Que tal começar este artigo com uma citação do jovem filósofo Ferris Bueller:

Já disse isso antes e repito: a vida passa muito rápido. Se você não parar e olhar ao redor de vez em quando, poderá perdê-la.

Para os que tem menos de 40 anos de idade, apresento Ferris Bueller, um personagem icônico da cultura pop, interpretado pelo ator Matthew Broderick, protagonista do filme “Ferris Bueller´s Day Off”, de 1986, conhecido no Brasil como “Curtindo a Vida Adoidado”, e em Portugal como “O Rei dos Gazeteiros”. Não! Acho que talvez a maioria dos amantes de cinema o conhecem, afinal, “Curtindo a Vida Adoidado” foi um dos filmes campeões de exibição nas Sessões da Tarde. Mas, por favor, não se enganem em considerar esse filme um passatempo esquecível, como tantos outros filmes sobre adolescentes.

Este gênero, também conhecido como “coming-of-age” é, de fato, um subgênero da comédia dramática que teve seu apogeu nos anos 80, graças a um jovem realizador chamado John Hughes. Ele imprimiu na tela como ninguém as angústias, ilusões e desilusões dos jovens dos anos 80. Hughes foi um mestre das emoções juvenis, e responsável por retratar toda uma geração até então, sem voz no cinema.

“Uma das maravilhas daquela fase (a adolescência) é que as suas emoções são tão francas e cruas”, disse Hughes. “Naquela idade, sentir-se mal é tão bom quanto sentir-se bem”. A ebulição de sentimentos contraditórios muitas vezes é o que torna a adolescência um período tão difícil e ao mesmo tempo tão rico. Os anos 80 aconteceram exatamente no intervalo entre os meus 15 e os meus 25 anos de idade. Sou um pouco suspeito em eternizar aquela década como a mais criativa, a mais diversa e a mais rica da história da produção cinematográfica. É claro que tivemos grandes clássicos no passado e grandes épocas no cinema. Não esqueçamos, por exemplo, do ano de 1939, considerado por alguns críticos como o mais importante do cinema, em que foram lançados filmes como “E o vento levou”, “O mágico de Oz”, “No tempo das diligências”, “A mulher faz o homem”, “A regra do jogo”, todos no mesmo ano. Imaginem a dúvida para decidir qual filme assistir no sábado à tarde.

Contudo, os anos 80 foram marcados por uma extensa produção cinematográfica em todo o mundo, com filmes de todos os gêneros. Foi a década dos “blockbusters” (Indiana Jones, E.T., O Retorno de Jedi, Top Gun, Batman). Foi também a década em que o “star system” de Hollywood se recriou, um pouco apagado desde os anos 50, com nomes e cachês estratosféricos como Meryl Streep, Dustin Hoffman, Jack Nicholson, Robert De Niro, Harrison Ford, e outros. Os anos 80 foram o período de ouro dos filmes autorais extremamente comerciais, de realizadores geniais como Steven Spielberg, George Lucas, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Ridley Scott e, porque não John Hughes.

Nem tudo foi tão benéfico assim. Os orçamentos dos filmes ganharam uma escala de dezenas de milhões de dólares, dificultando as produções independentes que sempre deram um frescor para qualquer expressão artística, e que, paradoxalmente, foram o celeiro desses jovens e bem-sucedidos autores. A partir daquela década, os executivos de marketing dos estúdios passaram a ditar o script dos filmes, com sessões de teste antes dos lançamentos dos filmes, onde, em muitos casos conhecidos, decidiu-se alterar o rumo das histórias, os desfechos, a existência ou não de personagens. Alguns diretores, tolhidos de suas decisões artísticas, relançaram seus filmes anos mais tarde com a “versão do diretor”. Outros criaram suas próprias produtoras e estúdios, empresas independentes, mas superpoderosas como a Lucasfilm de George Lucas e a Dreamworks de Spielberg, por exemplo.

Volto a John Hughes e aos adolescentes em transformação. Hughes foi escritor, produtor e diretor, com total controle sobre seus filmes. Fez de tudo como diretor: dramas (“Sixteen Candles”, o super clássico “The Breakfast Club”); comédias (“Ferris Bueller´s Day Off”, “Uncle Buck”, “She´s Having a Baby”, “Weird Science”); e até road movies como “Planes, Trains and Automobiles”. Produziu todos os seus filmes e muitos outros. Como roteirista, nos presenteou com filmes como “Pretty in Pink”, “Some Kind of Wonderful”, “National Lampoon´s Vacation” e a série “Home Alone”. Seus filmes foram e são praticamente manuais dos anos 80.

Faço aqui uma observação e uma explicação sobre porque usei os títulos originais em inglês. As traduções de títulos de filmes merecem um artigo à parte. O gênero de filmes adolescentes já por si ganha títulos em português, no Brasil, de apelo quase infantil, que, na minha opinião, não condizem com o conteúdo, salvo exceções. “Sixteen Candles” vira “Gatinhas e gatões”, “Uncle Buck” vira “Quem vê cara não vê coração”, e “Ferris Bueller´s Day Off”, este sim, vira o irresistível “Curtindo a vida adoidado”.

Seja em português ou inglês, os filmes de John Hughes caracterizam-se por personagens adolescentes que estão sempre sofrendo de algum modo, mesmo nas comédias. Eles têm amigos, mas a dor pessoal de cada um deles, oriundas de relações familiares conflituosas, os isola e os carrega de um sentimento de extrema solidão.

As interações sociais são duras, marcadas por diálogos intensos e muito bem escritos. E nisso, Hughes sempre dá um show. Os roteiros são bem construídos, amarrados à estrutura tradicional de apresentação, conflito e resolução, como manda o manual. Extremamente bem executados.

Hughes foi também um grande diretor de atores. Não por acaso que muitos dos seus “dirigidos” tornaram-se grandes no cenário cinematográfico, como o próprio Ferris/Matthew Broderick, ou Kevin Bacon, Elizabeth McGovern, Emilio Estevez, e mesmo gente grande como Steve Martin e John Candy.

A vida passou muito rápido. John Hughes faleceu precocemente aos 59 anos, em 2009, vítima de um ataque cardíaco fulminante, quando passeava em Nova Iorque. Foi uma perda gigantesca para o cinema. Sempre me pergunto o que este mestre poderia nos proporcionar até os dias de hoje. Diferentes histórias, talvez? Afinal vivemos novos tempos, novas gerações. Uma coisa é certa, os conflitos, ansiedades e emoções da juventude, a descoberta do mundo, a aurora da vida adulta serão temas eternos e fonte de grandes, marcantes e divertidas histórias. Que falta nos faz a sensibilidade do jovem John Hughes.