Todos os dias alguém é vítima de uma “bala perdida” na favela e, ironicamente, a bala da polícia é seletiva o suficiente a ponto de atingir pessoas negras com 99% de precisão. Todos os dias uma mãe chora a morte de um filho, ao mesmo tempo em que um policial militar (PM) é afastado para maiores “investigações”. Sempre tem alguém para dizer que bandido bom é bandido morto ou comemorar usando a frase menos um CPF; geralmente é uma pessoa de classe média, da espécie que come mortadela e arrota caviar enquanto dirige o carro financiado e dorme em uma cama parcelada em 24 vezes, este é o fenômeno do "pobre premium".

Tem também o "bom samaritano", a favor da “pátria e família”, que apenas está interessado em fazer justiça e andar armado. Afinal, Brasil acima de tudo e Deus acima de todos. Encontrar um desses é bem fácil, basta procurar por um comentário racista, homofóbico, transfóbico, machista (ou todas as opções anteriores) e clicar no perfil que fez essa publicação. Em segundos, você verá um versículo bíblico na descrição do perfil. Algo genérico, tirado de contexto e constantemente reproduzido até perder o sentido. Devem existir exceções, sabemos disso, mas, não vem ao caso.

A pergunta que não quer calar é: Como justificar a quantidade obscena de crianças que são assassinadas por policiais militares ao longo do ano? Será que algum policial se lembra de Eloah da Silva Santos? - Uma garotinha de 05 anos que morreu por causa de uma bala perdida durante uma operação policial. Será que alguém se lembra de Agatha Vitória Sales Félix? Ela tinha apenas 08 anos quando foi assassinada há cerca de quatro anos atrás.

Agatha era uma garota negra, de cabelo farto e sorriso largo que morava no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro. O crime nunca foi julgado, afinal, a polícia estava atrás de “suspeitos”. São inúmeros os casos de crianças e adolescentes que perdem o direito de viver ano após ano e nada parece mudar. E ainda tem gente que jura que não precisamos falar sobre cotas, racismo estrutural e desigualdade social. Deve ser mais fácil fazer um protesto silencioso no Instagram colocando uma foto com o filtro da bandeira da Ucrânia ou de Israel. O poder da hashtag é estarrecedor! Quem diria que uma guerra poderia cessar se o @Fulanodetal postar #justiça?

Apesar de todo dia termos um novo absurdo acontecendo no Brasil, não há indignação suficiente para protestar, debater, lutar e fazer barulho para incomodar quem vive às custas de chicotear o trabalhador. O racismo não se faz presente só por meio de ações, tudo começa no vocabulário.

A língua portuguesa brasileira vive o dilema de ser uma língua tão abrangente e ainda assim, ter inúmeros termos racistas enraizados no subconsciente de tantos falantes. A coisa tá preta; da cor do pecado; inveja branca; preto de alma branca; mulata; ter um pé na senzala; ovelha negra; cabelo ruim; etc. A lista é longa mas vale a pena estudar e parar de reproduzir esses esse vocabulário tão sujo, mas de que adianta só prestar atenção no que se fala e não no que se faz?

É importante não normalizar chacinas e nem mesmo a desigualdade social, é preciso parar com o papo furado da meritocracia. O combustível da meritocracia é o privilégio. "Virei gestor aos 25 anos", disse Enzo Henrique, filho do dono da empresa. Na vida real, ainda existe diferença salarial entre negros e brancos, homens e mulheres que são literalmente da mesma área. A origem de uma pessoa pode ser - e é - na maioria dos casos, um fator determinante para seu sucesso. De acordo com um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o brasileiro que está entre os 10% mais pobres da população levaria nove gerações – o equivalente a 180 anos – para atingir a classe média no país, considerando as atuais condições de renda, educação, trabalho e saúde.

Não dá para reproduzir a narrativa de que fulano não se esforçou o suficiente, afinal, ele precisa de 180 anos para ter uma vida um pouco melhor - É uma tarefa difícil de ser atingida já que a população que mora na favela vive cerca de 29 a 23 anos a menos do que as pessoas que habitam as áreas nobres do país. Dizer que algum jovem da periferia morreu porque estava no lugar errado e na hora errada é ignorar a realidade.

Quantas crianças vão morrer até as pessoas começarem a se indignar com o que acontece na periferia?