giacometti, que as esculpira também, numa representação "Hands Holding the Void" (Invisible Object, 1934).

Integradas numa composição mais vasta, destacam-se, inequivocamente, as de A Criação de Adão, de Michelangelo, que, no teto da Capela Sistina, no Vaticano, simbolizam o momento da criação da humanidade, num encontro do diferente evocado e actualizado pelo do ser humano com o seu homólogo extra-terestre no E.T. the Extra-Terrestrial (1982), de Steven Spielberg, oferecendo-se como sugestão para as actuais configurações da relação entre o homem e a Inteligência Artificial.

As "Hands", de Frida Kahlo, exprimem o sofrimento vivido, as d’ A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, suspendem-se na história, as d’ A Anunciação, de Sandro Botticelli, congelam o gesto de se tocarem figuras de diversa natureza (o Anjo e Maria), as d’Os Quatro Apóstolos, de Dürer, compõem o diálogo de uma história em que cada um cumpre um papel, as d’ O Grito, de Edvard Munch, sublinham e emolduram o horror, as de The Hands Resist Him, de Bill Stoneham, flutuam inquietantemente ao fundo da cena por trás da janela, as d’ O Nascimento de Vénus, de Sandro Botticelli, dançam ao ritmo dos mitos. "Melancolia I" (1514), de Dürer, por seu turno, hesita entre exercício de escrita da direita e o desalento da mão esquerda em que a cabeça do Anjo se apoia, gesto este retomado pela escultura O Pensador, de Rodin, meditando sobre a porta do Inferno de Dante, simbolizando a Humanidade.

Enfim, se as de Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, se sobrepõem como base do enigma da composição, a de Diego Velázquez em Las Meninas, empunhando o pincel suspenso no gesto, parecem oficiar ao espelho o ritual do mistério da pintura.

Na música

E as ritmadas pela música? Hands, de Jewel, celebra a capacidade das mãos para criar, tocar e curar, enquanto Helping Hand, de Screaming Trees, destaca a importância da solidariedade que a afectividade e a emoção insuflam. I Want To Hold Your Hand, dos Beatles, elege a relação interpessoal que Hands All Over, do Soundgarden, embebe de paixão. Hands, de The Raconteurs, sinaliza a mudança e Diamonds On The Soles Of Her Shoes, de Paul Simon, celebra a cultura africana e os ritmos que podem ser tocados com as mãos, enquanto My Church, de Maren Morris, o faz com a comunhão entre amantes de música.

Embalada pela música, o gesto da "Mão de Odalisca", na sua fluidez ondulante, é icónico e inesquecível na dança do ventre.

Na escultura

A escultura oferece-nos as mãos volumetrizadas, dramatizadas no movimento suspenso, suspeitado. Desde as já mencionada d’ O Pensador, mas também as d’ O Abraço, sem esquecer as que constituem a obra em exclusivo de Rodin, à Mão com Espelho, de Salvador Dalí, ambas imbuídas da busca de (auto)conhecimento. As que gestualizam histórias como as do David e do Moisés de Miguel Ângelo, mas também a do David de Donatello, ou às do Êxtase de Santa Teresa de Gian Lorenzo Bernini, passando pelas de Antonio Canova em Amor e Psique, até às frágeis e patéticas de Alberto Giacometti. D’ As Mãos do Pai, no Monumento Nacional ao Imigrante, em S. Paulo, Brasil, à Hand of Peace em Belfast, Irlanda do Norte, segurando a pomba branca da reconciliação, e às Hands of History. A contemporary Art Exhibition reflecting on 25 years of peace in Northern Ireland, de Raymond Watson, mas também às Hands Across the Divide, com dois homens estendendo a mão ao outro em reconciliação e esperança.

As de Louise Bourgeois, com diferentes materiais, posições e gestos, a do Monumento a Alfonsina Storni, de Marta Minujín, a mão de uma escritora argentina a segurar uma pena, a Mão Afro, de Yinka Shonibare, envolta por tecidos coloridos sinalizando a diferença cultural. Two People, de Sean Henry, simbolizando a amizade como The Hand of Friendship, de Hugh D. Crawford, The Proposal, de Rafael Richarz, simbolizando o amor, ou a do Palazzo Comunale de Siena, Itália, de Julie Charlotte Garnier, unindo as mãos através do tempo.

Na arquitectura

Na arquitetura, também podemos registar o motivo: na Casa Battlo em Barcelona, projetada por Antonio Gaudi, com varandas em forma de mãos; as dos portões do Templo de Abu Simbel no Egito; as de Cristo segurando as chaves do céu na Basílica de São Pedro, no Vaticano; as de divindades hindus nas paredes do Templo de Angkor Wat no Camboja. E as das Pontes: as da Ponte das Mãos na Coreia do Sul, com pilares esculpidos em forma de mãos humanas, ou a da Ponte Suspensa de Carlopolis em S. Paulo, Brasil, mão gigante segurando as correntes da ponte. A do Palácio do Planalto em Brasília, segurando uma espada em frente da bandeira nacional.

Mãos Gigantes

A mãos gigantes emergem hesitantes entre escultura e arquitectura, impondo-se ao nosso campo visual, excluindo tudo o mais e causando estranheza e surpresa. Celebrando o apoio, a ajuda: Support, de Lorenzo Quinn, no Grande Canal de Veneza, e The Caring Hand, de Eva Oertli e Beat Huber, segurando um edifício em Zurique, Suíça. A Mão com Maçã, de Claes Oldenburg, em tamanho gigante, segurando uma maçã vermelha, as Gigantes do Grande Canal de Veneza, obra de Lorenzo Quinn, a Giant hybrid face-hand installed on roof of art gallery in Wellington, a Hand of Harmony, no Parque Expo Yeosu, Coreia do Sul, relativa à harmonia entre os seres humanos e a natureza. Hands and Molecule, David Barnes, em Ramsgate, Kent, celebrando a inovação na saúde (foi financiada pela empresa farmacêutica Pfizer).

A Mão do Deserto, de Mario Irarrázabal (autor também da Mano de Punta del Este, no Uruguai, e da Mão, de Madrid, Espanha), no deserto do Atacama, no Chile, emergindo da areia em resistência à adversidade, e a sua homóloga de Juan Carlos Bustamante na costa do Pacífico do Atacama, Chile, ou as que emergem da água, como as The Bridge Hands, em Bristol Harbourside, Reino Unido, a Hand of a River God, de Vincent Woropay em Bristol, e as impressionantes da Golden Bridge, Vietnam.

Todas parecem conduzir-nos, por fim, à famosa A Mão de Deus, de Carl Milles, no Parque Millesgården em Estocolmo, Suécia: segurando o mundo, simboliza magnificamente o poder divino e a criação. Imaginariamente diante dela, elevam-se as Praying Hands, à entrada do campus da Oral Roberts University Tulsa, nos Estados Unidos, e, ao lado, justifica-as o Memorial do Holocausto, de Kenneth Treister, em Miami, Flórida, um braço estendido de 12m de altura com um número inscrito como as vítimas, que busca o céu com centenas de pequenas figuras humanas agarradas a ele e umas às outras em desespero.

Suspendo-me nessa prece que também se coreografada no Tejo, entre o Padrão dos Descobrimentos, nau da História susceptível de desdobramento revelando duas mãos unidas, materializando a prece de António Quadros (“Uma lenta e insegura prece”), que Fernando Pessoa verbalizou no poema assim intitulado da sua Mensagem, com ilustração de Almada a ela dedicada (“Prece”, 1934), e o Cristo-Rei a quem ela parece dirigir-se. A nossa viagem continuará noutro dia. Ou talvez não.