— Que foi? - resmunguei. Mas a chaleira não estava para aí virada. Nunca lhe dei muita conversa e ela ignorava-me agora, como que concentrada numa vingança.

Sacudi-lhe o pó dos anos. Ainda há uns minutos estava sentado à secretária, na luta com a pesada frustração de ter a página branca a encarar-me e a julgar-me, agora isto...

E levantei-me eu para fugir da gélida brancura da folha e vir procurar inspiração (e fuga à frustração) dentro da chaleira, e ela a fazer-se calada. A maldita! Cheguei-me mais ao fogão rústico da cozinha e, cheio de desdém, enchi a chaleira com água, deixando o líquido escorrer lentamente.

A minha consciência recaiu por inteiro naquela dança do fluido e parece que os meus pensamentos o seguiam chaleira adentro.

Levantava-se uma vozinha lá no fundo. Ainda pensei que aquele pedaço de metal se tivesse dignado a responder, mas não... Era em inglês, e esta chaleira tinha sido comprada em Viseu. Meti-me mais à escuta:

— When you pour water in a teapot, it becomes the teapot... - Um Bruce Lee ecoava através do barulho da água nos meus ouvidos.

Não liguei muito, porque para contrabalançar o Bruce, estava a minha cabeça a ecoar fortemente: “Mas que raios hei-de escrever?”

E a maldita, já no lume, lá ia emanando pequenos vapores.

Eu retomo o meu lugar, pronto de novo para a escrita, contudo, apercebo-me que os meus pensamentos pareciam ter eles próprios evaporado: onde estão os pensamentos que antes aqui estavam?! Ia jurar que os tinha deixado nesta cadeira!

Aparentemente, a ebulição leva as ideias pelo ar afora, dissipando-as na atmosfera... Todas as palavras que ainda não tinha, irão ser um orvalho de texto num outro local. Talvez seja exatamente este efeito que torna o chá uma das bebidas milenares mais consumidas do mundo.

Eu, desde criança, fui habituado a beber chás como modo de promover a saúde, por isso, a maior parte das vezes que ingeri chá foi em situações debilitantes. De maneira curiosa, o chá parece ter em si a característica inata de nos prender os pés ao momento presente. Não consigo desvendar se é por todo o ritual da preparação que ele exige, ou se é a criação de um carinho reconfortante que a temperatura, odor e aroma do chá transmitem, mas há algo...

— Para além de me ancorares aqui, podes trazer-me de onde vens uma ideia ou duas?! - berro daqui para a cozinha, mas a chaleira ignora-me com a sua indiferença metálica. O normal. Só costuma responder quando a água ferve.

Vocês nunca se sentiram pesadamente, mas pacificamente ancorados ao presente por causa de beberem um chá? Há algo nele que me despoleta esse sentimento... Questiono-me se isto é uma experiência humana ou (perdoem o egocentrismo) algo intrinsecamente meu. Mas que há algo no chá para além de folhas e água, há...

Claro que há algo. Não há-de ser acidental o facto de haver cerimónias de chá no Japão, não será também acidental o facto de nesse país se consumir chá desde o século IX. E ainda aí anda esta tradição cerimonial do chá, por vários países, ocasionalmente ligada ao Taoísmo, ao estado Zen e sabe-se lá mais quantas filosofias antigas que tentam promover uma existência harmoniosa.

Porque aconteceria isto se os outros não sentissem o mesmo, correto?

No entanto, neste cantinho da Europa, é fácil esquecer a importância psicológica que o chá possui, tal como toda a cultura à sua volta.

Afinal, quando fazemos chá, talvez não estejamos só a deitar folhas em água quente... é como se estivéssemos ativamente a procurar algo. Talvez calma, harmonia ou só ajudar a digestão. Entretanto, no fundo, há um desejo inerente ao ritual de fazer o chá e quando efetivamente o fazemos, esperamos que o nosso desejo se materialize objetivamente com o surgimento dos primeiros vapores.

Parece que a chaleira funciona, assim, quase como que um pequeno poço dos desejos. Queremos transformar o calor e a pressão em algo maior, melhor, que possa nutrir uma necessidade de que padecemos.

No meu triste caso, convenci-me de que fazer o chá me ia despertar algum tipo de inspiração (coisa em que nem sequer acredito), mas ninguém me pode julgar pela inocência.

Ahh! Calma!...

A chaleira começou a resmungar sibilante na cozinha, fazendo lembrar uma tia velha que já não tem paciência para crianças. (Finalmente, já não era sem tempo!)

Levanto-me para ir buscar o líquido que desejo que venha concertar a minha falta de palavras. Lá vou, e venho. Quando regresso, agora empunhando a caneca cheia do líquido âmbar, apercebo-me de nova magia: as palavras que antes tinham desaparecido, agora, balançam alegremente nesta página.

Assim como na preparação de chá, a criatividade fez-se de distante. Exigiu-me atenção, paciência, e essa paciência de pescador fez-me encontrar as palavras num aparente vazio e torná-las num fluído pronto para degustação e partilha.

Quando me sento, sei que já não preciso do chá para escrever, aliás, está tudo escrito, já. As palavras fluíram suavemente como o líquido que trago na caneca: reconfortante, nesta tarde chuvosa, e cheio de possibilidades.

Juro que cheguei, até, a sentir que a chaleira parecia mais orgulhosa do resultado do que eu! Talvez eu deva começar a consultá-la mais para orientação criativa - não me lembro da última vez que a esfreguei, mas, parece-me ser mais provável haver um génio nela do que numa lâmpada.

De qualquer das formas, o chá vai para a pia, já serviu o seu papel. Vou abrir uma lata de cerveja para celebrar.