Percebi-o muito cedo, porque já em miúdo estava atento a tudo, dos sons às cores, formas, cheiros, sabores, das pessoas aos lugares. Os meus sentidos funcionavam como tentáculos a captar a vida, para depois me saciarem dela e fazer sorrir por dentro. E cada dia era uma nova descoberta! Nunca nada era igual. Sempre fui bom a jogar ao “Veja as 10 diferenças”. E em boa da verdade, na vida acontecia-me o mesmo. E porque tudo sempre estava em constante mutação, que ridículo seria querer cristalizar o tempo a meu favor. O tempo não pára! Que o digam as estações, tudo o que cresce no planeta e o grande Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa, ao dizer:

Se, depois de eu morrer, Quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples. Tem só duas datas – A da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra coisa Todos os dias são meus (…)

(1968) A Dona Adozinda era a senhora que tomava conta do meu avô materno, na grande casa de Lisboa, um chalet de telhados pontiagudos com um grande jardim que dava para o Tejo. Eu sabia que ela era a viúva de um militar, tinha um filho já grande e dois netos sorridentes que a vinham ver de quando em vez. Vivia sob o tecto do meu avô há quase uma década e geria tudo naquele imenso casarão de família, como uma governante. Aquela casa, que sempre foi cheia de vida, era agora um museu de memórias embalsamadas nos objectos valiosos e antigos que não podiam ressuscitar ninguém. A Dona Adozinda limpava tudo com cuidado.

Era uma mulher pequenina, dinâmica, de óculos redondos de aro dourado que filtravam o azul vivo dos seus olhos, cabelo curto encaracolado já salpicado de brancas e um sorriso constante, que deixava perceber uns dentinhos de rato. Tinha sido educada “à antiga” para se tornar uma 'Fada do Lar', expressão que identificava as meninas de boas famílias que eram exímias a cuidar da família e do lar. E era verdade que das suas mãozinhas brotava a beleza. E ainda tocava piano e falava Francês! Mas acima de tudo, era uma notável contadora de histórias. As tardes, passava-as no quarto da costura a fazer renda e a contar-me lendas e aventuras de heróis. Eu, muito miúdo, deixava-a tecer na minha imaginação, tramas de reis, princesas, cavaleiros e animais que falavam como nós. E tudo fazia sentido, porque o objectivo de uma boa história, era pôr o ouvinte a acreditar.

Com essa chave, era fácil para mim entrar noutra realidade, tão intensa como ler um livro ou ver um filme. E explicava-me:

– O menino André tem de perceber que não há só uma realidade. Quem disser isso, está a enganá-lo. Há tantas realidades quanto o número de seres vivos. E mesmo essas vão variando, consoante as ideias e os pensamentos de cada um. Há quem não acredite em contos de fadas, mas depois sofre porque não ter sonhos aos quais se agarrar, quando a vida começa a andar para trás…

Dizendo isto, poisou a renda no colo, olhou-me bem nos olhos e revelou baixinho:

– Porque tudo vai e vem, assim como as ondas do mar. Tudo sobe e desce como as marés. O sol dá vida, e o sol queima. Fogo e água numa cruz. Ao dia segue a noite, o inverno persegue o verão. Chega-se sem nada e nada levamos quando partimos!

E recomeçou a fazer a sua renda.

– Há cinco passos a dar, para se estar sempre de bem consigo e com a vida. Quer ouvir? O primeiro é “nunca desistir dos seus sonhos”. Por mais que tudo pareça perdido, não desista. Siga em frente, sempre! O segundo passo é “cantar”. Cantar muito, alto ou baixinho, não interessa porque "quem canta os seus males espanta", lá diz o ditado e é verdade. Deixar entrar o ar todo dentro de si e fazer com que o som vibre dos pés à cabeça, chegando a dar tonturas. Tonturas dessas são sempre boas!

E começou a rir baixinho como sempre fazia. Depois, continuou:

– Terceiro passo: “dançar”. Quando o corpo quiser, que dance! É o grande substituto da ginástica e tal como a música, ajuda a libertar as emoções. Há que combinar as duas e divertir-se, sozinho ou em grupo. Nas festas em que há música e gente a dar o seu pezinho de dança, o ar fica mais leve. O quarto passo é “escutar histórias e lendas”. Fazê-lo em vez de ouvir as notícias. Os noticiários apodrecem a Imaginação. Espicaçam a raiva e a revolta e depois levam-nas por um túnel escuro até desembocarem numa luminosa arena, chamada Praça Pública do “diz que disse”. Lá, são espicaçadas até à exaustão. E para ali são deixadas, sem que ninguém lhes indique o caminho de regresso ao coração. Sem ele, a vida não faz muito sentido, não é verdade? E por último, há que saber estar em “silêncio”, o bom silêncio que nos rodeia como um abraço caloroso...

E, pousando a renda no regaço, deu-me umas palmadinhas no joelho, com a sua mão quente. Numa risada surda, parece que entrou de novo dentro de si e fechou a porta. Recomeçou a trabalhar em silêncio. O recado estava dado. Era como um segredo. A partilha daquela semente que só se passa a quem se gosta de verdade.

E talvez por isso eu tivesse feito dança e tido aulas de canto, anos a fio, até me tornar profissional. E agora, esteja aqui a partilhar as minhas histórias convosco? No fundo, sou um contador de histórias. Conto-as desde miúdo. O meu objectivo sempre foi alegrar quem me escutasse ou lesse, através do sumo que ia tirando da minha experiência de vida. E quanto ao silêncio? Querem maior silêncio do que viver há anos numa ilha, perdida no meio do azul do Egeu? Curiosamente, a minha vida seguiu à risca os ensinamentos da Dona Adozinda e só agora o realizei. E foi o silêncio que deixou a minha voz interior, manifestar esta verdade, pelo silêncio que está na base de tudo. E nunca desistir! Imaginem que um dia era criado um evento mundial intitulado, “O Grande Beijo” em que toda a gente, aos pares e à mesma hora, por um minuto que fosse, colava os lábios. O silêncio que seria! Só o beijo cala a palavra e ao selar os lábios, mostra o caminho de silêncio e que vai direito ao coração.

– Depois da tempestade vem a bonança.

Recomeçou a Dona Adozinda, enquanto o dia aos poucos se apagava. E continuou:

– Comer é uma luta constante, o desejo real dos olhos apoiado pelas mãos. A gula, ao manifestar-se à mesa, usa a visão e o tacto para saciar a boca, o estômago e as emoções. E tudo tende a acabar numa boa sesta - depois de uma pausa para beber um copo de água, coberto por um paninho de organza finamente bordado... continuou - Nada como uma boa soneca para voltarmos a ser donos do nosso castelo!

Queria dizer com isso, que podíamos tornar a ter paz interior? Pelo menos foi assim que o entendi. No entanto, o meu problema estava na sobremesa. Mal ingeria açúcar, perdia qualquer esperança de paz no mundo e do nada, começava aos pinotes como se tivesse tomado um expresso triplo. Que canseira ter a barriga cheia e querer dormir mas estar com o corpo aos saltos como um cabrito. Lembro-me que uma vez, continuei aos pinotes à volta da mesa de jantar do avô, enquanto os outros se retiraram para os seus aposentos, dormir a sesta. Nem os meus irmãos quiseram ficar a ver. Então fui para debaixo da mesa.

Gatinhei de um lado para o outro, de um lado para o outro, até que quis dar um daqueles saltos fantásticos à golfinho fora de água e dei uma estrondosa cabeçada no tampo da mesa mas por baixo. Ouviu-se pela casa toda. Vieram logo todos a correr, ver o que se tinha passado. Disfarcei como pude, a dor que tinha na cabeça. O que é certo é que a adrenalina estava tão alta que acalmou a dor e ninguém deu por nada. Perguntaram-me o que tinha acontecido e eu respondi – Não sei. Deve ter sido na rua – e como não havia estragos visíveis, os pais foram às compras e os outros dormir a sua sesta.

Eu fiquei debaixo da mesa, com a adrenalina que baixava e a cabeça a latejar. E disse para com os meus botões – O que é que te havia de dar? Saltos de golfinho a seguir ao almoço? Nunca mais aprendes! – e aos pulinhos, levado por aquele motor de açúcar, subi a grande escadaria de madeira que levava à zona dos quartos, no piso de cima.

Mas como os dias nunca foram iguais e eu era do tipo de seguir rotinas, em vez de ir para o meu quarto, entrei no dos pais e abri a grande porta de espelho bizoté do gigantesco roupeiro de madeira escura que parecia um apartamento. Do lado de dentro, a porta tinha um varão de madeira onde estavam penduradas muitas gravatas coloridas. Parecia um mostruário de loja. Peguei numa de malha de seda grená. Como não sabia fazer o nó, embrulhei-a à volta do pescoço como se fosse uma cobra e deixei-me ficar à espera, a ver o que acontecia. Claro que numa casa onde toda a gente tinha ido dormir a sesta, os elogios seriam difíceis.

Mesmo assim, deixei a gravata à volta do pescoço um bom tempo, até que foi caindo, porque eu continuei a andar de um lado para o outro. E quis o destino que pisasse uma das pontas, tropecei e quase fiquei estrangulado na gravata. Lembrei-me da bailarina norte-americana, Isadora Duncan, que teve esse fim trágico, não por culpa de uma gravata mas pela sua longa écharpe que se enredou na roda do descapotável em que seguia, estrangulando-a. Tinha visto um filme na televisão que contava a vida da artista. E foi em Nice que isso aconteceu. Havia mortes muito estúpidas e impressionantes e a da Isadora Duncan era uma delas. E a minha ia sendo também! Nunca se deve andar por aí com gravatas até aos pés porque pode dar mau resultado. Que o digam os palhaços pobres que são detentores dos ares mais miseráveis do mundo, só comparável aos dos sobreviventes de guerras ou refugiados. Será porque tropeçavam nas gravatas que usavam com aqueles sapatos gigantes? Terão visto a morte à frente dos olhos? Desembrulhei-me logo da minha e deixei-a ficar junto às outras gravatas.

Ao lado estava um leque de penas de avestruz, que pertencia à mãe. Peguei nele e abri-o. Sempre tive um apreço especial por Avestruzes. Achava que só elas podiam pôr aqueles grandes ovos de páscoa de chocolate – Devem ter bom fundo para pôrem ovos tão doces! – depois, percebi que no resto do ano, punham ovos que não de chocolate. Com cerca de um quilo e trezentas gramas, cada ovo pesava o equivalente a duas dúzias de ovos de galinha. Mas mesmo assim, ainda não eram os maiores ovos do mundo. Havia quem pusesse maiores! O pai tinha imensa piada a contar anedotas e fazia-o depois do jantar. Uma vez contou esta:

Estavam dois velhos muito velhos sentados, lado a lado num banco, a olhar o céu quente do fim da tarde. Nisto, passa um avião e o primeiro velho pergunta, lentamente – É compadre, o que é aquilo? – e o outro, olhando o objecto a cruzar o céu, responde – Aquilo? Aquilo é um avião! - e o primeiro exclamou - Ena, que grandes ovos deve pôr a avioa!

Eu que sempre gostei de ovos de páscoa, tinha uma repulsa compulsiva pelos Coelhos da Páscoa. Sempre me irritaram! Era pêlo a mais à mistura com tanto chocolate e amêndoas! Só faltava estarem vestidos de vermelho para se igualarem ao irritante Pai Natal. Nunca tinha visto tanto ovo de chocolate, como nos grandes supermercados de São Paulo. Os tectos e as paredes das lojas, forrados de deliciosos ovos que enchiam os espaços de cor! Faziam-nos de chocolate amargo, chocolate de leite, chocolate branco, crocante, praliné. Como bom guloso que sou, ficava fascinado! Foi no Brasil que vi também, os ovos mais pequeninos do mundo, os do beija-flor. A espécie Mellisuga helenae, normalmente conhecida por "Beija-Flor de Helena". Os ovos têm menos de 1 centímetro e não pesam 1 grama! Mais pequenos do que os pinhões da Páscoa que acompanhavam as amêndoas cobertas de açúcar glacé.

Lembrava-me bem da primeira vez que tinha tido contacto com Icing sugar, o famoso açúcar de confeiteiro ou açúcar glacé. Tinha sido no nosso apartamento de Lisboa, no bairro de Campo de Ourique. Eu tinha uns três anos e a mãe queria fazer uma Charlotte de Chocolate com Morangos. Gostei imenso do aspecto a neve branquinha e do sabor suave daquele açúcar. No dia seguinte, tive “saudades” e fui muito sorrateiro ao armário da cozinha, à procura do tal açúcar fino como pó de talco. Encontrei-o e fui tirar uma colher de sobremesa da gaveta dos talheres. Pensando melhor, acabei por pegar numa de sopa. Levei uma boa colherada à boca e qual não foi o meu espanto, quando o açúcar não derreteu na saliva, pelo contrário. Deu-me um valente ataque de tosse que deixou o chão da cozinha todo polvilhado. Peguei na pá e na vassoura pequena e limpei o melhor que pude, com aquele sabor horrível na boca. O chão ficou uma porcaria e a minha cara parecia a de um palhaço. A mãe quando me viu, deu uma gargalhada e explicou que farinha não era açúcar de pasteleiro. Ainda por cima aquela era farinha já com fermento adicionado, uma inovação para a época, chamada farinha branca de neve.

– Se soubesses ler, vias que estava o nome de cada coisa marcado no rótulo da sua embalagem. Assim foste ao engano e levaste "gato por lebre" - disse a mãe. E eu respondi - Que gato por lebre? O sabor da farinha é mais diferente do açúcar, do que o do gato assado com batatas, em vez da lebre! - a mãe deu uma gargalhada e acabámos de limpar o chão. A partir daí, tive sempre muito cuidado para não me deixar enganar com a aparência das coisas, porque nem sempre tudo o que parece é. Mais difícil foi conseguir essa destreza com os enganos dos humanos. Mas tudo se aprende, até deixar de ser um guloso compulsivo, porque todo o excesso traz cegueira.

Se há coisa que aprecie, é o silêncio, o quarto passo recomendado pela Dona Adozinda para atingir o equilíbrio consigo e com os outros. Na infantil, eu vivia num constante terror. Havia crianças por todos os lados, aos berros, como se estivessem a falar para outros meninos no prédio em frente. Mas estavam ali todas, umas em cima das outras, como uma colónia de focas, a brincar e a rir, aos gritos. Era demasiado. Em cada jogo que faziam, criavam onomatopeias ruidosas, como banda de efeitos de um filme de terror. Vinha para casa exausto, com a cabeça a estalar. Como é que a professora aguentava? Depois do lanche e da sesta, não sei o que me dava. Começava eu a fazer barulho, como se tivesse sido contagiado pelo vírus dos meus colegas! Até que descobri que era o silêncio que me perturbava. Neste caso, o silêncio do silêncio! Via-o como um vazio, um buraco negro que tivesse de ser preenchido a todo o custo e não parava. Punha música a tocar no gira-discos, dançava ao mesmo tempo, fazia sons estranhos com o corpo, tipo coreografias da Martha Graham, falava para as paredes num caos total da mente. Por achar que o silêncio não podia ser silêncio e que de alguma forma teria de ter som, percebia como as crianças faziam de tudo para não dormir à noite. E não era por medo do escuro mas por não suportarem o silêncio! O inquietante silêncio. Daí as crianças adormecerem facilmente com caixinhas de música, mesmo com uma luz de presença acesa. Essa era a prova!

O fogo de artifício é mais uma forma de contestação ao silêncio e das violentas. Usado para celebrar a data do final de uma guerra, usa explosões múltiplas e cheiro intenso a pólvora queimada, numa afronta à paz, essa outra forma de silêncio. O mesmo acontecia com a harmonia e o amor. E quanto ruído conseguiu a humanidade criar à volta delas?

Hoje, felizmente, vivo no silêncio de uma ilha grega perdida no Egeu. Uma sensação boa de disfrutar o azul deste mar que me rodeia, num calmo regresso ao ventre da Mãe Terra.