A Pós-modernidade trouxe consigo uma Arte que, diferente do Modernismo que a precedeu, abandonou a necessidade de ser estritamente original. A Arte Contemporânea muitas vezes é construída a partir de obras já existentes. Porém, os elementos retomados nas obras pós-modernas são uma espécie de transgressão, uma repetição que produz um novo. Ao realizarem uma releitura de elementos, formas ou procedimentos de obras anteriores, os artistas contemporâneos produzem uma reelaboração e um rompimento com interpretações e contextos nos quais elas haviam sido concebidas.

E antes que se levante a polêmica sobre sua originalidade ou classificação como uma espécie de plágio, é importante diferenciar “releitura” de “cópia”. Enquanto a primeira é fundada em novas interpretações de uma obra cuja autoria é explicitamente declarada; a segunda apresenta parte ou toda a obra alheia como se fosse de sua própria autoria. As releituras artísticas contemporâneas trazem consigo uma singularidade que as tornam autorais, sem retirarem os créditos das obras que as inspiraram.

Em contraponto à Arte Moderna que tinha como premissa a busca do único, novo e original, a Arte Pós-moderna é uma transgressão quanto a esses próprios conceitos. A repetição utilizada como ferramenta artística deixa brechas onde a diferença surge no seio das semelhanças, com elementos e interpretações completamente singulares.

São inúmeros os exemplos de artistas contemporâneos que utilizam o recurso de repetições e releituras de obras que os precederam. O artista Mundano, em especial, demonstra como o contexto histórico pode reinterpretar propostas artísticas, trazendo novas pautas e intencionalidades. Ele questiona o cenário atual da arte e da sociedade humana através de um movimento conhecido como ARTivismo: o uso da arte como instrumento de alerta, protesto e transformação social.

Mundano é um paulistano, nascido em 1986, que tem um claro posicionamento político, ambiental e social na vida e na arte. É um importante empreendedor social que busca inspiração para sua arte na realidade das ruas. A escolha pelo Grafite se deu em conformidade com o objetivo de alcançar o maior número de pessoas, ampliando sua comunicação com o público e com as camadas populares, normalmente alijadas do acesso às Galerias de Arte. Seu ativismo pessoal e qualidade artística o transformaram em um aguerrido “artivista”.

Reconhecido e premiado internacionalmente, Mundano utiliza com frequência o recurso contemporâneo da repetição de obras consagradas para provocar novos questionamentos e reações sociais. Chamou essa série de releituras de #releiturasmundanas. Poderíamos citar os seus trabalhos a partir da obra do artista japonês Hokusai (A Grande Onda de Kanagawa), de Di Cavalcanti (Convite para a Semana de Arte Moderna de 1922) ou de Candido Portinari (O Lavrador de Café). No entanto, destacaremos seus trabalhos recentes que denunciam uma das maiores tragédias humanas e ambientais do país: o rompimento da barragem da Mineradora Vale, na pequena cidade de Brumadinho em Minas Gerais.

A catástrofe criminosa ocorreu em 25 de janeiro de 2019 na Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. A barragem se rompeu, a sirene que deveria alertar os funcionários e a população do perigo não funcionou e a lama tóxica produzida pela mineração arrastou e soterrou centenas de pessoas, animais, árvores e construções. Em poucas horas a lama atingiu o Rio Paraopeba, afluente do Rio São Francisco, causando um impacto ambiental e humano numa amplitude geográfica de enorme alcance. A negligência e atitude criminosa da mineradora foram causadoras de uma tragédia sem precedentes que ceifou 270 vidas e transformou o cotidiano de milhares de outras. No entanto, permanecem impunes.

Logo após o rompimento da barragem, Mundano foi até Brumadinho e participou das mobilizações ao lado das pessoas diretamente atingidas pelo crime ambiental. O artista recolheu parte da lama tóxica despejada no Rio Paraopeba e a utilizou em duas obras impactantes do ponto de vista artístico e político. Em ambas, Mundano utilizou elementos de repetição a partir de obras icônicas de Tarsila do Amaral: O Abaporu (1928) e Os Operários (1933).

Mundano traz elementos contemporâneos de reflexão e protesto para obras de Tarsila que, em sua época, já tinham um viés contestador. Apesar da artista ter uma origem elitista, nascida em uma família de latifundiários paulistas, sempre apresentou em sua vida e obra uma sensibilidade social e revolucionária. Tarsila do Amaral foi uma das maiores representantes do Movimento Modernista Brasileiro e permaneceu inspirando artistas contemporâneos.

A obra Abaporu - marco da fase antropofágica do Movimento Modernista - significa em Tupi-guarani “homem que come gente” e traz referências a lendas populares. Tarsila sinaliza com os pés e mãos agigantados e cabeça reduzida uma busca de valorização do trabalho braçal realizado pelo povo brasileiro.

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Já a obra “Os Operários” faz parte de uma fase artística posterior de Tarsila conhecida como Fase Social, na qual ela deixa ainda mais explicita sua crítica social. Recém-chegada da União Soviética, onde trabalhou como operária, Tarsila representa em sua obra o processo de industrialização brasileiro que produziu uma classe trabalhadora marcada por grande diversidade e exploração registrada nos rostos abatidos dos operários. Tarsila do Amaral, a seu tempo, também fez ARTvismo.

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Mundano admite ser um grande admirador e pirar com a originalidade e o artivismo de Tarsila, suas temáticas, o uso de cores e também seus cactos da resistência. Não é surpreendente, portanto, o fato de tê-la escolhido para sua releitura e ARTivismo sobre o tema do crime da Mineradora Vale em Minas Gerais.

Assim como fez em obras anteriores utilizando cinzas das queimadas da Amazônia e óleo derramado em praias brasileiras, Mundano utilizou a lama tóxica despejada no Rio Paraopeba após o rompimento da barragem para criar o material de suas tintas. Nas mãos desse artista, os rejeitos de crimes ambientais se transformam em potentes obras que os denunciam.

Em sua releitura do Abaporu criou a obra Abaporupeba (2019), cujo nome faz um paralelo com rio contaminado pelos rejeitos e com o termo “peba” que significa sem importância. Desta forma Abaporupeba seria “homem que come gente sem importância”. A figura icônica de pés gigantes ganha novo sentido e uma tonalidade mais escura com a lama retirada do Rio Paraopeba. A mão do “Abaporu” que descansava no solo, na obra de Mundano se ergue para segurar um megafone e fazer o seu protesto. O megafone é um elemento que se repete em muitas obras de Mundano, trazendo o símbolo ativista para a sua arte.

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Em 25 de janeiro de 2020 Mundano inaugura no Edifício Minerasil, no Centro Histórico de São Paulo, um grafite de 800m² com uma nova releitura de Tarsila do Amaral. Era mais um protesto contra o crime da Mineradora Vale em Minas Gerais que completava um ano. A obra Operários de Brumadinho (2020) dá novo sentido à obra Os Operários de Tarsila. Utilizando as tintas com a lama tóxica da barragem que se rompeu, Mundano colore com 16 tonalidades os rostos anônimos que representam as 270 vítimas de Brumadinho. É mais do que uma homenagem aos mortos na tragédia, é um protesto contra os crimes da mineração predatória e um grito por justiça. O megafone nas mãos de uma mulher negra dá o tom de resistência e esperança.

A arte contemporânea de Mundano é, portanto, singular, transgressora e dialoga com o contexto no qual é concebida de forma ativa e crítica. A repetição de elementos das obras de Tarsila do Amaral não anula sua autoria e originalidade, mas as potencializa. É uma demonstração incontestável que repetição e originalidade não são por si só conceitos incompatíveis. Podem ser conciliáveis, harmônicos e transformadores.

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