Na já longa, vã e às vezes fervorosa controvérsia entre criacionistas e evolucionistas — termos que pejorativamente lhes imputam —, parece que alguns deles, muito poucos, aliás, chegaram à mútua e consternada conclusão de que é contraproducente debater com seus oponentes, uma vez que com isso não lograriam senão legitimá-los como autoridades em um assunto do qual nada sabem.

Tenho para mim que ambas as correntes se apaziguariam se de boa vontade suspeitassem que, entre si, elas se desassemelham talvez menos por uma questão de fé ou razão do que pela mera perspectiva de suas abordagens; isto é, pelos pressupostos de um surgimento pronto e acabado ou os de um processo evolutivo, segundo bramam suas respectivas convicções. Uma pressupõe um princípio sagrado sem atinar com os meios e desdobramentos necessários para que ele atue no profano; a outra, descreve apenas esses meios e desdobramentos mundanos, mas que no fundo acabam por postular a atuação de algum princípio.

Décadas dedicadas ao minucioso catálogo arqueológico de hominídeos e seus artefatos segundo sua idade pré-histórica compuseram uma extensa linha temporal que se foi adensando, comprimindo lapsos periódicos ou superpondo intervalos até o dia em que de um dos seus desvãos saltou a desconcertante pergunta que passaria a inquietar alguns pesquisadores: quando, então, surgimos nós? a partir de que momento nos tornamos humanos?1

Para essa questão, muitas propostas foram levantadas desde então, assim como foram sendo sucessivamente descartadas pelo critério de que todas elas se referiam a características pré-existentes, ainda que de forma seminal, em outras espécies, e que, portanto, tratava-se apenas de aspectos graduais, quantitativos, de tais atributos.

O surgimento do bipedalismo (caminhar ereto sobre duas pernas) foi uma das primeiras delas, já que estava claro pelo forame magno2 centralizado que os australopitecos já o faziam. A seguir foi a vez de a teoria do volume encefálico ir para o brejo, porque se demonstrou que neste quesito o cérebro dos neandertais era superior ao nosso3 . O mesmo se daria com a hipótese da confecção de ferramentas, da qual já havia vestígios em épocas muito mais remotas. Quanto à instituição da guerra4 ou à organização social, o intenso estudo dos chimpanzés nas florestas da Tanzânia levado a cabo pela primatologista britânica Jane Goodall nos anos de 1960, mostrou que mesmo esses símios travam conflitos armados assim como possuem uma complexa divisão hierárquica de castas, funções sociais e distinções territoriais5 .

Assim, uma a uma, outras proposições foram sendo igualmente afastadas, como a do aparecimento da linguagem, a do sepultamento dos mortos, a da aprendizagem e volição ou a do consumo de proteína animal assada ou cozida — o que teria proporcionado a atrofia dos dentes caninos e a energia necessária para o crescimento craniano. Nenhuma delas cumpria o pré-requisito exigido pelo âmago da pergunta, o de ter sido algo ímpar, estanque, como uma ruptura ou um advento.

Em começos deste século, o paleontropólogo Richard Klein, da Universidade de Stanford, anunciou haver dado com a chave do enigma. Segundo ele, o que selou nossa “entrada” no mundo foi a capacidade de pensarmos simbolicamente, a aptidão para sentirmos e manifestarmos abstrações, enfim, o dom de conferirmos significado mais elevado às coisas.

A premissa que impulsionou seu argumento, ao menos em gérmen, já estava no ar fazia tempos. Rousseau a registrou no séc. XVIII ao escrever que o que nos havia humanizado fora a empatia que nossos ancestrais haviam mutuamente sentido ao se reunirem nas acolhedoras bordas do fogo e da fonte. E em algum lugar de A Origem das Espécies ou de A Descendência do Homem, Charles Darwin insinuara que não havia sido senão a incorporação de valores abstratos o que resultara na primazia de certos grupos em relação a outros menos dotados de tais princípios. Vale dizer, compromissos com a honradez e a reciprocidade, o culto da alteridade e dos ancestrais, normas sociais disciplinadoras e a cooperação estendida além do círculo familiar mais próximo etc., é o que tornara aqueles grupos mais coesos e eficientes na luta pela sobrevivência contra rivais, feras e intempéries.

Por óbvio que uma asserção paleontropológica taxativa como a de Klein, porém, não podia se respaldar apenas em conjecturas poéticas ou deduções protocientíficas, ainda que convincentes, sobre o que sentiram ou deixaram de sentir seu amontoado de carcaças fossilizadas. Mas ele superaria essa dificuldade por meio de uma curiosa coincidência cronológica, o que conferiu à sua intuição certo status de evidência.

Klein havia observado que todos os registros arqueológicos das mais antigas expressões daquela perspectiva simbólica, ou seja, artística, como os painéis das cavernas de Chauvet, a estátua de Hohlestein-Stadel (homem com cabeça de leão esculpido em marfim de mamute) ou os pingentes de âmbar de Isturitz, haviam surgido somente em datas posteriores a 40 mil anos atrás6 . A essa estranha convergência para a expressão subjetiva ele chamou de a revolução criativa do paleolítico superior.

Acontece que, pouco depois, novas pistas arqueológicas ofuscariam sua teoria. Mas assim como antes outros já a haviam presumido, algo de sua tese perduraria para além de sua fundamentação material. Os contra-argumentos mais minuciosos ativeram-se a questões como a do período migratório em que o homo sapiens teria chegado à Europa ou a erros de cálculo no método de datação estratigráfica devido à lixiviação das camadas de calcita que com o tempo recobrem o pigmento das pinturas rupestres. Mas quanto ao conteúdo, digamos, sociopsicológico que despertara, este permaneceu inabalado. E a par das artes, como o canto, a dança e a poesia, àquela percepção figurativa do mundo que nos teria definido enquanto espécie logo seriam agregadas também a esperança emotiva e a ética solidária.

Durante a pandemia de Covid, uma versão ilustrou bem esse legado: a conhecida digressão que Remy Blumenfeld pôs na boca de Margareth Mead (1901-1978). Certa vez, um estudante teria perguntado à antropóloga qual teria sido o primeiro indício de civilização. Na expectativa de ouvir sobre potes de argila, armas de caça ou artefatos religiosos, Mead o surpreendeu dizendo que o primeiro sinal de civilização fora uma fratura cicatrizada em um fêmur humano de milhares de anos. Após explicar que era o osso mais longo do corpo, ligando a bacia aos joelhos, e no qual, sem a medicina atual, uma fratura levava cerca de seis semanas para sarar, Mead contou que, no reino animal, quebrar uma perna é fatal; não se pode fugir, nem ir atrás de água ou comida. Debilitados, somos presa fácil; nenhuma criatura sobrevive tempo o bastante para se recuperar: é devorada antes. O tal fêmur cicatrizado significava que alguém se dedicara à pessoa enferma, carregado-a para um lugar seguro e tratado do seu ferimento há quinze mil anos atrás. Ali, com esse gesto, é que despontara nossa civilização.

De fato, notadamente em tempos mais do que nunca marcados pela falta de sentido, em que ritos e signos desalojam a própria realidade, nada até agora mais digno do que a capacidade de representação simbólica e atribuição de significados como sendo não só o traço definidor mais característico e profundo de nossa essência, mas o próprio antídoto contra a contingência do real.

Mas, enfim, voltando à diatribe entre criacionistas e evolucionistas, o núcleo de sua divergência parece residir no ponto em que encontram ou procuram encontrar justo um significado. É como se os primeiros o postergassem com a paciência da modéstia, mas com uma presunção de merecimento; e como se seus oponentes o reivindicassem com a premência da presunção, mas com a humildade da abnegação.

Os evolucionistas, cansados do catálogo sistemático e modorrento de crânios disformes que se perfilam na linha cronológica dos registros arqueológicos, deparam-se com a lacuna que lhes sugere a indagação sobre o início de si mesmos. Talvez lhes seja dado entrever que nunca houvera um elo perdido, porque este também seria apenas uma subdivisão do mesmo hiato, o qual prescindiria de outros elos cada vez menores. Ou seja, no rastro do instante em que se teria consumado o advento da espécie humana, em última instância os paleontropólogos não estariam senão às voltas com um ato de criação, de um surgimento ex-nihilo.

Na via oposta, os criacionistas podem ignorar ou ter esquecido que, na origem, sua doutrina foi resultado de um código, de uma síntese expressa em imagens, em metáforas assimiláveis. Como naquela passagem em que Santo Agostinho, ainda impuro, confessa ter-se enchido de encantamento e devoção ao ver Ambrósio, inspirado por um poder arrebatador de oratória e discernimento, interpretando por meio de alegorias os textos das Sagradas Escrituras para que o povo simples de Roma pudesse compreender os motivos de sua fé.

Um post scriptum: é de se observar que se os chimpanzés praticam a guerra, é provável que na mesma medida pratiquem a paz, extensiva por indução a nossos ancestrais paleontropídeos. Logo, o amor ou a solidariedade também seriam uma questão de gradação quantitativa e não uma qualidade peculiar do humano, o que nos faz refletir sobre a presunção de sermos dotados de uma autenticidade absoluta, mas senão apenas seres que absorvemos ou refratamos uma espécie de luz ou energia difusa diante da qual o melhor que podemos oferecer é a gratidão pelo arbítrio de pensarmos dela o que melhor nos convém conforme as circunstâncias de nossas vidas.

Notas

1 Segundo a datação atualmente aceita, o homo sapiens (homem sábio) teria surgido entre 200 e 150 mil anos atrás. Nós, o homem moderno, homo sapiens sapiens (homem que sabe que sabe) constituímos uma subespécie de homo sapiens, assim como os extintos homo sapiens idaltu, homo sapiens neanderthalensis e homo sapiens rhodesiensis.
2 Grande orifício na base inferior do crânio por onde passa a medula espinhal.
3 Cerca de 1.560 cm³ dos neandertais contra a nossa média de 1.350 cm.
4 O que pode significar a Política, já que até hoje não se sabe se a guerra termina ou começa com ela.
5 Organização “social” complexa também é encontrada entre formigas, abelhas e cupins.
6 Esse período, curiosamente, coincide com o da extinção do homem de neandertal (homo sapiens neanderthalensis).