No final da década de 1980 anuncia-se uma nova realidade. A maioria dos jovens já nascidos em França, encontram no Portugal do crescimento e da Europa o recurso identitário valorizante que os seus antecessores trouxeram do país dos cravos e, em grande parte, da ideologia dos exilados antissalazaristas pré-1974. Eis os «lusodescendentes», um novo conceito feito à medida pelas autoridades portuguesas, para grande marketing nacional. De salientar ainda que, se a expressão «lusodescendente» suscita um problema do ponto de vista teórico da investigação, isso não constituiu entrave à sua disseminação na sociedade, nem ao seu uso frequente pelos descendentes de imigrantes, conferindo-lhe uma dimensão política e cultural, endossada apenas por alguns intervenientes, ávidos de um distanciamento real ou fictício da geração dos progenitores.

No entanto, esta noção de lusodescendente inventada de raiz será um conceito efetivamente operante no vasto espectro linguístico? Debrucemo-nos agora sobre este conceito polimorfo, mais ou menos assumido num dado momento pela comunidade portuguesa que, em jeito de catarse, ajuda a desenvolver a estratégia de uma imagem de modernidade e dinamismo de Portugal, graças a esse neologismo aparentemente em voga e, posteriormente, ao desejo de dotar os jovens portugueses de outro estatuto dissimulado com o rótulo de lusodescendente, esculpido à medida, para adornar uma realidade por vezes melancólica, ou para desconsiderar simplesmente a história migratória dos pais, a memória da emigração e da imigração. Antes pelo contrário, cabe aos filhos «firmar a existência dos pais», «abrir-lhes a porta» para a vida pública da sociedade de acolhimento, confirmá-los na sua qualidade de residentes no sentido lato do termo, reabilitá-los na sua identidade total, social, económica e política, não relegando a primeira geração ao esquecimento.

Seja como for, prefiro a expressão descendente de imigrante, ou antes, herdeiro da emigração.

De qualquer forma, os termos usados têm uma carga concetual importante que pode, por vezes, deparar-se com barreiras de incompreensão ou ignorância. Começando pela omnipresença do termo «lusodescendente» raramente questionado, sobretudo no seu uso mediático e comum, embora também científico. A expressão parece fazer sentido, mas, na verdade, não faz! O termo «lusodescendente» engloba uma série de conotações negativas, como ser descendente de portugueses emigrantes, com tudo o que implica uma espécie de representação conveniente: não ter memória social nem passado e banir o sentimento de ser «socialmente inferior» na sociedade de acolhimento... Ficamos com a impressão de que quem usa esse rótulo de lusodescendente, pretende afirmar-se, sobretudo, como «português cultural» e «português social», e não «português biológico», perdendo-se em ideias de divisão geracional. Embora aspirassem a tocar a sociedade no seu todo, acabaram por fechar-se no particularismo «lusodescendente», muitas vezes, contra a sua vontade. Acabam por ficar «lusodescendentes», apesar de reivindicarem o seu lugar na sociedade francesa.

Literalmente, «lusodescendente» significa descendente de portugueses, remetendo para uma origem portuguesa. O uso do termo designa exclusivamente aquele que «descende» do emigrante e que provém de uma construção política. Paradoxalmente, o uso do termo e a ritualização da lusodescendência introduzem uma ideia de distância relativamente ao legado dos pais e a qualquer tipo de origem nacional. Uma estraneidade autossuficiente e implícita: uma verdadeira descendência portuguesa e, certamente, europeia.

O termo teria sido imposto em Portugal com base no seu uso corrente nos círculos da emigração portuguesa nos Estados Unidos, sendo referido por Rocha-Trindade (1995: 51) como sinónimo de «luso-americano». A investigação no terreno e a análise dos arquivos da Assembleia da República Portuguesa não permitiram apurar a sua origem precisa. O termo «luso-americano» é usado como sinónimo de «lusodescendente» num discurso proferido na Assembleia, em 1957, que associa o «prestígio» de Portugal nos Estados. Contudo, os termos «luso-americano» e «lusodescendente» não podem ser considerados sinónimos, nem mesmo parassinónimos, não explicitando a sua dupla filiação. Resta também definir até quantas gerações um descendente de um emigrante é um lusodescendente e, consequentemente, um «luso-ascendente».

Neste caso, no campo das «categorias portuguesas», os termos que remetem para uma afirmação da identidade multiplicam-se: «franco-português», «luso-francês», observando-se, inclusivamente, expressões de «segunda geração» ou «terceira geração», ou ainda «jovens de ascendência portuguesa», que seria mais correta do ponto de vista linguístico.

Dizer-se «lusodescendente», não tem o mesmo significado que declarar-se «português» ou «jovem de origem portuguesa», pois os «lusodescendentes» pretendem afirmar-se como outros à parte, mas outros diferentes, desligados das origens, embora no plano endógeno esse termo venha reforçar a ideia de descendência direta, de laços de sangue. Podemos ver no «lusodescendente» alguém que se apresenta como tal, ou que é considerado como tal. Um termo usado com o único objetivo de auto-designação, cujo desejo é marcar uma distância ou mesmo uma rutura com o passado dos pais, ao passo que se orgulha do que os pais foram capazes de realizar. Esta categoria de «lusodescendente» não pode ser entendida fora do seu contexto político, institucional e simbólico, e mesmo mítico, entre Portugal e as suas Comunidades.

Apesar da tentativa de adotar o termo universalmente, este ainda é pouco conhecido, exceto nalguns meios académicos ou jornalísticos que o vão usando, mas é evidente que a continuidade da afirmação de uma identidade portuguesa na emigração não depende da utilização do rótulo de «lusodescendente», que remete sobretudo para uma necessidade de novidade e diferença, embora do ponto de vista linguístico, o termo se reduza simplesmente ao facto de se ser descendente de emigrante, com um sentimento de pertença e identidade na migração através das gerações. Inversamente, do ponto de vista francês, falar-se-á mais de «binacional francês e português», ou ainda de «franco-português» ou «luso-francês», que desempenham um papel determinante na sociedade francesa, com um caráter existencial da sua identidade, seja francesa ou portuguesa, onde se pode falar de nacionalidade adquirida. Os «lusodescendentes» são, acima de tudo, cidadãos europeus e esses portugueses e franco-portugueses desempenham um papel ativo nos diversos setores da vida social, económica, cultural e desportiva francesa. Contudo, são muito menos visíveis na esfera política, contrariamente ao que acontece com as outras comunidades linguísticas, que desempenham cargos políticos de elevada responsabilidade em França.

Ressalve-se ainda que a «lusodescendência» não é, de todo, uma nacionalidade, mas antes uma tentativa de afirmação de uma nova imagem de Portugal, de modernidade e desenvolvimento na sociedade de implantação. Sob o véu da denominação de «lusodescendente» aparentemente racional, mas na realidade sofista, escondem-se segundas intenções menos louváveis e uma intenção psicológica formada. De facto, estes jovens portugueses preferiram adotar o termo «lusodescendente», sentindo-se partilhados entre duas culturas, divididos entre diferentes solidariedades, sujeitos a pressões contraditórias e a uma necessidade explícita de fazer uma escolha, num período delicado da sua existência, numa idade na qual se sentem frequentemente revoltados, designadamente, contra uma sociedade que nem sempre lhes atribui o devido lugar, quando não os rejeita simplesmente. Na melhor das hipóteses, vêem-se numa posição difícil e até insuportável perante os seus familiares. Na pior, são dissuadidos, irreversivelmente, a escolher a nacionalidade francesa, e isso em França. É como se fabricássemos estrangeiros no nosso proprio país. Ouvimos frequentemente: «“Nasci em França, deveria ser francesa.” Mas, por outro lado, penso: “Os meus pais são portugueses, logo, sou portuguesa.” Na verdade, não sei.» Embora alguns jovens saibam que têm a nacionalidade dos pais, são muitos os que imaginam ter apenas uma nacionalidade temporária «de segunda zona» e essa categoria de «lusodescendente» – que se insere mais num movimento – acaba por criar a ilusão de uma escapatória, que se torna num elemento constitutivo da sua identidade, mas de forma errada.