Esta terra nunca foi vazia no passado e não está vazia agora.

(Davi Kopenawa)

No Brasil, o dia 19 de abril não é mais o dia do índio e sim, o dia dos Povos Indígenas. Para tentar descrever como acontece esse movimento e ressignificação, apresentamos um breve texto a partir algumas falas e conversas que realizamos com mulheres do movimento indígena do Estado do Amazonas que estiveram presentes na I Conferência Estadual das Organizações e Povos Indígenas.

Ao contrário do que muita gente pensa, o Dia do Índio não foi estabelecido pelos povos indígenas. Em 1943 no Brasil, durante o Estado Novo, o então presidente da república, Getúlio Vargas, pressionado pelas conjunturas políticas nacional e internacional, sancionou o Decreto-Lei número 5.540 que instituiu no país, o Dia do Índio.

Vamos entender a conjuntura da época

Em 1940, acontecia em Patzcuaro, no México, o I Congresso Indigenista Interamericano que objetivava deliberar políticas de proteção para os povos indígenas. O evento aconteceria entre os dias 14 e 24 de abril. O Brasil esteve presente no evento com um delegado não indígena. Edgar Roquette-Pinto era antropólogo, etnólogo e estudioso de povos indígenas da Serra do Norte, na Amazônia.

Por não ser uma iniciativa dos povos indígenas, eles se recusaram a participar do evento, logo de início. Para eles, aquele evento não seria um lugar de diálogo, pois somente políticos e pessoas com cargos no governo teriam direito a voz e decisão, dessa maneira, os indígenas sentiram-se marginalizados. No entanto, no dia 19 de abril, os povos indígenas decidiram por ocupar o congresso e tomar a iniciativa, iniciando assim, um protagonismo nas decisões e deliberações do evento. Entre os encaminhamentos tomados a partir desse momento destacamos o Dia do Aborígene Americano, em 19 de abril.

E no Brasil?

O Brasil não aderiu logo de imediato as solicitações do Congresso. Em 1943, sendo pressionado nacional e internacionalmente, o governo de Getúlio Vargas, na conjuntura do Estado Novo e orientado pelo general Marechal Rondon, que já tinha instituído em 1910, o SPI – Serviço de Proteção do Índio, que depois se tornou a FUNAI – Fundação Nacional do Índio; sanciona o Decreto-Lei 5.540 que institui no Brasil, o Dia do Índio, no dia 19 de abril de cada ano.

Ao contrário das propostas de proteção aos povos indígenas que o I Congresso Indigenista Interamericano apresentou, a criação da data comemorativa do Dia do Índio apenas escancarou o quanto o Brasil desconhecia sobre os povos originários desse imenso território.

Até o ano de 2022, a data 19 de abril era conhecida oficialmente como Dia do Índio. Somente em julho de 2022, proposta e articulada pela deputada indígena, Joênia Wapichana, a lei 14.402 revogou o decreto-lei 5.540. Assim, o Dia do Índio passou a ser o Dia dos Povos Indígenas.

E os povos indígenas?

Em seu primeiro ano de lei efetiva, o Dia dos Povos Indígenas foi comemorado no Amazonas com a realização da I Conferência Estadual das Organizações e Povos Indígenas que aconteceu na capital do estado, nos dias 17, 18 e 19 de abril, no Centro Cultural dos Povos da Amazônia, com a presença de 66 povos, 12 federações e 93 associações indígenas do Amazonas, além de autoridades governamentais das esferas federal, estadual e municipal.

Na ocasião perguntamos a algumas mulheres e lideranças indígenas sobre a importância do Dia dos Povos Indígenas. Segundo Eliane Falcão, vice-prefeita de São Gabriel da Cachoeira, a data é de memória e resistência. A comemoração do Dia dos Povos Indígenas rememora lutas de tempos outros. Pertencente ao Povo Piratapuya, ela afirma que:

O dia dos Povos Indígenas, [...], pra nós, é muito importante porque nós somos um povo resistente a muitos anos, desde que o Brasil foi ‘descoberto’, os nossos antepassados tiveram muitas lutas de resistência pra gente poder estar aqui, nesse momento. Então, é uma data muito importante pra todos os povos do Amazonas, especialmente o município de São Gabriel da Cachoeira que tem 23 etnias.

A fala de Falcão rememora os diferentes movimentos indígenas que resistiram aos diversos processos de violências histórico-político-sociais, principalmente, contra todos os sistemas de opressão que ocorrem desde o século XVI. Mesmo após a criação do Sistema de Proteção do Índio (SPI), em 1910, os povos indígenas viviam sob o regime de tutela do Estado. Amparado pelo Código Civil de 1916, o artigo 6° declarava os indígenas como incapazes. Somente a Constituição de 1988 deu fim ao regime tutelar. Por quase um século, a população indígena ficou privada de qualquer manifestação por conta desse regime.

Para Jade Kokama, a data, além de esclarecer que existe uma diversidade de povos, os indígenas podem celebrar sua autonomia. Para ela, o dia 19 de abril:

Tem um grande significado porque hoje temos a nossa identidade viva. Hoje nós temos o poder de ter a nossa autonomia, sermos livres, de podermos falar, discutir, debater em todos os eventos em que participamos. Para o dia dos povos indígenas, principalmente, que é um momento que a gente se reúne enquanto família, com seu povo, com os parentes em geral, pra gente se alegrar, ser feliz e também viver a nossa cultura, a nossa realidade, viver o que os nossos ancestrais deixaram pra nós e poder ser livre, fazer nossa pajelança, beber nossas bebidas tradicionais, falar nossa língua Kokama.

Durante o período de regime de tutela, os povos indígenas foram impedidos de falar a língua materna e não podiam realizar qualquer manifestação espiritual. Kokama aponta o dia dos Povos Indígenas como uma afirmação da diversidade de especificidade dos povos.

As terras indígenas também foram alvo de sequestros e muitos povos foram expulsos de seus territórios. Para Bia Kokama, líder do movimento de ocupações e ativista por moradias dignas para povos indígenas que vivem na cidade, a data é de autoafirmação de identidade indígena. Ela retoma como referência a ocasião em que seu pertencimento indígena é questionado pelo fato de a mesma viver na cidade e não na aldeia. A líder nos contou que:

Uma pessoa veio dizer que, por eu morar na cidade, eu não era mais Kokama e hoje, eu digo, não é porque eu tô morando na cidade que eu vou deixar de ser Kokama, que eu vou deixar de ser indígena, eu continuo com a minha cultura e aonde eu for, eu vou continuar sendo indígena Kokama.

Ao longo da história, o maior problema para os povos indígenas não foi a existência de leis favoráveis, mas a não aplicação delas. O Diretório dos Índios de 1758, afirma aplicar o Alvará de 1680 que reconhece que a concessão das sesmarias pela Coroa Portuguesa não poderia afetar o direito originário dos povos sob suas terras. Temos ainda a Lei de Terras de 1854 que reconheceu o direito indígena sobre os territórios ocupados sem a necessidade de legitimação de posse, pois validava a lei do Alvará de 1680. No Brasil República o SPI é fundado e o regime tutelar passa a ser aplicado a todos os povos indígenas. Em 1973 é publicado o Estatuto do Índio, somente na Constituição Federal de 1988, a noção de integração foi abandonada e o Estado brasileiro passou a reconhecer as organizações sociais e políticas dos povos indígenas.

Sobre essas questões, Ivete Tukano nos afirma que:

Falar dos povos indígenas, [...] do dia 19 de abril com certeza, é uma data onde a gente se mobiliza, se organiza pra fazer grandes manifestos em prol dos projetos coletivos. [...] nós nos mobilizamos para apresentar as nossas reivindicações ao governo municipal, estadual e federal. São propostas onde nós apresentamos [...], para que assim, a gente chegue a um consenso e apresentemos nossos anseios, exigindo nossos direitos que estão presentes na Constituição de 88. Por esse motivo, nós estamos sempre nas lutas, por meio do movimento indígena, buscando assistência pública para que a gente tenha, de fato e de direito, os artigos 210, 231 e 232, que esses direitos sejam de fato respeitados porque direitos não são discutidos, direitos se cumprem.

O protagonismo de mulheres indígenas nas esferas de poder apresenta uma nova proposta de reflorestamento de saberes. Para Erondina Tikuna, a presença de mulheres indígenas nos espaços de poder é necessária para a própria preservação da vida. Ela afirma que:

A gente não era visto. Só era visto os homens indígenas, homens brancos. Nós era muito discriminado. Hoje, nós estamos aqui como liderança pra lutar pelos nossos povos indígenas[...]. Hoje nós temos vozes, hoje estamos aí para que nossos povos indígenas sejam lembrados.

Para a cientista social, Valéria Baniwa, quando pensa em seu papel de mulher indígena e na importância do dia dos Povos indígenas, ela afirma que se trata de uma data de luta e resistência. Em seu depoimento, Valéria nos afirma que:

Hoje é um dia de reinvindicação para nós povos indígenas, para nós povos originários dessa terra, principalmente aqui no Amazonas onde se concentra o maior número de povos indígenas do Brasil. É um momento de reflexão daquilo que tem se passado, das políticas que temos perdido, todo o retrocesso que tem causado às nossas retomadas, às nossas reinvindicações, principalmente depois dessa guerra que nós passamos, que foi a Covid-19.

Quando questionada, a jovem militante do movimento dos estudantes do Amazonas (MEIAM), Mayara Sateré-Mawé, nos fala sobre o estereótipo e efeito de sentido pejorativo que o vocabulário índio carrega consigo. A estudante afirma que:

A gente passou pelo Dia do Índio, que carregava um estigma muito grande a respeito do que era os povos indígenas em si, nos reduzia a uma minoria que não tinha direitos, valores e nem rosto. Então hoje, a gente já consegue entender a partir da luta do próprio movimento indígena, né, que a gente já consegue ganhar visibilidade, principalmente no mês de abril.

Para além de uma simples mudança de vocabulários, a palavra índio objetivou desqualificar os sujeitos indígenas os simplificando a uma única classificação estereotipada de indivíduos que viviam nus nas florestas, que viviam apenas pintados com cocares nas cabeças, para além do estereótipo de características fenótipas, o vocabulário índio invisibiliza toda e qualquer tecnologia e conhecimento dos povos indígenas, os classificando como sujeitos selvagens e, por tanto, atrasados.

A jovem Sateré-Mawé fala ainda da importância do ATL para o mês de abril. De acordo com seu depoimento, o Acampamento Terra Livre é onde se reúnem todas as etnias, todos os povos dos Brasil e suas lideranças, para discutir o processo; discutir os rumos do movimento indígena; discutir as políticas públicas. Com o tema *O futuro indígena é hoje, sem demarcação não há democracia”, o ATL de 2023, cobra a demarcação das terras indígenas como garantia do chamado futuro ancestral.

A revogação da lei 5.540, apenas foi possível pela proposta de lei 14.402/22 de Joênia Wapichana, a primeira deputada mulher indígena. A última eleição, mostrou um protagonismo de mulheres indígenas nas esferas políticas. Célia Xakriabá, Sônia Guajajara e Joênia Wapichana são o resultado de um longo processo de lutas de mulheres indígenas, que ao se organizarem propuseram a Bancada do Cocar.

Para Izabel Munduruku, membro do Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (MEIAM), é fundamental a inserção de mulheres indígenas nas esferas políticas. A Munduruku afirma que:

Esse dia na atualidade é muito significativo porque ele tem uma série de questões por trás e, principalmente, questões políticas. A gente tem atravessado esse momento da significância do que é o Dia dos Povos Indígenas. Isso tudo, graças a Joênia Wapichana. Isso demonstra o significado e a importância de ter uma mulher indígena dentro desse espaço de decisões políticas, de construção de leis, uma vez que nós fazemos parte do Estado brasileiro.

As comemorações do primeiro ano referente ao dia dos Povos Indígenas é um passo dado em nova perspectiva de compreensão do Estado brasileiro em relação aos Povos Indígenas. A luta continua e ainda há muito o que ser construído em defesa dos direitos indígenas. O Brasil, precisa reconhecer a constituição da nação como plurinacional e garantir a efetivação das leis em relação aos povos indígenas. Nada pra nós sem nós!