Na Grécia arcaica, o poeta (aedo), o adivinho e o rei justiceiro tinham o privilégio em comum de dispensadores da verdade pelo simples fato de possuirem qualidades que os distinguiam. É o que nos relata Marcel Detienne em seu livro Mestres da Verdade na Grécia Arcaica:

«O poeta, o vidente e o rei compartilham de um mesmo tipo de discurso. Graças ao poder religioso da Memória, Mnemosyne, o poeta e o adivinho têm acesso direto ao além, enxergam o invisível, enunciam ‘o que foi, o que é, o que será’. Dotado desse saber inspirado, o poeta celebra, com sua palavra cantada, os feitos e as ações humanas, que assim, entram no esplendor e na luz e recebem força vital e plenitude do ser. De modo homólogo, o discurso do rei, baseado em procedimentos ordálicos, possui uma virtude oracular; realiza a justiça; instaura a ordem do direito sem prova nem inquérito».

Interessante notar que os personagens escolhidos como dispensadores da verdade podem ser resumidos em características como: sensibilidade, para o poeta (sensibilidade é a percepção do dado relacional direto sem entraves para utilização receptiva dos mesmos); ampliação do percebido segundo padrões rituais e xamânicos, para o adivinho (incorporação dos dados e vivências às malhas estabelecidas para extrapolação do percebido) e *distribuição, a repartição do percebido segundo critérios de direito, acerto e propriedade a fim de contemplar com justiça seus súditos, para o rei.

O que é verdade e o que é verdadeiro é preocupação constante desde a Grécia arcaica e substituir verdade por realidade, objetividade e a isso contrapor ilusão, delírio, subjetividade é um processo que observamos ao longo dos séculos e dos milênios. Os critérios de afirmação, de distinção entre o que é vivo e o que é denso, o querer saber se a pedra que ocupa um lugar no espaço, respira, é uma pergunta que nos atinge quando crianças e que continua dominando os povos Inuit, por exemplo. Frequência, ocorrência, transformam o banal em raro. Pedras nas geleiras esquimós, flocos no deserto são achados fantasmagóricos. Xamãs são chamados a explicá-los. Algumas tribos nômades mantêm essas raridades transformadas em amuletos, em referências indicadoras de eventos raros.

Verdadeiro é o que é lembrado, capturado, é o que não é esquecido. Desde os gregos a oposição entre memória e esquecimento garantiam a polaridade explicadora dos fenômenos. Passar pelo rio Léthe é esquecer tudo que foi vivido, é nascer em branco para outra vida, é também esquecer verdades conhecidas; daí podemos entender a importância do adivinho como dispensador de verdade, ele faz a passagem, vai e volta, não fica do outro lado, não esquece, traz informação, ele tem as ligações, ele vai além do dado, ele conhece a verdade e todo o seu processo. Esquecer é desconectar-se e descontextualizar-se. Essa perda do processo indica as fragmentações responsáveis pela não continuidade causadora da ideia de que tudo começa aqui, neste momento, sem perceber que as interseções traduzem processos que cobram vastas explicações, paisagens que se desdobram e revelam a verdade. Não foi à toa que Heidegger disse que verdade - alétheia - é desvelamento.

O rei justiceiro, que detinha os códigos e as leis podia abranger o dado - o que ocorre enquanto processo - e ainda, ao apreender essa sequência por meio de narrativas ou histórias explicativas cheias de verdade, ele estabelecia os critérios da justiça.

O poeta (aedo), o adivinho e o rei, ou seja, a descoberta (insight), a crença e a constatação são intrínsecas ao que é verdadeiro. Essa densidade relacional configura inúmeras variáveis, explicitando, assim, verdades e mentiras. É interessante salientar que verdade e engano, verdade e mentira, sempre andam juntas no pensamento grego arcaico, pois é na estrutura, na ordem do discurso, na fala, na linguagem que as vivências e regras são comunicadas, expressas ou escondidas. Quase que os gregos diziam que o engano mora na verdade quando afirmavam que os deuses conhecem a “verdade” mas também sabem enganar com aparências e palavras. Aparências são armadilhas montadas para os homens. As palavras dos deuses são sempre enigmáticas, ocultam tanto quanto revelam: o oráculo “mostra-se através de um véu, assim como a jovem recém casada”, como explica Detienne, e continua:

«à ambiguidade do modo divino corresponde a dualidade do humano; há homens que reconhecem o aspecto dos deuses sob as aparências mais desconcertantes, que sabem ouvir o sentido oculto das palavras, e também há todos os outros que se deixam levar pelo disfarce, que caem na cilada do enigma».

Em outras palavras, a memória engana, distorções se impõem, a demagogia, o “dividir para governar”, a manipulação de fatos, dados, mentes e leis são constantes. Perde-se poetas, adivinhos e reis justiceiros, desaparecem seus guardiões e a verdade é uma bolha de sabão que desliza sobre nós e que quando a tentamos deter, desaparece.

Ser inteiro, ser poeta, adivinho e rei justo é vivenciado por meio da autonomia; é o que estabelece verdade, o que exila a divisão e permite descobrir, acreditar e determinar o que fazer consigo mesmo e com os outros, neste estar aí com o outro, assim, diante de si e do outro. É verdade, é poesia, é mágico, é lei, é consistência.