Há uns quatro anos atrás, eu observava atentamente uma ninhada de quatro cachorrinhos de três meses, todos de um branco imaculado com intensas manchas escuras. Uma espécie de dálmatas rechonchudos. O canil não era lugar para aquelas bolinhas de afecto. Decidi trazer um, porque o orçamento jamais me permitiria trazer todos. Quando olhei de novo, vi que andavam todos entretidos com a comida, excepto uma das cadelas que, vendo o homem do canil entrar, veio ladrar-lhe para os pés, algo irritada.

Escusado será dizer, que foi exactamente essa que decidi trazer. Não me restavam quaisquer dúvidas. Fiquei ali mais uns segundos a observá-la. Ela cirandava por entre os irmãos, sempre rezingando alto com os seus latidos agudos e estridentes.

Uma cadela com muito a dizer. Foi essa mesmo que trouxe.

E uns anos se passaram.

Hoje, quando me recosto no sofá com um livro na mão, a Íris, de alguma maneira que desconheço, compreende que vou estar uns tempos distraído: aninha-se, enrolando o gentil focinho no próprio dorso branco manchado de castanho. É assim que se encontra neste momento, encostada às minhas canelas, e não há outra maneira de me fazer sentir mais em casa.

A Íris é uma rafeira de porte médio, dizem os veterinários que deve ter sangue de Epagneul Breton, cão bastante utilizado na caça, os seus antepassados eram usados na Idade Média para caçar falcões. Dou por mim a olhá-la como que estranhando um milagre: que numeroso conjunto de pequenos detalhes, coincidências e escolhas, quer humanas, quer caninas, levou a este improvável encontro?

E já que falamos em antepassados, é fácil percebermos que os cães jamais pareceram necessitar de uma palavra que os definisse até entre 15 mil a 40 mil anos atrás, que é a data em que os cientistas calculam que se deu o início da convivência das nossas espécies.

Desde esse momento, que, como é natural na linguagem, deve ter-se imposto a necessidade de definir estas entidades de maneira menos passível de confusões. Obviamente, tivemos que ser nós a fornecer palavras que os definissem.

A grande questão é: a palavra com que definimos algo, não diz mais sobre nós do que sobre esse algo?

E já agora, para dar tempo de reflexão e, em jeito de pausa, deixo este comentário secundário: o nome do autor do livro que acabei de pousar temporariamente é Simon Garfield. O livro é sobre a relação entre a humanidade e os cães.

Sim, leram bem, o escritor chama-se Garfield... Não deixa de ser sarcástico o facto de o único Garfield que eu conhecia anteriormente fosse o oposto de um amante de canídeos. Acho que no fundo, foi esta pequena piada construída em jeito de coincidência dolosa que me fez reflectir mais sobre este assunto dos nomes que damos ao nossos pets.

Mas prosseguindo: de acordo com o referido jornalista e autor Simon Garfield, possivelmente, a lista extensa mais antiga de nomes de cães a que temos acesso, deverá ser a do filósofo Xenofonte, nascido lá nos 431 anos antes de Cristo.

Esta listagem é interessante de analisar, no sentido em que os nomes que escolhemos para os animais acabam por espelhar a realidade que nos circunscreve. E que género de nomes encontramos nós nessa lista? Bem longe dos nossos Rex, Max, Íris, encontramos por exemplo Thymus (coragem), Lochos (emboscada), Phonax (ladrador), Phrura (guarda), Sperchon (velocidade), Breton (ruidoso).

Torna-se evidente que os nomes seriam mais voltados para o aspecto utilitário dos animais, ou para características que fossem intrínsecas aos mesmos.

A Íris, num momento soluçante, deu-me um valente safanão com a patinha traseira e fez-me deixar cair o livro do colo. O sofá já é pequeno para os dois.

Certamente, ela por lá correrá no sonho em que está enlevada. De alguma outra maneira, que de igual modo desconheço, as pernas já lhe dizem que é hora da rua.

Ao longo do tempo, o laço afectuoso entre as duas espécies deve ter-se estreitado bastante, porque os nomes utilitários deram lugar a nomes que reflectem, por exemplo, características pessoais do dono (sejam gostos culinários, culturais, etc...).

Os cães começaram, cada vez mais, a receber, inclusive, nomes que antes estavam circunscritos ao uso humano. Neste caso, não nos diz esta escolha que existe um desejo intrínseco, nos humanos, de que os animais sejam como nós?

O último cão que conheci com nome de humano protagonizou, até, um episódio caricato. A minha Íris, quando era ainda uma pequena bola de pelo branco, cruzou-se, por acaso, com um buldogue francês no parque e eu soltei-a para que os dois brincassem.

Em jeito de garotos travessos, os dois iam-se afastando mais rápido do que seria de supor, vendo-lhes as pernas tão curtas. Mal pude conter um riso alto quando o homem começou a chamar o cão.

— Ô, Messi!!

Uns bons segundos depois voltaram os dois de língua ao pendurão.

— O nome dele é Messi? Porquê?

O homem olhou-me meio incrédulo, meio divertido, como se eu tivesse feito uma pergunta tola, cuja resposta era, a seu ver, facilmente apreendida.

— Oii? Como assim? - a sobrancelha franziu-se-lhe por cima da cara que parecia divertida - Então... Claro que se chama Messi, você não viu que ele é pequenininho e corre muito?!

Comparativamente, o nome da minha cadela era a prova incontestável de que eu não era dono de um sentido de humor tão refinado como aquele senhor.

Escolhi um nome bonito, mas sério. Íris. Na altura em que a adoptei, tinha muitos em lista, mas poucos se ajustavam tão bem para aquela cadelinha que, antes de eu a adoptar, era denominada de boneca no Abrigo. (Bonecas, Bolachas, e nomes do género são comummente utilizados em abrigos animais, onde o triste número elevado de entradas assíduas não permite melhor meditação aquando do “baptismo” dos bichos.)

Íris tratava-se, na mitologia clássica, de uma espécie de deidade que era mensageira dos deuses do olimpo. Assim como o arco-íris, ela funcionava como um elo de ligação entre os céus e a terra. E que nome poderia ser mais acertado do que este?

Deitada no sofá comigo, já piscando vagarosamente os olhos e erguendo-se, abanando a cabeça para sacudir a preguiça, está a mensageira. A que me trouxe uma qualquer mensagem que procuro ainda desvendar. Talvez este texto seja como que um testamento dessa mensagem que ela me veio trazer.

Não consigo evitar parar o texto para olhar para ela e sorrir. Este segredo que nós partilhamos entre nós é uma união que começou por uma palavra que eu lhe ofereci e ela teve a gentileza de aceitar. A palavra, permeável como é, absorveu tudo o que vivi com ela, invariavelmente, ao pé de mim. E “Íris” jamais definirá outra coisa para mim.

— Vamos à rua? - ela levanta o focinho atento e inclina levemente a cabeça. As orelhas castanho-creme a distinguirem-se do corpo. Sorrio de novo.

A Íris olha-me com expectativa.

Íris será a palavra subtancial que mais definirá amizade.

— Vamos?

Ela abana longa cauda que carinhosamente chamo de “espanador” e solta os típicos latidinhos de empolgação.

— Já vi que vamos mesmo. Anda!

Ergo-me a custo (a minha preguiça é mais pesada de sacudir). Mas lá pego na trelazinha cor-de-rosa e relembro a frase de Roger Grenier: “um cão pode ser uma protecção contra os insultos da vida, uma defesa contra o mundo”.

Sabem uma coisa? Sinto, de uma maneira confortavelmente profunda, que ainda não sei que segredos dos deuses esta cadelinha veio para me contar... mas tenho um ou dois palpites.

Bons passeios!