A constituição de cada Estado será republicana; A lei das nações terá como fundamento uma federação de Estados livres.

Caros leitores, neste meu artigo irei debruçar-me sobre a obra (A Paz Perpétua) e o pensamento do grande filósofo prussiano do século XVIII, Immanuel Kant (1724-1804). Espero que seja um tema que, apesar de não ser normalmente abordado nestes meios literários, lhe agrade e desperte algum interesse para conceitos e análises que devem estar sempre presentes nas nossas sociedades.

Podemos desde logo identificar o pensamento kantiano com base na escola liberal, onde a teoria da paz democrática refere que o principal elemento para a não existência de conflitos violentos é a presença de paz e democracia. A conjugação destes dois elementos faria com que a paz fosse não só estável como também perpétua.

Feito este preâmbulo, cabe-me questionar em que é que a escola de pensamento liberal, defendida por Kant, difere de outras, como a realista e a construtivista, e quais os seus mecanismos de ação para o objetivo da paz perpétua preconizada pelo filósofo? É interessante focar este aspeto numa altura em que a escola realista tem maior protagonismo, em que existe uma crise financeira nos Estados considerados democráticos e onde a primeira nação nascida dos ideais liberais explanados por Kant (EUA) se encontra num dramático retraimento estratégico e com eleições presidenciais importantíssimas já em 2024.

Vamos então recuar alguns séculos e verificamos que a escola de pensamento liberal dá os seus primeiros passos durante a época do Iluminismo, onde existia uma oposição à monarquia absoluta, ao mercantilismo e a diferentes formas de clericalismo. Os movimentos iluministas foram também os primeiros a focar não apenas nos conceitos do direito individual e do primado da lei, mas também na importância do autogoverno através de representantes eleitos. O liberalismo acaba por surgir no Reino Unido, como resposta ao realismo e ao absolutismo político. John Locke foi um dos principais pensadores da história do liberalismo, tendo mesmo sido apontado como uma das grandes influências de Immanuel Kant. Duas ideias liberais fundamentais, segundo a conceção de Locke, eram a liberdade económica e a liberdade intelectual. Contudo, é de salientar que a liberdade religiosa era algo que o filósofo britânico não aceitava. Importante também para se ter uma ideia da escola liberal é o trabalho do pensador e economista escocês Adam Smith. Ele é constantemente visto como o mais importante teórico do liberalismo económico, tendo sido o grande fundador da economia moderna.

A escola liberal moderna caracteriza-se como um sistema político-económico baseado na defesa da liberdade individual. Esta liberdade não se refere somente aos campos da política e da economia, mas também no que concerne à religião e ao pensamento. Acima de tudo, procura insurgir-se contra os abusos e atitudes coercivas por parte do Estado. Em termos históricos podemos focar as origens da escola liberal na revolução americana, no entanto, foi a revolução francesa que marcou o princípio do fim da velha ordem existente na Europa.

Uma importante conquista liberal, além da liberdade de expressão, da promoção de mercados livres e da igualdade racial e de género, inclui a ascensão do internacionalismo liberal, que é considerado o grande responsável pelo estabelecimento de organizações globais, como a Sociedade das Nações e, posteriormente, a Organização das Nações Unidas (ONU).

Voltando a Kant, este critica o mecanismo de equilíbrio de poderes, onde os Estados são meras peças de um jogo. Como tal não há sistema, mas sim um equilíbrio de forças entre os Estados, equilíbrio esse que se consegue através da guerra (não esqueçamos que recuámos até ao século XVIII – a Europa era um espaço de guerras constantes). Nesta perspetiva, Kant afirma que o cidadão fica submetido ao sofrimento, à dor, a ver os seus bens pilhados e também à morte. Como tal, o célebre equilíbrio de poderes na Europa não é mais do que um equilíbrio de soberanos, cuja última razão são os cidadãos. Segundo Kant, a culpa das guerras é dos soberanos de cada nação, sendo que os Estados estão dotados de mecanismos de transformação. Não é da essência das coisas que elas continuem assim; daí a Paz Perpétua. Para que esta possa existir, as Constituições devem ser republicanas. A Constituição Civil de cada Estado deve ser baseada na liberdade e num princípio de igualdade dos mesmos enquanto cidadãos. Todos eles devem manter igualdade nos seus direitos. Se isto for cumprido, as guerras cessarão. Ainda segundo Kant, este regime republicano será a forma de governo dos Estados, cuja soberania poderá encarnar uma monarquia, aristocracia ou democracia através de um regime representativo.

Na filosofia kantiana, para a existência da Paz Perpétua é necessário ter em consideração duas bases fundamentais: o republicanismo e a noção de Estados livres, logo, é preciso também que quem queira estabelecer a paz seja republicano. É necessária ainda uma compatibilidade de regimes, ou seja, os regimes dos Estados não podem ser diferentes (atenção que os tipos de soberania, como abordei há pouco, podem divergir). Assim, Kant almeja um federalismo defensivo realizado somente entre os regimes republicanos constitucionais e nunca através de um governo mundial. Ao elaborar esta ideia, Kant está a pensar obviamente no continente europeu: os regimes da Europa devem transitar para regimes federais e serem confederados num ponto de vista defensivo - defender a autonomia face às arbitrariedades dos outros (“Liga dos Povos” ou “Federalismo Defensivo”).

Cabe-me agora lançar a questão se este pensamento, em pleno século XVIII, poderá ser a base de uma unidade europeia? Em termos políticos (União Europeia), económicos (política monetária comum; Euro) e até militares (NATO)?

A Paz Perpétua de Estados republicanos constitui um projeto revolucionário para a época, pois não se baseia num status quo, mas sim num projeto criativo. Só alterando as condições será possível a paz, embora não deixem de existir litígios.

Para os teóricos liberais das Relações Internacionais, o ênfase de Kant na instauração de um regime internacional alicerçado na liberdade individual e no federalismo internacional eram a chave para a paz e para a edificação de uma realidade internacional mais justa. A tradição liberal tem por base das Relações Internacionais, não os Estados, não os sistemas, mas sim, como já procurei demonstrar, os indivíduos. A tradição liberal reclama para si um ideal democrático, em que mais que os povos, é cada indivíduo, dotado de toda a sua liberdade, o ator das Relações Internacionais. Associada também às noções de comércio e de mercado livre, há a consciência de que a guerra acaba por ser prejudicial ao comércio e, consequentemente, à economia.

Enquanto pensadores como Kant defendem que o individualismo e a pouca intervenção estatal nos assuntos do individuo são a forma de obter uma maior liberdade de ação e pensamento, a escola liberal, na sua vertente mais moderna, mas também como grande defensora da liberdade, procura de certa forma afirmar que, a não ser que o Estado providencie alguma forma de bem-estar social (welfare state), os pobres não são completamente livres.

Podemos concluir, sem qualquer sombra de dúvida, que Immanuel Kant, assim como tantos outros prestigiados pensadores, se encontrava diretamente ligado à escola de pensamento liberal. Esta tinha como grandes objetivos a liberdade económica e individual, obtida sobretudo através de um certo distanciamento do Estado em relação ao indivíduo. Kant indica a constituição de um vasto conjunto de Estados federados com base numa Constituição republicana como a solução para a Paz Perpétua. Devemos também reter a ideia de que Estados em guerra dificultam o comércio/mercado, portanto, a ideia de converter o mundo às Constituições republicanas é fundamental para a manutenção da paz e para a evolução da economia. As instituições internacionais ocupam também algum relevo sendo que, para a obtenção da paz democrática, é muitas vezes necessária a existência de conflitos violentos. Há a noção de que a paz liberal vai resultar a longo prazo, apesar de todas as reservas, e que a segurança internacional depende de diversas condicionantes, havendo a perceção de que Estados democráticos não entram em conflito, pelo menos armado, uns com os outros.

Com a ideia liberal surge uma política de integração onde a criação de interdependência comercial como elemento pacificador torna muito difícil o conflito. Existe também a visão predominantemente positiva da natureza humana onde o Estado surge apenas como um mal necessário e as relações internacionais podem assumir um aspeto mais otimista e sem guerras, motivado basicamente pelo livre comércio.

Apesar de ter estado a abordar um tema mais teórico e complexo, ainda assim de forma muito resumida e adaptada ao propósito destes artigos, espero que tenha de certa forma contribuído para que você, caro leitor, que se interessa por política interna e internacional, detenha os seus pensamentos nas ideias de Kant e de outros grandes filósofos e pensadores que viveram na época abordada. O meu obrigado e continuação de boas leituras.