Precisamos refazer o pensamento social do Brasil. Há de se considerar que deveremos reatualizar nossas dimensões de protesto contra algo que incomoda e que anda abafado e escondido. Dizer de forma poética que não é bem assim que se faz um país, pode ser fazendo música, não acham? Na década de sessenta e setenta foram feitas sábias reivindicações através dos festivais de musicas autorais que transmitiam a insatisfação mediante as formas de governo e o sistema vigente. Canções de protesto são formas inteligentes de exibir o pensamento social de uma determinada geração. São imersões e inserções que constroem e sinalizam o pensamento dos jovens que trazem o passado com sentido de futuro ao presente. Os jovens sonham com o seu futuro e o futuro do planeta a partir de sua visão de mundo construída na infância. Eles escolhem seu caminho mesmo ainda que não tenham direcionamento, mas, por alguma afinidade sabem do que gostam.

Eles encaram o mundo com mais cor, mesmo que ainda apareçam contratempos entre o mundo da tecnologia com o mundo da política. Devemos salientar que o mercado produz para o próprio mercado e não para as pessoas. Assim, os jovens ainda são a esperança de um mundo mais solidário. Recentemente a volkswagem lançou o comercial de seus setenta anos mostrando a nova Kombi elétrica e na trilha sonora, utilizou a música de Belchior – Como os nossos pais – cantada por Elis Regina e sua filha Maria Rita reproduzindo uma sensação de nostalgia e saudade de um tempo de protesto e utopia por dias melhores. Então, o que isso significa? Que as canções de protestos dos festivais de música popular brasileira ainda são e serão, a saída para identificarmos o pensamento social do Brasil. Porque “o novo sempre vem”, como dizia o cantor Belchior. E, entre perfumes e carabinas, o novo vai chegando sem avisar. Digamos que seja imprescindível compreender as gerações pelas músicas.

O contexto musical vai ditando moda entre protestos e queixas, o cenário colorido da juventude reinventa o significado do sentido de futuro na construção do pensamento social. As vivências, as convivialidades, os filmes, os livros, os brinquedos de uma determinada época ressoam nas ações e comportamentos dos jovens. São eles que sinalizam o caminho, provocando os paradigmas vigentes. Para tanto, a Música Popular Brasileira, é sem dúvida o pensamento social de uma época que ressoa no cotidiano das pessoas. A MPB, que significa: “A sigla MPB representa um movimento dentro da música brasileira, e sua trajetória de sucesso se inicia num momento em que uma nova ditadura se instaurava a partir do golpe de 31 de março de 1964 e em que recrudescia o conflito militar e ideológico em torno da Guerra do Vietnã.

[...] Várias foram as definições para a MPB: música de protesto, música dos festivais, música politicamente engajada, Moderna Música Popular Brasileira, ou MMPB [...] Em termos geográficos, a MPB situa-se no eixo Rio - São Paulo, polo de urbanização e modernização do país. Era um movimento musical urbano com um público em sua maioria de classe média e universitário. [...]

(Vilarino, 1999, p.18-19)1

Como é sabido, o conceito de MPB ainda não é unanime, para Neves, “no final dos anos 50 e ao longo dos anos 60, época em que a canção popular tornou-se o lócus por excelência dos debates estéticos e culturais, suplantando o teatro, o cinema e as artes plásticas, que constituíam, até então, o foro privilegiado dessas discussões." (Neves, 2010, p.19) Então, a música popular brasileira será sempre uma maneira de evidenciar o passado com sentido de futuro, no presente, mediante conflitos entre o poder, a ética, a moral, existentes nas relações sociais.

Lembro-me, certa vez, conversando com o cantor e compositor do grupo Vates e Viola2 de Pernambuco sobre como se faz para compor uma canção, ele calmante respondeu: - passo o dia dedilhando. Pensei rapidamente na minha filha, Isadora Lubambo, que aprendeu violão sozinha, também com ajuda da internet aos onze anos de idade. Ela passava o dia dedilhando! Varias vezes fiquei aborrecida, mas, ela estava costurando o seu imaginário para compor suas músicas. Um dia, lá pelas voltas do anos 2002 , minha filha me perguntou sobre o que ouvia na minha juventude dos anos 80. Contei a minha história, depois de alguns minutos ela compôs uma música sobre minha a vida.

Fui influenciada pela série que passou na TV globo, intitulada 'Malu Mulher'. Eu queria ser socióloga e divorciada. Pois, minha mãe era submissa ao meu pai, e todos os dias pedia o dinheiro do pão. Achava aquela cena deprimente. Ele, o meu pai, fazia questão de dizer que era o chefe da casa. Eu ouvia a banda Legião Urbana, Rita Lee, Raul Seixas, Chico Buarque, Caetano Veloso, Roberto Carlos em Ritmo de aventura, Bechior, Zé Ramalho, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Titãs entre outros discos de vinis da coleção da minha mãe e fitas cassete. E foi sob esta influência que minha filha cresceu, também ouvia, Selma do Coco, Vinícius de Moraes, Antulio Madureira, maracatu rural e de baque solto, Chico Science, Adriana Calcanhotto entre outros cantores da MPB.

Minhas filhas tinham cada ideia! Elas foram parar numa matéria de televisão porque criaram uma biblioteca andante. As sabidas pegavam meus livros, colocavam no carrinho de compras do prédio e alugava aos moradores de andar em andar. Pensem! Perdi alguns livros, mas, entendo que foi por uma causa maior. Também, eu tinha costume de todo final de ano, pedir para que minhas filhas fizessem uma redação sobre o que gostaria que acontecesse no ano seguinte. E aos dez anos, Isadora Lubambo, escreveu nas linhas do caderno: Quero ser cantora. Quero ser cantora. Quero ser cantora... Do começo ao fim, sua redação só tinha esta frase. Lubambo, como é conhecida artisticamente, canta em francês, inglês e espanhol. Sua versão musical eu digo que é “Robertiana”, uma mistura de Roberto Carlos com Caetano Veloso. Um dia, na Universidade, ela compôs uma música para finalizar um trabalho da disciplina sobre seca e meio ambiente. A professora chorou com a canção. Musicar uma teoria, não parece ser para qualquer um, não é verdade?

Raios
Ultra combustão
Produção de carbono em massa
E um grande buraco na camada de ozônio
Me exponho ao sol
Morro um pouco a cada dia
E vivo muito mais que um pouco
Eu participo esperando a minha vez
Vivo
Sob a condição
De ver tudo pelas telas
Meu sofá guarda marcas profundas desse tempo ruim
Roo as unhas
Para afiar minhas belas garras

E sair altiva e louca pela rua
Esperando a minha vez
Roo as unhas
Para aliviar
O peso insuportável de ser merda divina
Quero sair desse baixo astral
Que é viver eternamente o quase
A margem
Eu quero entrar de cabeça no fundo
E entender que ser a natureza é mergulhar no mundo

(Isadora Lubambo - Esperando a minha vez)

Pois bem, o universo autoral perpassa por um conjunto de vivências e convivências. Sabemos que as Universidades, que os cursos de humanas, podem realizar projeto de extensão com a comunidade realizando festivais de musicas autorais com os jovens. Na comunidade existe uma enorme quantidade de jovens compositores que passam o dia dedilhando. Precisam apenas de uma chance. Todo ser humana necessita de uma chance. Projetos que revelam novos talentos sejam na comunidade ou na Universidade são importantes para sabermos como estão pensando os jovens, principalmente as jovens compositoras da atualidade. São jovens que não estão concorrendo no mercado pop, são jovens das culturas populares. Estão realizando trabalhos autorais que ressoam no cotidiano brasileiro.

“Essas são questões complexas, pois abarcam fatos e concepções igualmente complexos. A música reconhecida, em geral, como ‘popular’ é enormemente variada, de forma que seria possível ou talvez preferível abordar o conceito no plural, como 'músicas populares'3. São assuntos complicados, mas, o que estamos realizando é um singelo manifesto para os jovens e as jovens que compõem musicas autorais e que possam fazer parte de festivais. Também já convido os programas como Cultura Livre a atrair essas mulheres para expor seu provocante trabalho. O podcast Venus bem que poderia tirar um tempinho para entrevistar as jovens que fazem música autoral. Convido todas as mães, tias, avós, bisavós para se juntarem a este manifesto. Mesmo com Festival da Canção Nacional, precisamos produzir festivais nas comunidades, e nos Estados do Brasil. Muitas vezes esses cantores são tímidos e precisam de mais experiências.

Lubambo fez parte do projeto Sonoras, que evidenciam as compositoras da América Latina. Este manifesto, também é para que encontros entre jovens sejam enaltecidos. A profissão de cantora é exercida pela sinergia com a plateia. As rádios também deveria realizar entrevistas com essas jovens. Deveria existir um espaço autoral nas Rádios. Em alguns interiores, ou em alguns bares, isoladamente fazem projetos para lançar o dia da musica autoral. O bom disso é que a turma se encontra para torcer e conversar. As cidades educadoras são produtoras de universo autoral.

O jornalista e escritor Ruy Castro aponta que a música popular brasileira é ponto de memória. Seus livros – Chega de Saudade, A noite do meu bem, entre outros, colaboraram com o percurso glamouroso da música no Brasil. O jornalista, escritor, roteirista e produtor cultural, Nelson Motta, também ajudou a realizar a história da memória musical no Brasil. Temos também o dia da Música Popular Brasileira que foi lançado no ano de 2012 pelo decreto nº 12.624, comemorado no dia 17 de outubro, em homenagem ao aniversário da extraordinária instrumentista, maestrina e compositora - Chiquinha Gonzaga. Ela foi a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Será que os jovens conhecem esta data? Aproveitando o ensejo, convido os patrocinadores interessados em lançar um festival para as jovens compositoras nesta referida data. No cenário pernambucano as meninas Marília Parente, Nívea Maria, Mayara Pera fazem musicas autorais com pretensão de uma chance no espaço do mercado. Diante deste pequeno manifesto, “eu quero a leveza das canções suaves”, que estão guardadas no pensamento dos jovens brasileiros. Então, você daria uma chance?

Eu quero saber a hora certa de começar e de acabar
Eu quero poder seguir em frente e que a gente possa sempre se falar
Eu quero a leveza das canções suaves
Desfrutar paixões saudáveis
Eu provaria o sabor do eterno desejo de liberdade
Mas sem que causasse nenhum dano ao nosso amor
Eu como a maçã mordida
Mas quero ver sarada a ferida
E que se abram os caminhos pra essa longa estrada virgem
Horizonte descoberto
A estrada é um deserto recomeço
É o novo pelo avesso
É de longe, o mais perto

(Música e letra de Isadora Lubambo – Eu quero a leveza das canções suaves)

Abaixo deixo uma apresentação de Isadora Lubambo da canção Bodega Sem Freguês, ao vivo no Terra Cafe Bar em Recife, Pernambuco.

Referências

1 Sobre flores e canhões:canções de protesto em festivais de música popular, junho de 2014.
2 Vates e Violas estreia nova turnê com show no Festival de Inverno da Várzea.
3 Sobre flores e canhões:canções de protesto em festivais de música popular, junho de 2014.