Pelo menos no contexto europeu, um texto com este título tem de ser iniciado com uma advertência: quando falo de socialismo não me refiro aos partidos socialistas porque estes há muito abandonaram o socialismo e poderia dizer o mesmo dos partidos comunistas em relação ao comunismo. Fora do contexto europeu, tenho de fazer uma outra advertência: não me refiro apenas às versões do socialismo que foram discutidas e praticadas na Europa do início do século XX e que continuaram em prática quase até ao final desse século nos países do então bloco Soviético e na Jugoslávia. Nem sequer ao socialismo realmente existente hoje na China, em Cuba, no Vietnam ou na Coreia do Norte, apenas porque não sei se são formas de socialismo ou formas de resistência heroica e sustentada ao capitalismo selvagem que domina hoje no Norte global, o qual, aliás, tem tentado por todos os meios eliminá-las.

O meu interesse é convidar a uma sociologia militante da história das ideias sobre o socialismo nos últimos duzentos anos na Europa e no mundo. Quem escreve é um socialista interessado em comparar as discussões sobre o socialismo desde o primeiro quartel do século XIX até aos nossos dias. Uma nota importante é que, se foram particularmente intensas na Europa nas primeiras décadas, as discussões alastraram-se depois a todo o mundo e as contribuições asiáticas, latino-americanas e africanas foram decisivas para enriquecer o pensamento socialista ao longo do século XX. Dados os limites de espaço vou comparar apenas dois momentos: o final do século XIX e o momento actual.

Ontem

O que mais impressiona na literatura sobre o tema no virar do século XIX para o século XX é, antes de tudo, a riqueza e a diversidade das publicações e das organizações. Era um tempo ascendente que via o socialismo a chegar. Um mundo riquíssimo, hoje totalmente esquecido, mas que na altura ocupava as conversas e as organizações operárias e era uma forte presença nas bibliotecas populares. Curiosamente, as posições de Karl Marx não eram das mais discutidas e em muitos debates não se lhes fazia qualquer referência, ainda que a influência da sua obra fosse óbvia. Discutiam-se os antecedentes do socialismo que recuavam até Platão e aos primeiros padres da igreja, como São Clemente e São João Crisóstomo, por exemplo. Os temas centrais eram a propriedade individual e a desigualdade social. Discutia-se intensamente as diferenças entre socialismo, comunismo, colectivismo e anarquismo. As diferenças residiam na extensão da socialização da propriedade e na sua forma política. A socialização da propriedade abrangia apenas os meios de produção (“terra, água, ribeiras, bosques, e maquinismo industrial”) ou também os meios de consumo? A distribuição dos bens a cada pessoa segundo o seu trabalho ou segundo as suas necessidades? A forma política oscilava entre o libertário e o autoritário, entre a associação livre de produtores e consumidores e o controle total do Estado.

Eram populares livros didácticos hoje esquecidos. Por exemplo, os livros de Augustin Hamon, fundador da revista “L’Humanité nouvelle” (1897-1903), anarquista, considerado um dos percursores da psicologia social. O seu livro Socialismo e Anarquismo teve larga difusão. A ideia geral das discussões de fim de século (já presente em Marx) era que o socialismo ia chegar como resultado inevitável da evolução das sociedades capitalistas. Cito Hamon: “A sociedade capitalista actual está em plena gestação de uma sociedade nova, de uma sociedade que será socialista. Todos os factos o provam. São cegos aqueles que não o veem. Os socialistas não criaram nem provocaram este estado de coisas. É consequência inevitável das condições económicas, do desenvolvimento mundial, da vida em geral. Os socialistas não fizeram e não fazem mais do que dar-lhe uma actividade maior. Pela sua propaganda verbal, pelos seus jornais, pelos seus livros, pelos seus folhetos e revistas, não fizeram mais do que harmonizar e regularizar o movimento tumultuoso e desordenado das massas proletárias em procura de um melhor estado de coisas, em luta com a classe dos seus exploradores. Alguns adversários dos socialistas acusam-nos de serem os autores desta luta de classes, deste assalto da classe proletária contra a classe capitalista. É uma opinião muito errónea. Os socialistas não são os criadores deste movimento, cuja origem está na própria natureza das coisas, nos próprios acontecimentos sociais”. (s/d: 63).

O tom geral era optimista. Tal como no Marx-Engels do Manifesto (1848), a sociedade burguesa trazia no seu bojo a sociedade socialista. Viam-se embriões de socialismo no crescimento dos sindicatos e das cooperativas. Entrava-se nos detalhes da organização da sociedade futura, da propriedade ao trabalho, do Estado e governo ao sistema judicial e exército, da família à religião e educação.

Hoje

Passou-se um século, setenta anos de União Soviética, mais de um bilhão e quinhentas milhões de pessoas vivem em regimes que se designam como socialistas ou comunistas, alguns dos quais (China e Vietnam) foram até hoje aliados do mais selvagem hipercapitalismo. Ao longo do século XX, o socialismo saiu dos limites geográficos e teóricos da Europa e foi uma opção política muito presente nos movimentos de libertação do colonialismo europeu, com inovações assinaláveis protagonizadas pelo Movimento dos Não Alinhados, pela prática e reflexão de José Carlos Mariátegui, Ho Chi Minh, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere, Frantz Fanon, Aimé Césaire, Modibo Keïta, Gamal Abdel Nasser, Ahmed Ben Bella, Walter Rodney, Amilcar Cabral, Thomas Sankara, entre muitos outros, e pelas experiências inaugurais em Cuba (1959) e no Chile durante o curto período de Salvador Allende (1970-1973). O que resta de toda esta experiência extra-europeia são em grande medida ruínas e sobretudo memórias amargas da violência com que o capitalismo imperialista (tanto norte-americano como europeu) pôs termo a essas experiências.

Depois do fim do bloco soviético, o socialismo desapareceu totalmente do horizonte político do Norte global. A maneira mais eficaz de o fazer desaparecer foi fazer desaparecer ardilosamente o seu rival, o capitalismo. Deixou de se falar de capitalismo e passou a falar-se de economia de mercado, a única e natural forma de economia, como se todo o mercado fosse capitalista e como se o capitalismo não tivesse tanto de mercado como de anti-mercado (monopólio). A partir de 2000 voltou a falar-se de socialismo a partir de experiências políticas muito diferentes: o desencanto do pós-comunismo nos países do leste europeu, o Fórum Social Mundial (2001-2016), o programa de Bernie Sanders nos EUA. Mais recentemente, Thomas Piketty apresentou as suas propostas de socialismo participativo.

Quer isto dizer que estamos de novo num tempo inaugural semelhante ao do fim do século XIX? De facto, estamos no seu oposto. Com a excepção de Piketty, não há optimismo e muito menos optimismo fundado na evolução recente do capitalismo. Onde estão os tais embriões de socialismo a emergir por todo o lado a partir do activismo operário? Aparentemente, só Piketty os vê na evolução dos padrões de desigualdade social, no crescimento do Estado de bem-estar e na experiência de co-gestão das grandes empresas na Europa do Norte. Em geral, o novo apelo do socialismo vem de uma percepção oposta, do forte pessimismo sobre o futuro da humanidade se o capitalismo continuar as tendências actuais de exclusão, de catástrofe ecológica, economia de morte, eliminação da dissidência, pilhagem dos recursos naturais por todos os meios, mesmo os mais violentos (sanções, embargos, guerra, assassinato) para os conseguir. Chega a ser ridículo o optimismo de Piketty sobre a universalização do socialismo assente na experiência europeia (mesmo com a adenda politicamente correcta do anti-colonialismo e das reparações), quando o seu país trava neste momento uma guerra, sempre com a ajuda dos EUA, contra alguns países da África Ocidental (Mali, Níger e Burkina Fasso) para assegurar o acesso ao precioso urânio. Um relatório da Oxfam de 2013 cita um activista nigerino, para quem “Na França, uma em cada três lâmpadas é iluminada graças ao urânio nigerino. No Níger, quase 90% da população não tem acesso à electricidade. Esta situação não pode continuar”. Daqui ao socialismo não há um caminho, há um muro.

Se é verdade que domina a versão pessimista sobre o modo como o capitalismo está a levar a humanidade e a natureza para o abismo da destruição, não é menos verdade que, também ao contrário do final do século XIX, as alternativas e os agentes que poderão lutar por elas estão ausentes. Piketty afirma que o socialismo participativo que propõe “não vem de cima para baixo”, como supostamente terá acontecido no passado com a vanguarda operária de elite (não deixa de ser estranho conceber o operariado, mesmo de vanguarda, como pertencendo aos de cima), mas vem dos cidadãos, ao reapropriarem-se da deliberação colectiva através de transformações legais graduais. Ou seja, o sonho da social-democracia europeia que esta há muito abandonou.

Um mundo eurocêntrico é hoje uma ruína adiada (por mais empolgante que pareça através do brilhante desempenho de Piketty), mas a compreensão e a transformação do mundo são hoje muito mais amplas do que as que cabem na imaginação europeia. A experiência “dos de baixo”, de “la gente a pie”, é muito rica, apesar de pouco conhecida no Norte global. É muito diversa e não cabe em qualquer designação escrita no singular. É um mosaico de ideias e práticas que desafiam todos os universalismos abstratos que lhe foram impostos pelo mundo eurocêntrico a partir do século XV. Como dizia Edouard Glissant, os povos colonizados, confrontados com o poder e o saber absolutos, habituaram-se há muito a viver no relativo. Talvez o que mais os una sejam as múltiplas faces da dominação e a diversidade das lutas e dos repertórios de luta para as enfrentar. Nem sequer se sentem obrigados ao termo socialismo mesmo escrito no plural. Em comum, têm o respeito pela continuidade da vida da espécie humana e de todas as outras espécies.

O socialismo depois de Babel

O socialismo depois de Babel é constituído por uma multiplicidade de ideias e linguagens que sintetizam modos de viver o mundo de forma ecologicamente partilhada. Ecologias de saberes, de viveres, de culturas, de produtividades e de temporalidades. Algumas ideias e linguagens são eurocêntricas e outras não. Muitas são o resultado de insondáveis misturas entre diferentes os universos culturais que hoje constituem um pluriverso, para alguns, uma Torre de Babel de muitos nomes, a romper de vez com a ordem bíblica de uma só ideia e de uma só linguagem (o Deus das religiões do Livro). Eis alguns dos nomes (por ordem alfabética): agroecologia, a água como bem público, alternativas ao desenvolvimento, anticolonialismo, antirracismo (Black Lives Matter), artivismo, auto-determinação, buen vivir, bens comuns, cooperativismo, comunismo, constitucionalismo transformador, decrescimento, demarcação dos territórios ancestrais (de povos indígenas, e de descendentes de povos escravizados), direitos humanos contra-hegemónicos, direitos da natureza, ecologia política, economia do cuidado, economias não capitalista (popular, camponesa, ribeirinha, indígena, feminista, cooperativa, comunitária), eco-socialismo, educação popular, feminismos, laicismos, movimentos da justiça global, movimento Naxalita, nacionalização de sectores estratégicos, neozapatismo (EZLN), Ni Una Menos!, Novo Movimento dos Não-Alinhados, pachamama, pan-africanismo, pan-arabismo, poder constituinte, reforma agrária, rendimento básico universal, a saúde como bem público, soberania alimentar, socialismos (africano, asiático, etc.), sumak kawsay/suma qamaña, swadeshi, swaraj, zonas libertadas, ubuntu, ujamaa. Desta imensa diversidade quatro ideias-chaves emergem:

  1. Não há sujeitos históricos. Fazem história todas as pessoas, grupos e classes que lutam contra as três principais dominações da modernidade eurocêntrica: capitalismo, colonialismo e patriarcado. A luta tem de ser conjunta. O drama do nosso tempo é que, enquanto as três dominações actuam articuladamente, a resistência contra elas está fragmentada: movimentos anticapitalistas que são racistas e sexistas; movimentos antirracistas que são procapitalistas e sexistas; movimentos feministas que são procapitalistas e racistas. Qualquer destas lutas, quando isolada, é facilmente sequestrada pelas forças políticas que sustentam a dominação, que no mundo eurocêntrico se denominam por forças políticas de direita. O novo identitarismo da direita alimenta-se das ideias de pertença identitárias (raciais, de género, religiosas) desprovidas do ânimo de mudar o mundo capitalista.

  2. A natureza não nos pertence; nós pertencemos à natureza. A dicotomia humanidade/natureza legitimou nos alvores do capitalismo a apropriação individual da natureza e a total sujeição desta aos usos e abusos determinados “pelos interesses do desenvolvimento”. A exploração dos recursos naturais sem respeito pelos ciclos e pelos tempos naturais de reconstituição criou o que Karl Marx designou por fractura metabólica, a degradação dos metabolismos reequilibradores que, no nosso tempo, atinge proporções-limite: pela primeira vez, a sobrevivência da espécie humana está em risco. Em todas as culturas com que os europeus entraram em contacto a partir da expansão colonial moderna, os humanos pertenciam à natureza que respeitavam e temiam. Nessas concepções está a chave da nossa sobrevivência enquanto espécie. Dado que as formas de propriedade não capitalistas são as que potencialmente mais respeitam a natureza, a propriedade capitalista não deve ser mais protegida pelo Estado que todas as outras formas de propriedade (camponesa, familiar, indígena, cooperativa, comunal, associativa). O ecocídio é o novo crime de lesa-humanidade.

  3. Devemos recuperar a soberania temporal e o uso autónomo do tempo. São muito diversas as experiências do tempo, do ritmo e da duração nas diferentes culturas do mundo. Nos últimos duzentos anos, as sociedades capitalistas centraram-se em tecnologias que poupassem tempo e acelerassem os processos. Paradoxalmente, de tal poupança não resultou mais tempo de que se possa dispor livremente, tal como de tal aceleração apenas sobreveio mais falta de tempo. O tempo cronológico está para o tempo vivido como o Produto Interno Bruto está para a riqueza das nações. O mais importante não é contabilizado. A aceleração do tempo transformou-se, por via da repetição, em forma de estagnação. Os povos que escaparam e ainda escapam ao sequestro capitalista do tempo são estigmatizados como sub-desenvolvidos, e ficam assim expostos a todo o tipo de intervencionismo capitalista (da ajuda ao desenvolvimento, à pilhagem dos recursos, da mudança de regime e da guerra, às sanções e embargos). Recuperar a soberania temporal é lutar contra a falsa autonomia (como, por exemplo, a autonomia uberizada), a autonomia sem condições para se ser autónomo. O tempo capitalista é monocrónico, o tempo socialista será policrónico, porque auto-definido.

  4. Se é certo que não podemos viver sem biodiversidade não é menos certo que não podemos viver sem demodiversidade. Já há muito defini o socialismo como a democracia sem fim. E identifiquei os principais espaços-tempo em que a democratização devia ter lugar: o espaços-tempo da família, da comunidade, da produção, da cidadania, das relações internacionais. A cada espaço-tempo corresponde um tipo específico de democracia. Defender que a democracia representativa liberal é a única forma possível de democracia é aceitar como fatalidade que a democracia no espaço-tempo da cidadania seja uma ilha democrática num arquipélago de despotismos. Sem outras ilhas democráticas que a apoiem, a ilha da democracia liberal será uma ilha cada vez mais desértica apenas povoada de armadilhas autocráticas.