Sleam Nigger (doravante SN) é um rapper moçambicano, de ortónimo Giovane Xadreque Maunze. É autor de vários hits, como País do pandza, Cerveja, Pontas de lança, ATM, Eu sou daqui, Xuera, Maquinag, Bandido (objecto de análise neste artigo), entre outros. SN possui uma postura artística cómica e exótica. Aliás, o seu estilo e abordagem em “Bandido (de Moz)” e as peripécias nela poetizadas precipitaram o parto deste artigo.

SN aborda, nesta música lançada em 2022, numa linguagem que oscila entre simples, despudorada e pincelada por neologismos, calão e empréstimos, as peripécias da urbe e/ou subúrbio e zonas rurais de Moçambique: o quotidiano dos vendedores, a vertigem da população e a luta pela sobrevivência (…) Vale lembrar que, durante a produção deste artigo, não consegui ter acesso à letra da música, tendo-me recorrido à transcrição, para efeitos de interpretação.

Aspectos teórico-metodológicos

A representação, de acordo com Mora (1982), refere-se a diversos tipos de apreensão de objecto intencional, i.e., representações que vão desde a fantasia intelectual ou sensível à reprodução na consciência de percepções anteriores combinadas de vários modos, mostrando, desta forma, uma faceta polissémica.

Ora, para Reis e Lopes (2002), a representação pode ser abordada em termos dialécticos e não dicotómicos, o que significa que entre o representante e o representado existe uma relação de interdependência activa, de tal modo que o primeiro constitui uma entidade mediadora capaz de concretizar uma solução discursiva que, entretanto, continua ausente.

Esta abordagem conduz-nos à noção de pseudoreferencialidade que, de acordo com Silva (1984), se configura não por referencialidade imediata, mas mediata, pois que, embora haja uma relação de interdependência activa entre o representante e o representado, o discurso artístico afirma-se relativamente autónomo. Portanto, tanto as declarações que daqui advierem quanto as demais que se fizerem da música “Bandido (de Moz)”, que se depreendam consoante esta máxima de Silva (1984).

O social em “Bandido (de Moz)”, de SN

O sujeito poético, denotativamente, inicia a música em pauta situando o leitor/ouvinte geográfica e socialmente, denunciando a sua proveniência, quando diz:

(…) eu nasci nas ruas de MPT, gueto atrás do sol, subúrbios de Mikadjwine (SN, 2022).

Onde MPT constitui acrónimo de Maputo, e entendemos “gueto atrás do sol” como metáfora do costeiro bairro – Costa do Sol –, convidando o leitor, de antemão, a viajar num barco comparativo entre o representado (situações evocadas na música) e o representante (a própria música).

Posteriormente, para vincar a situação social destes lugares – denuncia a precariedade, o analfabetismo, quando diz:

(…) os cotas (pais) não bookaram (não estudaram), vim de uma família humilde, eu sou o quarto filho, ah!, é num total de quinze; cresci assim: casa super lotada, sem espaço suficiente, e eu dormia na sala (…)”.

Servindo-se de empréstimos e neologismos como cotas – que significa pais, e não bookaram – que significa analfabetos, esta estrofe remete o leitor/ouvinte à triste máxima de que o preto nada mais sabe senão fazer filhos.

O sujeito poético vai ainda longe, recuperando a problemática da precariedade da sociedade nos centros (sub)urbanos de Moçambique (por que não rurais?), discutida por Carlos Serra, apud Das Neves (2015:61), quando afirma que as cidades moçambicanas possuem dois mundos: o não problemático e o problemático. Isto se pode depreender, por exemplo, na estrofe em que diz:

(…) Às 5h em pé, pronto para ajudar o madala (velho), pasta nas costas, pé na estrada, vamos à bolada (negócio), garrafa com água, moeda está nos bolsos detrás, phando (desenrasco) nas ruas, sem saber se encontro jantar. Faço das minhas para sobreviver nesta selva (…)

Devido a esta precariedade – que obriga as pessoas a que abracem vias mais fáceis de enriquecer –, e porque o título desta faixa musical é “Bandido”, que significa malfeitor ou criminoso, entre metáforas, trocadilhos, hipérboles e paradoxos, o sujeito poético justifica-o, denunciando o negócio clandestino – tráfico de rinocerontes, quando vinca:

(…) nada a perder, negócios mais quentes que o chá, (…) dinheiro-morrer é o lema que carrego comigo, nada a perder, djon; a malta brinca com rinos, a velha sonhou com um doutor e acordou com um bandido (…) (SN, 2022).

Ainda sobre a precariedade da sociedade, o sujeito poético vinca o orgulho de ser um contra-sociedade, gente que, para Serra (2003:19-20), apud Das Neves (2015), o seu horizonte é o dia-a-dia, o seu território é o da astúcia, do entre-dois dos sobreviventes, dos golpes rápidos, da vertigem dos momentos, dos cálculos de circunstância, dos carteiristas, dos biscates, do vende e revende, da prostituição, da droga, das regras, enfim, de uma autêntica “contra-sociedade”, quando diz, na segunda estrofe:

(…) quero ver Moz (Moçambique) a falar o meu nome, minhas empresas na TV bem na hora nobre, business ilegais, sim, é isso que me move, juro, eu jurei jamais morrer pobre, metido com os “cara barra-pesada”; estragas o business, meia-volta, metemos-te a bala; não há piedade, somos frios (…) viciados na txeda (dinheiro), carros de luxo, gajas mulatas, rodada está paga (…)” (SN, 2022).

Nisto, o sujeito poético não deixa escapar a corrupção na polícia, associada aos sequestros, quando frisa, ainda na segunda estrofe:

(…) sequestros lá na town, eu movimento assuntos. Na djele (cadeia) não fico mais de 30min, but why? Puto, a malta come com bufos (polícia) (…)” (SN, 2022).

Aliado a isto, está o fecho da terceira estrofe, onde, servindo-se da intertextualidade, e que acho ter sido bem-conseguida, dá voz a uma personagem que realça a máxima de Mia Couto: “Eu já tinha visto os homens; e aqueles não eram diferentes dos que conhecera antes. Começámos por pensar que são heróis. Em seguida, aceitámos que são patriotas. Mais tarde, que são homens de negócios. Por fim, que não passam de ladrões.” Portanto, vale lembrar ao leitor que:

Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.

(Aristóteles)

À guisa de conclusão, “Bandido (de Moz)”, assim como várias outras faixas musicais que marcam a carreira de SN, são prova de que este é um exímio rapper de intervenção social que, embora de forma cómica e exótica, ancorada à liberdade poética, numa linguagem que oscila entre simples, despudorada e pincelada por neologismos, calão e empréstimos, denuncia as peripécias da urbe, do subúrbio: a precariedade, a pobreza, o tráfico de rinocerontes, drogas, o banditismo, a corrupção (…) e, por que não, o drama da sobrevivência (?)

Pelo que termino dizendo ao leitor que, se esta música for deveras boa, recomende aos seus amigos, se for má, aos seus inimigos.

Bibliografia

Nigger, S. (2022). Bandido (ficheiro audiovisual) acessado em 01-10-2023, às 20h33.
Mora, J. (1982). Dicionário de Filosofia, 5.ªed., Lisboa: Dom Quixote.
Reis, C. e Lopes, A. (2002). Dicionário de Narratologia, 7ª.ed., Coimbra: Almedina.
Silva, V. (1984). Teoria da literatura. 6ªed., Coimbra: Livraria Almedina.
Aristóteles. (2003). Poética, 7ªed., Lisboa. Volume VIII.
Macuácua, Albino, Manjate, Lucílio e das Neves, Osvaldo (2015). Literatura Moçambicana Da Ameaça do Esquecimento à Urgência do Resgate, Maputo: Alcance Editores.
Serra, Carlos (2003). Em Cima de uma Lâmina. Maputo: Imprensa Universitária.