O país vivia um período atribulado: o Estado intensificava os impostos e não perdoava nas suas cobranças; o empobrecimento da nação e o seu desgoverno faziam escalar a criminalidade. O perigo espreitava em qualquer esquina, fosse dia ou fosse noite, qualquer hora era propícia para a bandidagem e não havia quem andasse seguro nas ruas; eram os mais incautos, os primeiros a ser despojados dos bens. Que o diga Daniel: quando se dirigia para casa depois de um dia fatigante, foi abordado por um vulto, saído dos arbustos, em plena tarde, que o travou com o mais eloquente dos impropérios.

— Mão ao alto, soez bonifrate!

Daniel ficou confuso, não percebendo aquela abordagem nem aquele insulto, mas em choque nada fez senão olhar com estranheza. Foi quando o bandido, sem tirar a mão do bolso do casaco, apontou algo que dizia ser uma arma de fogo, assegurando que não tinha medo de a usar. Rispidamente repetiu a ordem.

— És surdo! Vá, dá-me as tuas coisas. – Antevendo que a ação demoraria a desenrolar-se, adiantou. – Carteira! Vá, vá, vá!

— Mas eu não tenho nada! – Lamentou a vítima amedrontada, obedecendo às ordens.

Examinou-lhe os bolsos, mas não tinha nada. Remexeu-lhe também a carteira de um couro sintético e barato que desbotava nos cantos, mas também não tinha nem um cêntimo. Não tinha mesmo nada! Azar dos azares: o multibanco mais próximo ainda era um longo caminho a pé, o que levantaria suspeitas e por isso devolveu-lhe a carteira.

Nada satisfeito, o malfeitor tirou-lhe o telemóvel. Não fez caso da marca nem do modelo, pois o que sobressaia mais era a música que transmitia.

— 9.ª sinfonia.... Ludwig van Beethoven!... Fantástica obra.

Começou a cantar uma parcela do coro num alemão sem qualquer erro, seguindo a mesma entoação e melodia que todo o aficionado conhecia.

Freude, schöner Götterfunken,
Tochter aus Elysium,
wir betreten feuertrunken,
Himmlische, dein Heiligtum!

Deine Zauber binden wieder,
was die Mode streng geteilt:
alle Menschen werden Brüder,
wo dein sanfter Flügel weilt.

Deine Zauber binden wieder,
was die Mode streng geteilt:
alle Menschen werden Brüder,
wo dein sanfter Flügel weilt.

— Maravilhoso! Até arrepia, não é? – perguntou o criminoso, enquanto a sua vítima continuava perplexa e calada, gerindo a situação para que não escalasse ainda mais.

Com o telemóvel na mão, o ladrão percorria a playlist de músicas.

— Outro grande compositor: Amadeus Mozart. Gosto particularmente do seu rival: Antonio Salieri. Foi injustamente associado à morte de Mozart pelas peças de teatro de Alexander Pushkin e de Peter Shaffer, sendo esta última adaptada para o cinema, sob direção de Milos Forman, com o título Amadeus. Retratam a inveja que Salieri tinha do génio do seu colega; pura ficção! Creio até, na minha opinião, que se tratava do inverso, sendo Mozart a invejar o estatuto de Salieri, claro está: uma inveja saudável.

Daniel olhava admirado, ouvindo a dissertação.

— Apesar de adversários, nutriam grande respeito e cordialidade. Chegaram a compor, em conjunto, uma cantata para voz e piano: Per la ricuperata salute di Ofelia, que celebrava o regresso aos palcos da cantora Nancy Storace. Julgou-se perdida até a 2016, quando foi encontrada nos arquivos do Museu da Música na República Checa. Essa história do envenenamento é pura ficção – ressalvava o bandido.

Salieri foi tutor de inúmeros jovens bem-sucedidos: Beethoven, Franz Liszt, Schubert, inclusive, ensinou também o filho mais novo de Mozart: Franz Xaver. Postumamente têm ganho muitos seguidores que elevam a sua grandeza.

— Aconselho-te vivamente a ouvires La fiera di Venezia; La grotta di Trofonio; Axur, re d'Ormus; Prima la musica e poi le parole, mais as cantatas, mais as músicas sacras, o Réquiem, oh! podia estar aqui o dia todo. - Lembrando-se que estava a cometer um crime, prosseguiu. Guardou o telemóvel no bolso e ordenou que lhe fossem passados os livros.

— Não têm valor! – suplicou a vítima, entregando-lhe um livro pequeno e outro bem volumoso.

— Não têm valor! – troçou o malandro. – Onde é que, Terna é a Noite não tem valor. Já o li!… mais do que uma vez. Tenho a coleção toda de Fitzgerald, que tu dizes não ter valor. Acho, que para se apreciar devidamente as suas obras devemo-nos debruçar sobre a sua vida conjugal; o amor, o ódio, a harmonia e o conflito da sua relação amorosa com Zelda Sayre. Autores como: Fitzgerald, Gertrude Stein, Hemingway, T. S. Eliot, Ezra Pound, são só alguns exemplos que representam a geração perdida, uma época culturalmente profícua, não só na literatura.

Devolveu-lhe o livro, analisando o outro de seguida.

— Temos aqui um livro grande, Physics for Scientists and Engineers! Outro que não tem valor?

— Não me leves esse, por favor.

— Calado! – ordenou o desconhecido, voltando a por a mão no bolso como se fosse empunhar a arma. Depois folheou o livro; marcadores sinalizavam algumas páginas no capítulo da Cinemática onde estavam escritas várias anotações e alguns pontos de interrogação; a palavra «dúvida» também figurava no final dos cálculos do movimento em duas dimensões. – Qual é a tua dúvida aqui?

Daniel aproximou-se, mas logo foi advertido que se aproximasse devagar.

— Isto não é difícil, arranja-me um lápis.

Explicou-lhe então, de raiz, como usar as fórmulas da velocidade e da aceleração nas coordenadas do plano cartesiano, o valor da gravidade, os cálculos do atrito, a trigonometria para o valor da inclinação e no final rematou com a soma dos vetores escrevendo-lhe a fórmula.

— Fantástico! – anunciou Daniel. – Faz tudo sentido! Se pensarmos no lançamento de um projétil… – reformulou o que tinha aprendido para confirmar que estava certo.

— É isso mesmo! – felicitou o patife, oferecendo-se de seguida: – Posso te dar explicações se quiseres!

— Isso era ótimo!

— Não levo caro. Anota aí o meu número.

— Mas… mas não tenho telemóvel.

O gatuno lembrou-se do equipamento que tinha furtado e que estava no bolso do casaco. Com uma careta de desânimo, devolveu-o.

— Ao menos tens uma moedinha para uma cerveja?

— Não tenho nada.

— Pois! é mesmo um daqueles dias.

Tal como aparecera, surgido da penumbra, pela sombra também se esvaneceu; saltou para trás dos arbustos sem ninguém lhe pôr a vista em cima. E não havia quem pusesse termo a esta bandidagem.