Era uma vez a Maria. A Maria ia sempre no autocarro das 7h30, mais atraso, menos atraso. Sentava-se, como sempre, ao lado direito, perto da porta de saída. Maria era uma mulher “simples”, de raízes humildes, cumpridora de horários e regras, como lhe tinham ensinado, e que, assim, sempre soube viver. Mas algo manchou a constância das coisas.

Naquele dia, não folheou a revista como sempre fazia, em vez disso resolveu olhar as pessoas ao seu redor e desejou uma daquelas vidas, só para experimentar. Uma vida de férias da sua realidade. Sim, isso mesmo, uma vida de férias. Um refúgio. Um corpo e uma alma em tudo diferentes dos seus.

Às vezes era difícil habitar-se. Em si, erguiam-se recantos de encanto, mas também ruas sinuosas e perturbadoras, onde estilhaços de vidro feriam como facas.

Apeteceu-lhe muitas vezes desmontar-se e montar-se novamente, como um cubo mágico. Ou, atirar-se ao chão para que se partisse e se desfizesse em mil pedaços. O importante era que não permanecesse igual, estática como sempre se tinha sentido.

Deu-lhe vontade de tanto, tantas vezes, e, no entanto, permaneceu ali, sentada naquele lugar no autocarro. O autocarro de sempre... O que a levava aos mesmos lugares, às mesmas pessoas, às mesmas conversas, ao mesmo mundo. A uma rotina obsessiva-compulsiva, que apenas sossega com a repetição exaustiva que sempre levava a melhor.

Quem a observava, ali, sentada, quieta, em aparente paz, não imaginava o desassossego que sentia. Maria sentia muito, talvez demais para o conformismo que era suposto sentir para se poder viver sem grandes ambições. Ambições não eram para pessoas como ela, diziam-lhe.

Maria foi-se, então, resignando, à secura dos tempos, ao menosprezo da sua própria alma. Mas, naquele dia, não sabe-se bem porquê, não.

Maria encheu-se de coragem, ou de raiva, ou outra emoção mobilizadora qualquer e quebrou o ciclo. Saiu antes do destino...

Esta Maria não é real. É uma história inventada. Muito embora nada disto tenha acontecido, existem várias Marias, e como tal, o mais verdadeiro será assumir que esta história é baseada em factos reais.

Marias há muitas. Seremos quase todos nós, acreditamos que a sorte chegará, se tiver de chegar. E, no entretanto, as Marias andam ao sabor de ventos aleatórios como dançarinas à deriva... Esta Maria era coerente e tinha muito medo dos períodos de crise.

Porém, a Maria percebeu que quando não se foge do Adamastor que empurra o nosso barco para o mesmo lugar de sempre, corremos o risco de nos mantermos num lugar apático e deserto de criatividade e estímulo, sem grandes sofrimentos mas também sem grandes alegrias. Esta Maria vivia presa na sua gaiola, sem adamastores. Talvez o lugar mais inseguro para se viver.

A Maria manteve-se imóvel e deixou-se empurrar por ventos aleatórios, e, com isso, estava cada vez mais perto de lugar nenhum, porque qualquer lugar é vazio, se não houver uma intenção. Quero acreditar que a Maria que saiu antes do seu destino se libertou da gaiola e se resgatou a ela própria desse mar de aparência calma, inundado de desespero silencioso.