Imaginemos um bago, formoso e delicado, de tons pérola, cozido, envolto por uma camada cetinosa de amido, leite e açúcar, aromatizado com a pele do fruto que se quer cítrico e a casca interna duma perfumada especiaria ao qual se juntam gemas esféricas, amarelas, de ovos. Ao produto final damos o nome de arroz-doce.

Mesmo num país tão pequeno como Portugal, de Norte ao Sul do país, este doce adquire feituras diversas. Apesar das variantes serem por vezes minimalistas (talvez por ser motivo de disputas doceiras entre pessoas e lugares, muitas vezes de aldeia para aldeia), este doce celebra, como porventura nenhum outro, a tradição doceira portuguesa, sendo um doce obrigatória na mesa dos portugueses. Ainda hoje é assim. Ele prima pela simplicidade. Apesar disso, a sua feitura perfeita requer técnica apurada e muitos anos de experiência.

Da Origem do Arroz-Doce

O arroz é uma planta da família das gramíneas, tendo sido introduzido aquando da invasão da Península Ibérica pelos árabes no século VIII da nossa era. O estudo etimológico da palavra ‘arroz’ fornece-nos algumas pistas. Em português e asturiano, basco, espanhol ou galego, a palavra deriva do dialeto árabe andaluz arráwz, com origem do árabe أَرُزّ (’arúzz).

O primeiro testemunho da sua cultura surge somente em 1650 na obra de Frei Francisco Brandão, Monarquia Lusitana, na qual se afirma a existência de arrozais no reinado de D. Diniz, O Lavrador (1279-1325), na região do Baixo Mondego, na zona de Montemor-o-Velho. Foi o rei D. Dinis que incentivou o seu cultivo em Portugal. Graças à sua iniciativa, o arroz transformou-se num alimento digno das gentes mais pobres, sendo que até à data era um alimento exclusivo das classes mais abastadas.

Segundo os especialistas, a primeira referência ao arroz-doce provém da receita de Manjar Branco, feito à base de peito de galinha, arroz, leite e açúcar; receita esta descrita num dos cadernos do manuscrito intitulado O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, da autoria de Domingos Rodrigues, 1680. Aqui o arroz seria esmagado e transformado em farinha de arroz, a qual daria uma consistência peculiar ao prato, adquirindo uma textura gomosa.

Alguns exemplos de arrozes-doces

A base principal dum arroz-doce deve ser sempre o arroz de grão oblongo, o chamado carolino, tipo Japonica, pois é aquele que se ajusta melhor às tradições portuguesas. Depois vem o leite, açúcar, canela, ovos e casca de limão. Contudo há receitas que apresentam ingredientes que caíram no esquecimento da doçaria portuguesa, tal como a água de flor-de-laranjeira; um produto obtido a partir da destilação de pétalas de flores de laranja-azeda, ou ainda a água-de-rosas, proveniente da destilação de pétalas de rosas, comumente utilizado até ao final do século XVIII em Portugal. A utilização dos ingredientes e suas diferentes proporções originaram um considerável número de receitas de arrozes-doces.

Como anteriormente dito, o arroz-doce é um doce característico das tradições portuguesas. Geralmente é servido em taças ou travessas rasas, sendo parte integrante da mesa farta em dias de festa, romarias ou mesmo casamentos, isto um pouco por todo o país. Ainda hoje é possível ver em território luso um gesto representativo da sua força simbólica —, é comum lançar-se bagos orizícolas após a união do casal — como sabemos, o arroz é símbolo de prosperidade, fertilidade e abundância.

Na freguesia de Valado dos Frades, no concelho da Nazaré, encontramos a receita de Arroz dos Casamentos. Segundo Maria de Lourdes Modesto, ‘Este é o arroz-doce que se serve aos padrinhos e convidados especiais. Para os restantes convidados faz-se um arroz-doce menos rico em gemas de ovos. Os pratos de arroz-doce ficam de véspera sobre a cama da mãe da noiva, previamente coberta com um lençol; dali saem apenas na altura de serem servidos os doces.’

Mas, existem todos os outros. No Minho, há arrozes-doces cremosos, cozidos em leite ou em água. Em Trás-os-Montes, há-os simples e festivos. Na Beira Alta vamos encontrar arrozes-doces que variam nas proporções de arroz e açúcar. Um caso particular é o Arroz-Doce de Cesto, da Vila de Rua, freguesia de Moimenta da Beira, que depois de confeccionado e ligeiramente arrefecido é disposto sob um cesto de verga forrado com uma toalha de linho. A receita tem uma curiosidade técnica, pois é uma das poucas receitas em que se dá ênfase à lavagem do arroz. A receita consiste numa pré-cozedura do arroz em água à qual se junta o leite. Por fim, misturam-se as gemas previamente branqueadas. Ora, este procedimento confere uma textura muito cremosa ao arroz-doce.

Na Beira Litoral encontramos o Arroz-Doce de Mata Mourisca, de Vila Cã, aromatizado com baunilha em pó, e na Estremadura o Arroz-Doce saloio, cuja quantidade de açúcar é ligeiramente inferior à de arroz, mas sempre finalizado com gemas de ovos. No Alentejo encontramos um arroz-doce que tem a particularidade de ser confeccionado sem gemas de ovos, onde se junta banha de porco, uma matéria-prima típica daquela região.

Apesar de haver um número limitado de receitas de arrozes-doces provenientes de conventos estes não podem ser considerados doces conventuais. O que ressalva neste tipo de receitas é a proporção de açúcar; no mínimo, a quantidade de açúcar é a mesma que de arroz. Deste conjunto destacamos o Arroz-Doce do Convento, receita proveniente do mosteiro de Arouca. É a única receita conventual do País que não utiliza gemas de ovos, caso raro! E é tão exótica que faz uso da água de flor-de-laranjeira!

O Arroz-Doce do Convento de Santa Clara de Guimarães é cozido em água, ao qual se junta posteriormente o leite, gemas de ovos e casca de limão; um arroz-doce de feitura clássica, diríamos nós. Já o Arroz-Doce do Convento de S. Domingos de Elvas é cozido diretamente em leite, e onde se junta gemas de ovos e casca de limão. Na receita do convento de São João de Ponta Delgada, ilha de São Miguel, Açores, coze-se o arroz em água e junta-se gemas de ovos e casca de laranja.

Os maravilhosos enfeites

O arroz-doce em Portugal apresenta um conjunto de desenhos feitos com canela em pó, ‘canela’ esta que, na verdade é Cássia-da-Batávia, de seu nome científico Cinnamomum burmannii, ao invés da verdadeira canela, de seu nome Canela-de-Ceilão, isto é, Cinnamomum zeylanicum.

Com ajuda do polegar e do indicador faz-se desenhos alusivos ao rito do casamento, nomeadamente, corações, as iniciais dos noivos, votos de felicidades, ou intrincadas geometrias que lembram os motivos da calçada portuguesa, como são os losangos ou os conjuntos florais, muito possivelmente resquícios que falam diretamente com a cultura mourisca.

Na tradição portuguesa enfeitar sempre foi uma tarefa muito importante, cabendo à melhor escritora/desenhadora da aldeia assinar as iniciais dos noivos ou desenhar outros motivos.

É importante salientar a importância que estes desenhos desempenharam nas comunidades. De referir o seu carácter lúdico e pedagógico entre crianças e mulheres, especialmente as iletradas. Talvez por isso, o arroz-doce representa um pequeno Portugal educador, através da representatividade dos A´s, B´s e C´s desenhados na superfície plana dos arrozes-doces, tal como uma tela, um quadro, um espaço passível de ser desafiado com desenhos, letras, pequenos rabiscos, números, traços, linhas, formas.

Arroz-doce com ciência

A composição química média do arroz branco polido ou sem farelo é a seguinte: 12,3 g de água; 70-77 g de hidratos de carbono; 7,6 de proteínas; 1,7 g de lípidos; 0,2 g de fibras e 0,5 g de sais minerais. Ou seja, o grão de arroz é composto essencialmente por hidratos de carbono. Destes, o principal é o amido, um polissacárido bastante comum no reino vegetal, constituindo a reserva de energia das plantas, especialmente em raízes, bolbos, tubérculos e sementes.

O grão de amido é constituído por polímeros de glucose: a amilose e a amilopectina. Quando se cozinham alimentos que contêm amido, o objetivo principal é torná-los digeríveis. Os grânulos de amido não são solúveis em água fria, mas, quando aquecidos na presença de água sofrem grandes transformações.

A energia térmica introduzida no sistema enfraquece as ligações químicas entre as moléculas de amilose e de amilopectina, verificando-se a entrada de água no interior dos grânulos.

Se se manter o aquecimento verifica-se o aumento das dimensões dos grânulos, sendo que estes incham devido à entrada de maior quantidade de água, acabando por se ligar às suas moléculas. A este fenómeno dá-se o nome de gelatinização do amido. Daqui resulta um aumento de viscosidade, dado que parte da água fica retida nos grânulos, e estes, cada vez maiores, dificultam o movimento da água.

Quando o gel de amido é finalmente retirado da fonte de calor e deixado arrefecer ocorre um realinhamento dos polímeros de glucose e, especialmente da amilose, observando-se o aumento da rigidez do preparado. A este fenómeno dá-se o nome de retrogradação do amido, sendo o principal responsável pelo aumento da consistência final. No caso do arroz, este vai ficando mais solto e seco à medida que vai arrefecendo. A retrogradação é tanto maior, quanto maior for a percentagem de amilose no amido. E isto porque, como as amiloses são moléculas lineares, mais facilmente se ligam umas às outras, dando origem a uma espécie de re-cristalinização. Como os tipos de arrozes menos compridos e menos translúcidos do tipo Japonica têm um menor teor de amilose, resulta que, depois de cozidos os grãos ficam pastosos e colantes, sendo este o arroz mais adequado à elaboração de um arroz-doce suave e cremoso.

Análise da receita

Começa-se por levar a água ao lume com sal e casca de limão. A casca de limão contém óleos essenciais, compostos da família dos terpenos que vão aromatizar o arroz-doce. Depois da água entrar em ebulição junta-se o arroz. Deixa-se cozer o arroz em lume brando, mexendo de vez em quando.

O calor é transferido para os grãos de arroz através do movimento de convecção das moléculas de água. Enquanto houver água não se ultrapassa os 100ºC. Mas se a água livre se esgotar, o calor passará a ser transferido por condução, diretamente do fundo do tacho para os grãos de arroz, o que poderá esturrar o grão.

O leite deve ser aquecido para que, quando for adicionado não atrase o processo de cozimento do arroz. Quando a água do arroz tiver evaporado, adiciona-se o leite quente, aos poucos, continuando a mexer regularmente. O arroz deverá cozer em lume muito brando, para evitar a coagulação das proteínas do soro do leite, que são sensíveis ao calor.

Quando o arroz estiver cozido, mistura-se, já fora do lume, aos poucos, as gemas com o açúcar. Mas, neste caso, pode-se perguntar por que motivo não se junta o açúcar logo no início. Primeiro, porque o açúcar é muito amigo da água (diz-se hidrofílico), e como tal, compete. Em segundo lugar porque a pressão osmótica que se cria dificulta a entrada de água para o interior dos grãos de arroz.

E, podemos ainda perguntar qual a função das gemas. Neste caso, as gemas irão funcionar como espessante, contribuindo para dar a consistência de gel ao arroz-doce. As proteínas constituintes da gema (cerca de 17%) têm a forma de novelos, ou seja, são proteínas globulares e, quando sujeitas ao calor, desnaturam, estabelecendo ligações entre si e formando uma rede tridimensional que retém no seu seio uma boa parte do líquido presente, dando origem àquilo que se chama um gel. É então que se leva novamente ao lume só para cozer as gemas, mexendo sempre com uma colher. Mas atenção! Esta rede formada pelas proteínas das gemas é extremamente forte, o que pode suscitar a rejeição do líquido. Neste caso diz-se que ocorreu a sua coagulação e observa-se a formação de coágulos ou grumos.

Para finalizar, polvilha-se com canela o nosso arroz-doce, isto porque a canela para além de conferir um sabor excecional possui propriedades antibacterianas e antifúngicas, o que nos dá muito jeito!

Como vimos o arroz-doce é um ícone de Portugal. Talvez seja este o doce que melhor condigna o povo português. Ele faz parte dum sistema simbólico intimamente ligado à casa sendo parte integrante do doméstico. É um doce que fala alto! E, a pergunta que se coloca é: até quando?

Bibliografia

José Labaredas, 1999, Coruche à mesa e outros manjares, Coleção coração, cabeça e estômago/6, Assírio & Alvim.
Maria de Lourdes Modesto, 1981, Cozinha Tradicional Portuguesa, Editora Verbo.
Alfredo Saramago, 2003, Cozinha da Beira Litoral, Assírio & Alvim.