Acordei muito cedo para descobrir que o terraço deste início de Setembro, cheirava a terra molhada e a líquenes perfumados com o sal da maresia. E foi assim que toda a magia do sonho de Lua-Cheia do dia anterior, se encontrou abruptamente cortada por uma noite chuvosa, que agora começava a apertar-me o coração. Nada mais constrangedor do que a antevisão do deslizar do Estio para o Inverno, no Hemisfério Norte, sem paragem no Outono. Sem essa preparação do corpo, das sensações e das emoções para o frio dos dias mais curtos, fez-me sentir roubado e perdido. Eu que tinha suportado a custo os dias tórridos, pré e pós-Papa, deste Agosto tórrido e severo como um pai tirano, via-me agora sem chão onde aterrar, como um nórdico às portas do tapete de neve do Inverno ou uma criança a ver aproximar-se o primeiro dia de aulas.

Chamei pelo Pessoa, pela Lua, o chapéu e o gato preto, mas só as rajadas de vento forte carregadas de gotas de água, grandes como balas, me deram ouvidos. O desespero da solidão ecoou em mim num trovão. De nada servia alimentar a Revolta. Olhei o céu plúmbeo e as últimas andorinhas voando em círculo antes de regressarem ao calor. Chovia a cântaros. Também eu com elas partiria, se soubesse voar, seguindo-as, como ao cheiro ainda quente de um bolo de chocolate. Regressar à eterna cozinha da Mãe África, o berço da vida, onde a alquimia da vida foi primeiramente gerada e ficar profundamente feliz. A chuva não parava. A campainha tocou e sem nada dizer, desci ligeiro as escadas e fui abrir a porta. Vi surgir à minha frente o Pessoa, de chapéu e gabardina, molhado que nem um pouco pinto. Convidei-o a entrar. Sem dizer palavra, meteu os pés dentro de casa. Ajudei-o a tirar a roupa empapada e fui metê-la na secadora. Que estranho ter o maior poeta português do século XX, de camisola interior cava branca, boxers de flanela cinza e meias pretas de algodão no meio da sala. Parecia querer dizer alguma coisa mas os lábios não se atreviam. A sorrir, tirei-lhe o chapéu da cabeça e só aí pareceu sentir-se nu. Vesti-lhe um roupão turco felpudo muito branco e fui buscar uma selha com água quente e sal grosso. Depois de o sentar numa cadeira defronte, mergulhou os pés na água e um arrepio de prazer percorreu-lhe o corpo. Tal como um Actor de Cinema Japonês, nenhuma emoção lhe transpareceu no rosto. Fiquei a olhar os seus pés muito esguios e brancos que há muito não deviam andar descalços. E aquele alguidar era um mar tropical salgado, em que tantos marinheiros se afogaram por tormentas e ataques de piratas. O seu mundo de sonho abria-se como um livro e tinha-o envolto em sensações tão intensas que Fernando nem me via. Olhei pela janela a tormenta no seu auge que para ele seria o ribombar de tambores rituais de povos Amazónicos, chamando a chuva canalizada por xamânicos chefes. E havia crianças e saguis à volta da fogueira, olhando a coreografia das danças dos muitos adultos, mão no ombro do da frente, muito juntos e quase pisando as brasas, numa correria de transe, ritmado e mântrico.

E de repente, viu-se no Alentejo, na sua casa no cimo do outeiro, à espera do Filhinho de Deus, que tinha ido brincar e tardava em chegar. Havia umas Migas de Coentros e Poejos que havia preparado e que estavam a arrefecer num prato de barro sobre a mesa. Num rompante, o menino raio de sol da sua vida entrou em casa e ele, tranquilamente, fechou a porta. Finalmente, o dia podia adormecer em paz.

Nem tudo o que parece é! - Neste mundo de Ficção Científica, poucas são as coisas que podemos assumir como reais. O Amor incondicional é uma delas, a mais bela e difícil de alcançar, possivelmente por não ter fórmula! No fundo, andamos à procura de panaceias e de resultados rápidos para tudo, mesmo para o Amor, sem percebermos que tudo começa em nós, com o despertar da consciência interior para só depois se manifestar nos outros. É um trabalho de anos de autoconhecimento. Mas como sempre se tem pressa, como o Coelho da Alice, muita gente se encheu de Pastilhas Milagrosas, coloridas como as Smarties mas sem sabor a chocolate e que deixam um amargo de boca, em tudo o que se faz e pensa. São usadas para o tratamento da saúde física e emocional, assim como as Igrejas Alternativas cuidam da alma em troca do Dízimo. E no fundo, o que necessitamos todos é do abraço verdadeiro que cura quase tudo! Mas quem está disposto a dar e receber abraços? Possivelmente as crianças, os animais e alguns adultos, que não se livraram da criança que há neles, e que lhes sai das calças como um rabo de macaco, animando a vida.

Depois há a Natureza, o Sol e a Lua. E quem não precisa deles? Só os tontos e por isso não devem ser contrariados. Preferem trabalhar num escritório sem luz natural e com ar condicionado, a estarem num prado a rebolar sobre a erva fresca, ao Sol e ao Vento. A Realidade de cada um é um mistério insondável que às vezes é melhor nem saber. Não sou de fazer a apologia da ignorância nem da falta de diálogo, mas de proteger o nosso disco rígido interior, que não tem de estar sujeito a qualquer tipo de vírus. E a Liberdade Pessoal o que é e onde fica, no meio disto tudo? - dei-me ao trabalho de ir pesquisar e descobri várias definições. Esta agrada-me! "Liberdade Pessoal - Direito de manifestação de vontade, segundo as normas jurídicas. No Código Penal, como objeto jurídico, é espécie do bem jurídico pessoa e por sua vez, compreende as seguintes subespécies: liberdade pessoal, inviolabilidade do domicílio, inviolabilidade de correspondência e inviolabilidade dos segredos".

Não sei quem foi que escreveu estes “Mandamentos”, mas parece-me ter sido o mesmo sujeito ou grupo que criou a Declaração dos Direitos do Homem, que não se aplica nem aos mortos. Tanta boa vontade não chega para se conseguir Justiça Social, nem para atingir uma plataforma de Salários Justos, Saúde para todos, Educação Pública apoiada, baixa das taxas e dos Impostos (que aumentaram ainda mais depois do começo da Guerra na Ucrânia). Parece que se vive na Apologia da antítese da Declaração dos Direitos Humanos. Parece que só nos coube deveres! Só me apetece dizer, Apre! Apre, muitas vezes!

Quanto às subespécies: Liberdade Pessoal, Inviolabilidade do domicílio, Inviolabilidade de correspondência e Inviolabilidade dos segredos, parece haver um ligeiro problema de comunicação, já que o mau jornalismo invadiu a privacidade alheia, inclusive com calúnia e difamação. Parece que o caldeirão em que se vive está a ser usado para se tornar tão tóxico que só uma Nova Ordem Mundial poderá pôr cobro a tanta loucura e falta de Bom-Senso. Mas cuidado com o fabrico de problemas para a criação de soluções, que é o jogo seguro de qualquer Sistema! Assim, não se consegue sair do Matrix, que a maior parte do rebanho vê como uma Trilogia de Ficção Científica e Efeitos Especiais e não a realidade ilusória em que nos deixámos aprisionar. Apre e mais apre!

E não há nada mais aborrecido do que deixar queimar o arroz! Normalmente acontece quando se está a fazer várias coisas ao mesmo tempo e se deixa de vigiar o lume. Os Hare Krishna costumam chamar a estas distrações de Modo da Paixão. Traduzindo, quer dizer que não se está focado na ação consciente do serviço a Krishna. Assim, salga-se demais ou de menos, exagera-se no tempero, queima-se a roupa com o ferro de engomar e por aí fora. Isto aplica-se a ambos os sexos, como é óbvio!

E não há volta a dar. Já tentei juntar mais água e mais arroz, mas o cheiro e sabor a queimado não desaparecem. Há que fazer um novo arroz e ficar ali, de olho no lume, para que nada de mau de novo aconteça! Aprender com os erros é a nossa missão! Por isso tento sempre trabalhar focado numa atividade de cada vez. Curiosamente, é na cozinha que consigo fazer vários pratos ao mesmo tempo, mas sem sair do pé do fogão.

Quando a mente está dispersa, perde-se a noção de tempo e aí é a catástrofe total. O mesmo se dá com a “Pasta”, quando o macarrão coze demais ou fica encruado. Para se conseguir o ponto "Al Dente" é necessário estar a controlar. Al Dente, quer dizer, no ponto. Nem a massa deve ficar espapaçada, nem encruada.

Assim devíamos fazer com tudo na vida! Até mesmo com as ideias, que deveriam ser cozinhadas na mente, em lume brando, até ficarem estaladiças e prontas a ser comunicadas. Esse deveria ser o objetivo! É que por vezes andamos a remoer, cozinhando-as demasiado tempo até ficarem uma papa, sem graça nenhuma, ou até mesmo queimadas. E nada pior do que uma ideia esturricada!

Revi hoje algumas pessoas que não via há quase 30 anos. Uns, da Lisboa Antiga, quando toda a gente acabava a noite no "Frágil", um Bar-Discoteca, onde se juntavam muitos artistas, bem no centro do Bairro Alto. Era o despertar de uma outra cultura noturna que deixou a sua Griffe, na memória do Bairro Alto. Outros, eram dos meus tempos do Porto e as longas temporadas que lá passava, em que as Estações se sucediam numa ordem natural que já não existe. Curiosamente, esta manhã, encontravam-se na mesma esplanada de bar de praia, a falar uns com os outros. Foi quase o abrir de um Diário, ou melhor, um livro de História. Conhecemo-nos há tanto tempo, que tudo parecia a preto e branco, como nos filmes do Chaplin. Recordava o que vestiam naquela época, os cortes de cabelo, os perfumes, os carros e as casas que tinham. Lembro os temas que ouviam e o que dançavam. Hoje, tudo aquilo está datado e fora de Moda, a não ser que se interprete como revivalismo ou Vintage (que é o mesmo que dizer - falta de criatividade dos tempos atuais).

E a Moda de hoje estará ultrapassada em muito poucos anos. Enquanto a Arte vai desbravando caminhos de transformação social, abrindo novas portas, a Moda vai atrás como espelho dela. Daí haver muito mais artistas incompreendidos no seu tempo do que estilistas. E os Criadores de Moda que não são entendidos, invariavelmente, têm mentalidade de artistas. A vida é surpreendente e é só seguir ou nadar contra a corrente. Às vezes, acontecia-me andar em Lisboa e entrar por bairros e ruas a que não estava acostumado. Inevitavelmente, tinha os encontros mais improváveis. Para isso, bastava alterar os meus horários e rotinas, para que tudo mudasse. Surpreendem-me as pessoas que fazem as mesmas coisas todos os dias, numa busca de segurança pela repetição. Nunca o consegui. Necessito o novo, o inesperado e surpreendente. Hoje, na ilha, busco a simplicidade e já não me preocupa a rotina nem a repetição porque estou centrado em mim e com isso, em constante transformação. Fluo como um rio que quer chegar ao mar.

E se as Paragens de Autocarro (Bus) e de Metro tivessem estantes com livros? Quem quisesse poderia ficar calmamente a ler um romance, fazendo o seu trajeto, e na estação de destino deixar o livro numa estante criada para o efeito! Ou haver nas Caixas Multibanco (ATM), o serviço de acesso a livros que sairiam por uma ranhura abaixo daquela por onde sai o dinheiro. O poder do dinheiro aliado à Cultura!!! É que a desertificação neuronal que começa a deixar clareiras quando se deixa de ler e filosofar, por se ter a mente focada só no lucro e nos bens materiais, pode ser combatida com os livros. É que depois, não há shampoo de Proteínas que valha para renovar as sinapses danificadas que fazem a ponte entre os neurónios moribundos. Hábitos de Leitura deviam ser estimulados em casa pela família, incrementados na escola e direcionados para todas as formas de Arte e áreas do Conhecimento - "Há tanta coisa que poderia ser feita!" - gritou-me a vizinha da frente, enquanto estendia roupa no varal da cozinha. Ela sabia bem o que dizia. Desempregada, com uma prole de cinco filhos pequenos, e o marido a trabalhar na Uber, não tinha mãos a medir - "Mas neste país ninguém mexe uma palha, parece que está tudo a dormir!" - concordei, com um aceno de cabeça.

Também eu penso que Portugal é hoje a Corte da Bela Adormecida. Tudo a ressonar durante os 48 anos de Fascismo, mais 49 desta Democracia, que de Democracia só tem o nome. Falta-nos um ano de sono, a babar na fronha, para chegar ao século! Resta saber se a Madrasta ou Bruxa Má, que tem sido o Estado durante todo este período, não se terá enganado e feito uma magia para mil anos, sem que a Fada Madrinha do nosso belo país, se tenha dado conta. É que mais novecentos e um anos desta treta, começa a ser demasiado tempo para se estar deitado. Faz escaras físicas, emocionais e espirituais. Espero que o feitiço seja só mesmo de 100 anos!