O cinema é uma arte que nos toca diretamente no plano emocional. Este, sem dúvida, é o objetivo do realizador do filme. Ele conjuga uma série de técnicas e formas de expressão artísticas para contar uma história e emocionar a sua plateia. Mesmo que sua intenção seja criar um produto de entretenimento, leve, no fundo, no fundo, todo cineasta quer manipular as cordinhas da psique, de forma a cativar seu espectador. É que os filmes são primordialmente produtos comerciais. Eles são cada vez mais caros de se produzir, são centenas de profissionais envolvidos, viabilizados por financiamentos milionários, portanto, tem de obter um retorno financeiro que justifique seu investimento, e que garanta a máquina de produção rodando para a manutenção da indústria.

Então qual é a fórmula então para obter um sucesso comercial, mas que fique marcado por décadas na lembrança emocional de seus espectadores? Em resumo, qual o toque de Midas para transformar a arte em ouro, ou um produto industrial em arte?

Não, não existe tal fórmula! Pelo menos é o que a história nos conta. Os produtores tentam persegui-la, mas muitas vezes falham e colocam em risco suas carreiras e de seus estúdios. Superproduções de orçamento de centenas de milhões, espetáculos visuais, grandes astros, equipes premiadas, efeitos visuais de última geração, canções de grandes ídolos pop, nada disso garante o sucesso de um filme. Temos muitos exemplos de fracassos a partir desses elementos.

Mas, de tempos em tempos, um filme simples estoura. Quando menos se espera, uma produção de orçamento mais modesto, com atores pouco conhecidos, destaca-se e cai no gosto popular. Como um rastilho de pólvora, o boca-a-boca leva milhares de espectadores para as salas de cinema, ou para a visualização numa plataforma de streaming. Esses filmes são alçados então à categoria de “cult movies”, sejam eles de produtores independentes ou de grandes estúdios.

O mais curioso é o caso de filmes de estúdio absolutamente banais, produzidos para cumprir a agenda daquela temporada, e alguns deles com histórias de bastidores conturbadas, que acabam por se transformar em filmes perfeitos, cultuados por décadas. Posso em atrever a dar alguns exemplos, de filmes conhecidos e cultuados, mas que não nasceram com esse objetivo. Existem vários filmes na história do cinema que eu poderia citar, mas vou resumir a três filmes, na minha opinião, icônicos.

Casablanca - 1942

Em 1942, no auge da segunda guerra, a Warner Brothers produziu esse pequeno filme, baseado numa peça de teatro chamada “Everybody Comes do Rick's”. Uma história que evocava o sentimento de patriotismo e luta contra o Nazismo, envolto num drama romântico. Inteiramente filmado em estúdios, com um diretor experiente, Michael Curtiz, mas com uma atriz estrangeira em início de carreira, Ingrid Bergman. Para o personagem Rick, a opção era um ator de segunda linha, barato, chamado Ronald Reagan, mas o Rick acabou no colo de Humphrey Bogart, acostumado a papéis de bandidos e vilões. Reagan assumiria papéis mais importantes no futuro. O roteiro escrito por Julius e Philip Epstein e Howard Koch, foi terminado a medida em que o filme era rodado, e até hoje conta com os melhores diálogos da história do cinema.

Poderíamos dedicar um artigo inteiro a Casablanca, mas sua perfeição está na junção de um roteiro afinadíssimo, com um desfecho nada comum para as histórias da época, uma química até hoje insuperável entre um par romântico, com atuações magistrais dos atores principias e coadjuvantes. Não podemos deixar de dar crédito à sofisticada direção do Michael Curtiz, uma narrativa aparentemente teatral, mas altamente eficiente para o cinema, e uma fotografia estupenda.

Era para ser mais um filme de romance com um cunho de patriotismo em tempos de guerra, produzido como dezenas de outros pelo estúdio, mas tornou-se um fenômeno da cultura cinematográfica e da própria cultura americana. Casablanca alçou os atores protagonistas à condição de superestrelas, e até hoje é reverenciado. Estive há alguns anos no backlot da Warner, em Los Angeles, e passei pelo cenário que fazia-se passar pelo prédio do Rick e da Ilsa em Paris. Uma emoção! É um filme que nunca foi e que dificilmente será copiado na história do cinema.

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O Poderoso Chefão (The Godfather) - 1972

Considerado por muitos, e por mim, o melhor filme de todos os tempos, “O Poderoso Chefão” é moderno e atual após 50 anos de existência. Sua linguagem narrativa, fotografia, edição e direção são marcos do cinema e estão em um patamar de qualidade bem acima do que a grande maioria dos filmes produzidos nos dias de hoje. Os dois grandes filmes da história que mudaram a maneira de se criar cinema, que integraram os elementos técnicos para um salto de linguagem foram, na minha opinião “Cidadão Kane” do Orson Welles e “O Poderoso Chefão” do Francis Ford Coppola. Ambos os filmes têm como tema a conquista do poder e suas consequências.

“O Poderoso Chefão” não nasceu para ser uma obra-prima. Seria apenas mais um filme de gangsters produzido pela Paramount, que detinha os direitos do livro de Mário Puzo. A Paramount vinha de alguns insucessos e esse seria um filme de baixo orçamento, a ser adaptado para os dias atuais, evitando o custo de um filme de época. Só não contavam com a personalidade marcante do jovem diretor ainda pouco experiente, que contrataram para o projeto.

Francis Ford Coppola é o grande responsável pelo que o filme se tornou. Primeiro, ele bateu o pé para ambientá-lo na mesma época do livro, na década de 40. Segundo, Coppola conseguiu convencer o estúdio a contratar o Marlon Brando, o melhor ator de sua geração, mas uma pessoa muito difícil de se lidar num set de filmagem. Outros atores foram cogitados para o papel. Lawrence Olivier, Ernest Borgnine ou mesmo Orson Welles, mas após um teste onde Brando transfigurou-se em Vito Corleone, a Paramount concordou em escalá-lo. Contudo, ele teria de aceitar fazer o filme por um salário muito reduzido.

Um diretor talentosíssimo, mas com pouca experiência, um elenco de novatos (Al Pacino, Diane Keaton) uma estrela difícil de se lidar, num filme de época, com orçamento controlado. O que poderia dar errado? Tudo! Bem, Coppola esteve por várias vezes a ponto de ser demitido do projeto. Os executivos do estúdio estavam loucos com ele, com seu preciosismo, e com os estouros de orçamento.

Mas Coppola não só criou um filme espetacular, mas também um sucesso comercial se tornando, naquela época, a maior bilheteria do cinema. Venceu 3 óscares: melhor filme, roteiro e ator para Marlon Brando. E o resto é história.

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De Volta para o Futuro (Back to the Future) - 1985

Mais um projeto conturbado que se transformou num filme cultuado por uma legião de fãs. Um pequeno grande filme perfeito. A história é muito simples: rapaz volta no tempo acidentalmente, e sem querer interfere no relacionamento entre seus pais antes de se casarem. Ele precisa “arrumar” a situação e voltar ao seu tempo, para poder existir.

O diretor Robert Zemeckis apresentou sua ideia a seu mentor, Steven Spielberg, que adorou a história, mas Zemeckis queria um projeto independente de Spielberg, responsável por empurrar sua carreira desde o início. A história foi vendida a Columbia Pictures, mas fora engavetada. Zemeckis tentou desenvolver o projeto, sem sucesso até que voltou a Spielberg anos mais tarde. Numa estratégia que envolvia negociações entre estúdios, compra de direitos, finalmente, quase 10 anos mais tarde o filme iria ser produzido.

Mas as dificuldades não pararam por aí. Com luz verde para a produção, seguiu-se uma batalha pelo ator principal. Robert Zemeckis queria desde o início, Michael J. Fox, mas não conseguiu a sua liberação do seriado que ele fazia na época, “Family Ties”. Vários atores foram cogitados como Johnny Depp, Charlie Sheen, mas o papel ficou com Eric Stoltz. Eles já haviam rodado uma grande parte do filme, mas Stoltz não convencia Zemeckis. Ao conseguir o Michael J. Fox, o diretor e os produtores decidiram demitir Stoltz e refilmar todas as cenas do personagem Marty McFly.

O projeto tão pessoal de Robert Zemeckis enfim ganhou vida. Foram anos em que ele e o roteirista Bob Gale escreveram e reescreveram o roteiro à perfeição, com doses precisas de aventura, ciência, humor, romantismo, algo inédito para a época. Foi o seu comprometimento com a ideia que levou a conseguir o único ator que poderia representar o personagem principal. A química entre Marty e Doc. Brown é perfeita. Os personagens, o cão Einstein, o De Lorean viraram ícones da cultura pop ocidental, símbolos da década de 80. O filme ainda gerou duas sequências, e até hoje é absolutamente atual.

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Talvez a perfeição no cinema seja a busca por uma atemporalidade, uma atualidade e frescor. Vários filmes são considerados clássicos do cinema e são importantes e marcantes para a história. Mas nem todos são perfeitos. Muitos ficam datados e tem mais apelo a críticos do que ao público. Os três filmes citados são um exemplo de produções despretensiosas que se mantiveram modernas, que poderiam ter sido feitas hoje, e que continuam a encantar novas gerações de apreciadores da sétima arte.