Muito se fala de como a ciência brasileira faz milagres, por conseguir ser produtiva apesar dos baixos investimentos. Em parte, este paradoxal sucesso se deve a resiliência, usando uma palavra da moda, de nossos pesquisadores, que muitas vezes precisam percorrer um longo e árduo caminho para atingir seus objetivos profissionais e obter alguma relevância dentro do ambiente acadêmico. A história do doutor Anderson de Oliveira Ribeiro é bem ilustrativa deste fato.

Bacharel em Física pela UERJ, com mestrado e doutorado em Astronomia pelo Observatório Nacional, sua carreira teve início enquanto fazia iniciação científica no Museu de Astronomia e Ciências Afins, quando teve a oportunidade de realizar o curso de Mecânica Celeste com o professor Fernando Roig, que viria a se tornar seu orientador. Um curso “chatíssimo”, como ele fala, mas o qual sentiu grande afinidade, por lidar com matemática e teorias, temas que ele possui maior identificação.

Durante a sua iniciação científico, escreveu o artigo, em parceria com seu orientador, Fernando Roig e com a astrônomo argentino Ricardo Gil-Hutton, Taxonomy of asteroid families among the Jupiter Trojans: comparison between spectroscopic data and the Sloan Digital Sky Survey colors, o qual ele descreve como sendo o mais importante de sua carreira. Neste artigo, por meio de dados experimentais, encontraram uma importante restrição para um conjunto de asteróides conhecidos como troianos, trabalho este que representou um grande avanço no estudo dessa classe de asteróides. Atualmente, o professor Ribeiro divide seu tempo entre a atividade docente e a pesquisa em Economia Circular, uma área em alta, uma vez que aborda o tema da sustentabilidade e preservação ambiental.

Proveniente de Paracambi, um pequeno município na Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o filho do seu Nei e da dona Nanci, como ele mesmo faz questão de enfatizar, percorreu um longo caminho, caminho estes que muitos desistem antes de completar. A recente homenagem recebida por meio da IAU (International Astronomical Union), em que um asteróide recebeu o seu nome, neste caso o (31412)Andersonribeiro. Tive o prazer de entrevistar o Dr. Ribeiro e, de nossa conversa, pode-se ter uma idéia do quanto é difícil a vida de alguém que busca seguir a carreira acadêmica no Brasil. Abaixo, transcrevemos alguns dos pontos altos de nossa conversa.

No seu currículo lattes está a informação de que você fez o doutorado sanduíche, parte dele na Argentina. Lá você foi realizar a parte observacional de seu trabalho?

Vou dar um passo para trás para depois dar dois para frente. Em meu mestrado, realizamos um trabalho puramente computacional e teórico. Na graduação, junto com o Fernando, escrevi o artigo que é o principal trabalho de minha carreira, onde, usando dados observacionais, encontramos uma restrição para um conjunto de asteróides conhecidos como troianos. Já no doutorado, fui para Argentina trabalhar no International Observatory El Leoncito, com o objetivo de realizar um trabalho híbrido, que reunia parte teórica com a parte observacional. Lá eu trabalhei com o diretor do observatório, o professor Ricardo Gil-Hutton, um astrônomo brilhante. Com o apoio deste grande telescópio, tentávamos observar objetos de uma população bastante difícil. Embora as observações não tenham resultado diretamente em um artigo, abriram caminhos para um trabalho posterior com a Dr.ª Marcele Cañada.

No editorial da homenagem que você recebeu, destaca-se o seu trabalho com asteróides troianos e atira. O que seriam estas classes de asteróides?

Se você pensar no Sistema Solar como uma casa em construção, os asteróides seriam os entulhos que resultam desta construção. Ao longo de bilhões de anos, esse entulho foi sendo processado e sofrendo modificações. Dinamicamente, esses objetos separam-se em regiões. Existe o cinturão principal, entre Júpiter e Marte, os chamados troianos, que possuem a peculiaridade de se encontrar nos pontos de equilíbrio estável do problema de três corpos. São duas nuvens onde os objetos foram capturados. Em nosso trabalho, mostramos que essas nuvens são formadas por objetos com diferentes composições, o que gera um problema, tendo em vista que os objetos foram formados no mesmo momento. O modelo não explica esta diferença. Este problema encontra-se ainda hoje em aberto. Já os Atira são outra população, com a peculiaridade de se encontrarem na órbita da Terra, entre nosso planeta e o Sol. Isso gera um problema. Eles são potencialmente perigosos, pela dificuldade em sua observação. Nós mostramos que existem duas regiões de estabilidade, uma delas entre a órbita da Terra e a de Vênus e a outra entre Mercúrio e o Sol. Para isso usamos um modelo bastante sofisticado. Somente a simulações levou seis meses, usando-se um cluster com 194 núcleos dedicados a esse fim. Esse trabalho abriu portas para novas investigações. Em 2020, um astrônomo espanhol conseguiu observar um asteróide nesta região. No entanto, devido às dificuldades em observar estes asteróides, são poucos os pesquisadores que se dedicam ao seu estudo. Meu próprio orientador não vai gostar do que vou falar, estava muito confiante de que teríamos sucesso.

E foi neste momento, entre o mestrado e o doutorado, que foi descoberto o asteróide que levou o seu nome?

Muitos acreditam que quem descobre um asteróide o nomeia com o seu nome. Na verdade, você não pode nomear um asteróide, ainda mais com o próprio nome. Porém, este trabalho cabe a IAU, que possui uma comissão responsável pelas regras de nomenclatura, além de julgar a quem se deve homenagear. Por exemplo, todos os asteróides troianos devem receber os nomes de personagens troianos da Ilíada. Os centauros só recebem nomes de centauros. Já o cinturão central pode receber qualquer, desde que não seja uma personagem pública. A nomenclatura só é fornecida para asteróides que possuem uma solução matemática definitiva para sua órbita, ou seja, quando é possível uma previsão de sua órbita ao longo de um intervalo de tempo considerável do ponto de vista astronômico. A homenagem é concedida em um evento em que um certo número de asteróides são selecionados e recebem um nome, junto com sua numeração, no meu caso, o (31412)Andersonribeiro. O nome é indicado por pesquisadores da área de astronomia. Quanto a relevância, é um reconhecimento ao valor de seu trabalho, mas seria uma premiação de primeiro nível de distinção na área.

Mas como a homenagem é resultado da indicação de outros pesquisadores, podemos dizer que é uma forma de reconhecimento por suas contribuições na área?

Certamente. Mas não é equivalente a um prêmio Nobel. Seria uma primeira distinção na carreira, te dá algum destaque.

Seria, em termos futebolísticos, como uma artilharia de uma liga nacional, não uma Bola de Ouro?

Mais ou menos isso. É claro que a conquista se torna ainda mais relevante pela trajetória. Saindo de Paracambi, filho de seu Nei e dona Nanci, que vendiam salgadinhos na praça, que só estudaram até a quarta série, fazendo UERJ, pegando trem, comendo paçoca e Big G (uma lanchonete popular no interior da UERJ).

Você tocou num ponto muito sensível, a trajetória de carreira. Muitas vezes não fica claro, para quem está de fora, as dificuldades de quem procura seguir uma carreira acadêmica no Brasil, dificuldades estas oriundas do perfil financeiro dos estudantes de física, químicas e outras carreiras científicas. Via de regra, os estudantes destas áreas, e aqui eu me incluo entre estes, são muito mais pobres do que os estudantes de carreiras de maior prestígio, como medicina. Isto faz com que cada uma de nossas conquistas se tornem relevantes pelas dificuldades em se chegar a este patamar.

Esse assunto que você tocou é muito relevante. O brasileiro, via de regra, valoriza mais o que você tem, o que conquista em sentido de material. Em carreiras como a medicina, por exemplo, você se forma, arranja um emprego e em pouco tempo compra uma BMW, se tornando reconhecido pelos seus pares. Já na carreira de físico, a dificuldade é grande, em especial porque você não pode errar. Existe todo um trâmite que você obrigatoriamente deve seguir para ser bem-sucedido. Para começar, na Física, quando você conclui um bacharelado, você não é nada ainda em sentido profissional. Você precisar concluir um mestrado e um doutorado para, só a partir daí, poder disputar uma vaga de trainee, que é o pós-doutorado. Ao contrário do senso comum, o pós-doc não é um curso nem um título. É um estágio de treinamento para se tornar pesquisador. Se, ao longo da carreira, você casa, tem filhos, o que dificulta ou mesmo impede a ida para o exterior, além das dificuldades linguísticas, que foram um problema para mim, as dificuldades aumentam ainda mais e, no final, nada disso será reconhecido. Enquanto que na Argentina, quando eu falava que era astrônomo eu ouvia as pessoas dizendo “Poxa! Você é um gênio”, aqui no Brasil eu ouço “Cara, você é maluco”. Nota-se uma diferença clara de como a carreira científica é valorizada fora do Brasil e desprezada por aqui.

Apesar deste quadro que você descreveu, você se mostra otimista, isto é, enxerga a possibilidade de mudanças, ainda que no médio ou longo prazo? Em especial na forma como a sociedade e a política enxergam a ciência?

O problema do Brasil é que temos grandes problemas para os quais se tentam resolver com soluções simples e no curto prazo, o que não é possível. Primeiro, a sociedade não enxerga a ciência como algo de valor. Por exemplo, hoje observamos com muito em voga o termo inovação8, que nada mais é do que a aplicação do método científico. Parece que tivemos que inventar a roda novamente. Eu diria que não sou pessimista e nem otimista. Quando um aluno diz que deseja seguir uma carreira nas ciências, eu o oriento a seguir um certo plano de carreira, e que sempre tenha um *plano b. Geralmente oriento a fazer licenciatura, pois, mal ou bem, há a possibilidade de ganhar o sustento dando aulas. Após a graduação, quando chegar ao mestrado, procure uma área de grande demanda. Agora quanto às mudanças política e como afetam a carreira científica, não vou vender a idéia de que essas carreiras irão decolar, porque não vejo como alterar o quadro descrito nem no médio prazo. Acredito que, nos próximos anos, teremos mais bolsas, mais concursos, mas a estrutura montada permanecerá a mesma, pois nem os pesquisadores desejam que mude. A prova disso é que a divulgação científica no Brasil é muito deficiente.

Temos observado uma onda crescente de negacionismo científico e de proliferação de pseudociências. Estes fenômenos, em sua opinião, estariam relacionados com essa nossa deficiência em promover a divulgação científica?

É uma pergunta difícil. Participei, recentemente, de uma mesa redonda que abordou o tema da terra plana. No Brasil, 99,9% da ciência é produzida em universidades públicas. Existe uma espiral negativa que contribui para essa deficiência. O pesquisador é cobrado por órgãos como CAPES e CNPQ a publicar artigos em revistas que chamam de internacionais, mas que, na verdade, são revistas de outros países. No entanto, não há essa cobrança em nível de divulgação. Se não publicar três ou cinco artigos, ainda que realize um milhão de iniciativas de divulgação, não recebe a bolsa de produtividade. E aqui vemos uma contradição. Quando assume uma posição na universidade, o pesquisador se compromete a produzir no tripé ensino, pesquisa e extensão. A extensão é uma forma em que o pesquisador devolve para sociedade o investimento em forma de conhecimento produzido. É difícil vermos pesquisadores que possuem alguma atividade de divulgação e, mesmo quando possuem, a fazem em colégios de elite, como o Pedro II. Não se observa essas iniciativas no Vidigal, na Baixada Fluminense, mas em escolas onde os alunos têm acesso à livros, planetários e outros meios de estarem em contato com a ciência. Mas, além do pouco incentivo, existe a própria atitude do pesquisador quanto à divulgação científica. Via de regra, acredita-se que somente quem fracassou na carreira vai para a divulgação científica. Por outro lado, quanto à sociedade, vemos o que descreve o filósofo Bauman em seu livro A Modernidade Líquida. As pessoas não têm nem o tempo e nem a vontade de se aprofundar nos assuntos. Notamos isso no sucesso que vídeos curtos fazem no Youtube, diferente dos vídeos mais longos, que possuem uma audiência baixa. No entanto, como abordar um assunto como Relatividade Geral em um vídeo de poucos minutos. Então, como falar sobre meu trabalho com a moça da limpeza? Ela pode até reconhecer o prêmio, mas não sabe nem o que é um asteróide. Vem alguém e fala que é plano, e ela acredita porque não tem base para contestar. Acredito que o ensino de ciência tem de ser massificado, em especial o ensino do método científico, não de forma dogmática, como sendo algo infalível, mas que, quando aliado com outras formas de inteligência, como a inteligência prática, pode resultar em bons frutos. Isso contribuiria para atenuar essa onda de negacionismo, que, do meu ponto de vista, surge pelo desconhecimento do método científico. Mas, como fazer isso? Como popularizar o método científico? Forçando os pesquisadores a divulgar a ciência. Na verdade, forçar não é o temo correto. Melhor seria incentivar, da mesma forma que faz com a pesquisa em si.

Eu tenho para mim que o conhecimento do método científico com suas limitações seja fundamental no combate ao negacionismo. Observo que poucos, e incluo muitos professores de ciências, sabem que a ciência é válida dentro de uma margem de erro aceitável.

Creio que você tocou num ponto nevrálgico da questão. Novamente citando Bauman, as pessoas estão sentindo a necessidade de segurar coisas que não desmontem. Tudo a nossa volta parece estar fluido, parece estar desmontando. De forma que muitos desejam segurar-se em algo rígido e a ciência não fornece essa rigidez. Por este motivo, agarram-se à dogmas. E aí vem um certo perigo. Talvez, na tentativa de se afirmar em um mundo tão inseguro, a ciência tenda a adotar uma postura dogmática.

Em um artigo que eu li, a IAEA desenvolvia um projeto para difundir a cultura nucelar em países asiáticos. Foram selecionados para participar do treinamento quinze professores de quatro países. Estes, quando voltaram a seus países, treinaram outras centenas de professores que, por sua vez, transmitiram o conhecimento adquirido para seus alunos. Estima-se que, a partir dos quinze originais, foi possível atingir um total de vinte e sete mil estudantes. Não seria interessante um projeto semelhante, em que professores de ensino médio recebessem treinamento para se tornarem divulgadores?

Creio que sim. Mas, para isso, seria necessário um projeto de Estado que projetasse como se deseja que a ciência brasileira esteja daqui a, por exemplo, vinte anos. Como exemplo, uma área que o Brasil ainda tem chance de atingir o topo da ciência global, seria o de biofármacos. Assim, deveria haver um projeto que incentivasse os professores que já atuam na área, a serem como influencers, usando uma expressão atual. Uma outra vertente seria capacitar os futuros professores enquanto estudantes, ainda na universidade. Seria aplicar os métodos de ensino que dizem ser fantásticos, em disciplinas como Mecânica Geral, que possui um alto índice de reprovação. Não adianta formar o estudante a fórceps durante quatro ou cinco períodos, com a formatação antiga, e tentar consertar nos períodos finais do curso, em disciplinas como prática de ensino. É claro que a proposta de treinar professores e tentar suprir um pouco da deficiência em sua formação é válida. Mas somente terá êxito se for capaz de atingir professores, não apenas na capital, mas no interior também, em lugares como Japeri, vizinha à minha cidade de origem.