No final da Idade Média, a partir de 1500, que é também o início da idade moderna, encontramos a justiça criminal sendo realizada nas mais diversas maneiras, evidenciando assim, que as punições legais podem e devem ser estudadas no contexto da evolução das ideias.

Desde a Antiguidade, a honra pessoal sempre foi um bem precioso, garantia de inclusão e sobrevivência nas comunidades. Naturalmente, punições físicas e até mesmo as execuções capitais (condenação à morte) carregavam um certo grau de desonra, mas foi na Idade Média que os sistemas punitivos desenvolveram um arsenal de técnicas voltadas para punições degradantes, aquelas que enfatizavam a desonra, a vergonha diante da comunidade. A exposição pública do culpado e seu delito levava à perda da honra e ostracismo social, conversar ou se aproximar de pessoas expostas à vergonha pública atingia também, com desonra, quem assim procedesse. Com esse método a coerção social se exercia com mão de ferro e, dessa maneira uma gama enorme de comportamentos malvistos eram reprimidos e coibidos.

Uma das formas punitivas muito difundida na Alemanha e Inglaterra era infligir o uso da máscara da vergonha. Ao detectar um comportamento condenável socialmente ou um crime surgia a elaboração da punição. Pessoas, que com seus atos envergonhavam a família e a comunidade, precisavam ser desonradas, envergonhadas, sentir na pele o erro, o crime pelo qual estavam sendo punidas. Eram obrigadas a desfilar pelas ruas das aldeias onde viviam, usando máscaras de ferro em formatos de cabeças de animais e outros sinais denunciadores dos seus malfeitos. Isso tinha consequências terríveis em termos de isolamento e sobrevivência e portanto era muito eficaz como sistema repressivo.

Chama a atenção como as máscaras indicavam e reproduziam as faltas e punições. Essa característica de reproduzir comportamentos e faltas é exemplar, denunciando erros e culpabilidade. Mostra como o grupo, a comunidade a qual o punido pertence se torna plateia de suas histórias escondidas, seus desejos, falhas e frustrações. Essa exibição pública de punição traz à luz o crime, a falta, permitindo, então, crítica, punição e mais que tudo exemplo de comportamento e atitude a evitar. Esse aspecto educativo da punição criou referenciais bem distintos para os sistemas penais, deixando claro que a manutenção saudável das comunidades era o que se visava. Usar a máscara da vergonha era uma pena aplicada tanto a comportamentos hoje considerados leves, como brigas entre vizinhos, entre familiares, fofocas, falas irresponsáveis ou calúnias, até crimes graves como roubos e assassinatos. Punir o falador, a fofoqueira era uma maneira de proteger a unidade do grupo, reprimindo discórdias, por exemplo.

O engenho artesanal do castigo criou uma série de trabalhadores dedicados a essa produção. Mão de obra e olhares estavam voltados para essa dimensão corretiva e punitiva. Nesse momento, a máscara da vergonha era uma melhoria no sistema punitivo, que desde muito seguia o bíblico olho por olho, dente por dente, cortava mãos, línguas ou condenava à execução sumária. Esses procedimentos foram ficando para trás. Com as máscaras da vergonha, as faltas e crimes passaram a ser exibidos. O sutil pode ser representado, o símbolo configura ações e exemplifica, desmascara.

Quinhentos anos depois, hoje, após os descobrimentos, o Iluminismo, a expansão marítima, o intercâmbio entre diferentes culturas e o estabelecimento de novas fronteiras, com a Revolução Industrial e a quase extinção das aldeias, com a vida nas grandes cidades, o que seriam as máscaras da vergonha?

Nada mais envergonha o indivíduo ou tudo o envergonha? Talvez a ideia de desadaptação e desajuste seja o resíduo, o pó do esfacelamento de uma série de vergonhas. Deixando de estar ancorado em grupos, famílias, guildas, o homem moderno, solto nas tramas e tranças dos sistemas sociais e econômicos que o situa, perdeu referenciais de proteção enquanto convergência de interesses. Não é mais o Rei, o Senhor Feudal, a Igreja, o Santo Padre quem o julga e ampara. Agora tudo depende do que ele consegue, do que ele amealha e do que ele aprende, certifique e titule. A busca de equilíbrio e resultado obriga a inúmeros artifícios de sinonímia e distinção. Equilíbrio instável, apenas mantido pelas metas e objetivos a realizar.

Do ponto de vista psicológico, sentir vergonha é vivenciar a própria problemática em relação ao que não se aceita em si, à mancha que tem que ser escondida, mobilizando, assim, forças que tensionam. Ter vergonha é ser pego em flagrante, ou seja, é demonstrar, explicitar que não se aceita o que não se aceita. É a quebra da máscara aceitável, da funcionalidade e ajuste fabricados. É o medo de ser rejeitado, discriminado, estigmatizado, desprezado, tanto quanto a preocupação em ser aceito, em manter as imagens construídas. São as manchas que têm que ser escondidas a todo momento para conseguir marcas, vitórias.

Nas diversas sociedades sempre existem preconceitos, conceitos prévios do que é o melhor, o bom, o puro. Preconceitos que servem de matérias para religiosos, para interesses econômicos, e que também foram tecidos por vicissitudes, acidentes ou mesmo constantes processos históricos de aglutinação e dissociação. Os escaninhos, os padrões preconceituosos quando não atendidos positivamente, geralmente causam vergonha. Antes da liberação sexual, por exemplo, ser mãe solteira, não saber o nome do pai dos filhos era desdouro, fonte de vergonha. No mundo contemporâneo isso foi ultrapassado, e uma das maiores fontes de vergonha hoje é a pobreza, a vida humilde. Pessoas se envergonham de não fazer parte de círculos privilegiados, de não terem feito plásticas rejuvenescedoras, de não circularem em espaços de ostentação. As máscaras da vergonha são agora substituídas pelas máscaras de sucesso. Vergonha é não ostentar dentes, cabelos padronizados e grifes. Nesse contexto, a máscara de sucesso abriga e abre portas. Não há punição.

Os ídolos pop stars, os famosos jogadores de futebol remetem a máscaras de sucesso que os jovens, de uma maneira geral, querem imitar, seja virando um jogador de futebol, por exemplo, seja exibindo nas joias, nos tênis e nos moletons as marcas e trilhas de quem veneram. Imitar é se igualar, e essa aproximação é mágica, desde que desconsidera e nega individualidades, é o processo que catapulta sonhos, esconde vergonhas, nega o que se considera feio, pobre, desconsiderado. Vergonha, atualmente é ser o que se é, pois o que importa é parecer o que se deseja ser.

Historicamente o sistema judiciário acompanha a evolução das ideias, dos valores, dos direitos e deveres. Máscaras da vergonha são hoje peças de museus, não fazem mais parte dos sistemas de punição. Nos dias atuais, envergonhar-se de crimes cometidos é raro.

A vergonha, nos nossos dias, se restringe à exposição dos processos de discriminação e ajuste dos que fazem tudo convergir para busca de satisfação de necessidades para sobreviver e também para aparecer e significar, para conseguir satisfazer desejos numa busca desesperada da máscara que possa significar humanidade.