Uma língua indígena não morre quando seu último falante morre, mas quando morre o penúltimo.

(Krenak)

“Todo povo tem histórias dos antepassados. Também nós, os munduruku”. Assim inicia o livro Histórias dos Antigos Munduruku - volume 1 (1977), embora o livro seja bilíngue (munduruku-português), nenhuma dessas histórias foi vivida e contada, em primeira instância, em língua portuguesa. A história dos antigos munduruku é a lógica de pensamento de nosso povo e expressa a maneira como o povo compreende o mundo a sua volta. Essa lógica de compreensão apenas pode ser explicada na língua munduruku. Qualquer processo de tradução é tentativa de aproximação da experiência do outro. Todo povo deveria ter o direito de falar e preservar a sua língua materna. Inclusive, assim afirma a Constituição brasileira de 88, em seu Artigo 231, mas a prática nos apresenta outros resultados.

Muitos estudos falam da importância da língua materna para os povos indígenas e durante minha formação e aproximação a teorias dos estudos da linguagem e da linguística fui entendendo os diferentes processos de sequestro das diferentes línguas indígenas faladas por aqui antes da colonização e fui modificando minhas atitudes e pensamentos linguísticos, principalmente em relação aos parentes que não falam mais suas línguas maternas e mitos sobre diferentes aspectos do ser indígenas foram modificados para mim. Para muitos, inclusive parentes e pesquisadores, saber falar a língua é pré-requisito para ser considerado “indígena de verdade”. Ocorre que ninguém “escolhe” deixar de falar ou esquecer sua língua, diferentes projetos de etnocídio foram implementados e nossa contemporaneidade é o resultado disso. Até mesmo línguas indígenas foram utilizadas como línguas francas na tentativa de apagamentos de muitas outras línguas indígenas faladas no Brasil antes da colonização.

Mesmo alguns povos indígenas, na contemporaneidade, mesmo falando uma língua indígena, não falam mais a língua materna de seu povo e diferentes foram os processos histórico-político-sociais que apresentam isso como consequência. Povos do mesmo grupo étnico, mas que hoje ocupam diferentes regiões do país como consequência dos descimentos e das tratativas de sobrevivência também possuem interferências linguísticas. Algumas geracionais e outras cosmogônicas, uma vez que suas relações com os ambientes geográficos que ocupam são distintas. Alguns povos decidiram não mais ensinar a língua aos seus mais jovem para que a nova geração não sofresse os preconceitos sofridos pelas gerações anteriores. Muitos povos foram proibidos de falar sua língua materna por imposição da educação escolar formal. Essas escritas que trago, embora sejam desenvolvidas por mim, poderiam ser a história de muitos outros povos indígenas do Brasil. É por isso, que reescrever nossa história e fortalecer nossa memória nativa é mais que importante. Precisamos revisitar nossas dores e exigir reparação histórica.

Quando escreve sobre a importância da língua materna na educação intercultural dos povos indígenas, o professor Gersem Baniwa afirma que a comunicação, a linguagem e o diálogo são por essência da ordem espiritual e transcendental, pois são os responsáveis por manter uma conexão entre seres e entre mundos. Não uma espiritualidade pós-judaica-cristã, mas uma espiritualidade da natureza. Para o professor, é por meio da linguagem que o homem se situa no mundo. Além disso, o processo de criação de uma língua (indígena) ocorre em pari passu com a construção do mundo, por isso, está em constante e permanente construção, manutenção, aperfeiçoamento, atualização e etc.

Nessa perspectiva e parafraseando Ailton Krenak, a preservação, manutenção e fortalecimento de uma língua indígena é uma das possíveis ideias para adiar o fim do mundo, pois como afirma Gersem Baniwa, “a perda de uma língua por um povo indígena afeta diretamente também a relação desse povo com a natureza e com o cosmo, resultando em quebra ou redução de conectividade entre os seres e, consequentemente, afetando o equilíbrio e a harmonia da vida no mundo”. Quando Krenak nos sugere fazer o caminho de volta, uma das possibilidades é o da retomada linguística. Muitas línguas indígenas mesmo que não falada mais, possuem registros escritos que precisam ser retomados pelos seus, mas para que isso aconteça precisamos difundir a importância das línguas indígenas.

Foi pensando em preservar, manter e fortalecer as línguas indígenas e suas diferentes relações com o cosmos que, em culminância ao Ano Internacional das Línguas Indígenas foi proclamado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, na Assembleia Geral das Nações Unidas em 2019, a Década Internacional das Línguas Indígenas – DILI. Os anos entre 2022 a 2032 serão destinados ao desenvolvimento de ações efetivas e contínuas em prol do reconhecimento, valorização e manutenção das línguas indígenas, compreensão essa iniciada pelos povos indígenas da Bolívia.

Entre outras, uma das ações desenvolvidas foi a criação de grupos de trabalhos (GTs). O principal e norteador deles é o GT Unesco que surge em resposta para a concretização da proposta da Resolução A/RES/74/135 que indica a elaboração de um Plano de Ação Global da década. Na composição do GT Unesco, GT América Latina e Caribe, existem três representantes indígenas da América Latina e Altaci Correa Rubim, do povo Kokama, professora doutora da Universidade de Brasília, é a representante indígena brasileira.

No Brasil temos o GT Nacional que, assim como todos os países da América Latina e do Caribe, conclama da Declaração de los Pinos: Nada pra nós, sem nós! Tentando superar as dificuldades enfrentadas na implementação da década, entre elas as dificuldades geográficas e transnacional, os GTs se comunicam via redes sociais. É a internet um dos campos de batalha na defesa da manutenção, preservação e fortalecimento das línguas indígenas no Brasil. Em 2021, de maneira autônoma, os povos indígenas se organizaram e construíram dois GTs: GT de Língua Indígenas e GT de Português Indígena. No dia 18 de agosto de 2021, aconteceu a live de lançamento da “Década Internacional das Línguas Indígenas no Brasil”, momento em que uma equipe executiva formada por estudantes e pesquisadores indígenas foi apresentada como representantes das cinco regiões do país. A partir de então, diferentes encontros regionais foram realizados para implementação do Plano de Ação da Década.

No dia 10 de setembro de 2021 foi realizado, na modalidade online, o I Encontro Regional Norte da Década Internacional das Línguas Indígenas. Concomitantemente, diferentes atividades aconteciam sendo promovidas por diferentes povos, até a chegada da Jornada de mobilização das Década que aconteceu nos dias 18 a 23 de abril de 2022, de maneira online pelo canal do YouTube da Década. Nos dias 22 a 25 de novembro de 2022, aconteceu de maneira presencial, o II Seminário Internacional Viva Língua Viva, na cidade de Belém-Pará. A atividade foi organizada pelo Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal do Pará e o Programa de Pós-graduação em Diversidade Sociocultural (PPGDS) do Museu Paraense Emílio Goeldi. Já nos dias 9 a 11 de agosto de 2023, aconteceu o I Encontro presencial do GT Nacional da Década das Línguas Indígenas na cidade de Manaus, no Amazonas. Com o tema “Políticas Linguísticas para o fortalecimento das Línguas Indígenas”, estudantes e pesquisadores indígenas e indigenistas estiveram reunidos para fortalecer e fazer acontecer a Década Internacional das Línguas Indígenas.

Enquanto isso, na Terra Indígena Kwatá-Laranjal, por exemplo, foram retomadas as atividades relativas ao Programa Ya’õ Etabeg (Língua viva) de revitalização da língua munduruku; a Associação dos índios Kokamas – Akim, realiza o campeonato da língua kokama e realiza transmissão por canal na plataforma YouTube como forma de fortalecer e divulgar a importância da língua de seu povo; no Parque das Tribos, primeiro bairro indígena da cidade Manaus, o Espaço Cultural Indígena Uka Umbuesara, mantém viva as línguas daqueles que moram no Parque através da Educação Escolar Indígenas; entre tantas outras ações que acorrem no território brasileiro na tentativa de preservar e resguardar as diferentes línguas indígenas. Mas mesmo com o empenho e o gás das mobilizações geradas pela Década Internacional das Línguas Indígenas, as perdas linguísticas ainda são desastrosas. Das estimadas 1.175 línguas faladas antes da colonização, apenas 274 línguas ainda são faladas no Brasil.

Durante os debates e diálogos realizados pelos diferentes seguimentos do movimento indígena existe um que vem nos chamando a atenção. Trata-se da questão do adormecimento das línguas indígenas. Essa lógica de pensamento nos leva a pensar sobre a relação entre as práticas culturais ativas dos povos indígenas e o fortalecimento de sua língua. A relação é direta e proporcional. Quanto mais ativa e radiante é a cultura vivida por determina comunidade ou grupo indígena, menos é o impacto sofrido pela língua materna quando entra em contato com outras línguas. A grande preocupação é que ter a cultura ativa não é a realidade da maioria das populações indígenas que estão a cada dia sendo ameaçadas pelas convulsões do capitalismo, principalmente pelas relações de compra e venda, afinal de conta as línguas indígenas não são commodities ou produto material a ser comercializado, em outras palavras, não importa ao grande capital preservá-las.

Por isso é fundamental criarmos políticas de preservação, manutenção e divulgação da importância das línguas indígenas. O Brasil precisa desenvolver uma política outra que consiga proteger os territórios para que os diferentes povos indígenas consigam manter ativas suas culturas e, como consequência, suas línguas e suas diferentes maneiras de interpretar o mundo. Somente assim, o legado de nossos ancestrais poderá ser perpetuado e as gerações futuras poderão escrever sobre e com suas línguas indígenas maternas. Viva a década internacional das línguas indígenas! Nada pra nós, sem nós!!