Se você conhece um estudante ou profissional da saúde, com certeza já deve ter se deparado com a frase: “[insira aqui a área] por amor”. E se você é o tal estudante ou profissional da saúde, existe uma grande chance de já ter publicado essa frase nas redes sociais.

Em ambos os casos: pare! Agora mesmo.

Pode parecer simples e natural, mas essa devoção pelas vertentes da Saúde é um problema a se combater, porque a cultura criada em torno desse mito causa mais prejuízos do que benefícios a toda categoria.

Vocação ou ocupação?

Quando você decide fazer Medicina, não o faz por ter um dom divino de curar a humanidade, da mesma forma que a pessoa cursando Engenharia da Pesca não recebeu a missão de Deus para zelar sobre os peixes.

Foi apenas uma escolha de profissão.

Da mesma forma, fisioterapeutas, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas — entre outros ramos da Saúde — não trabalham em prol da paz mundial, e sim para pagar suas contas.

Quando enxergamos as profissões da Saúde como vocações espirituais, nós nos esquecemos que, por trás daquele manto sagrado, existe uma pessoa. Que pode ser bom ou mau profissional, mas ainda é uma pessoa exatamente como você, e ela precisa ser reconhecida como tal.

Esse endeusamento de profissionais desumaniza, e falando nos aspectos de comunicação, é péssimo. Como você questiona e até mesmo denuncia uma abordagem irregular se acredita que o trabalhador à sua frente é uma figura sagrada?

Sem contar que essa visão não se aplica a todas as áreas da Saúde, e sim aos segmentos médicos, que recebem mais prestígio. As demais só recebem o ônus dessa cultura, que é o apagamento profissional e sua desvalorização.

Uma luta não tão sublime

Cada trabalhador sanitário precisa ser pago pelo seu serviço, pois está efetuando uma função, certo? Mas quando essa cultura religiosa toma conta, nós nos sentimos confiantes em questionar o valor do tratamento, com a desculpa que aquela pessoa não devia cobrar tanto dinheiro por um suposto “dom divino”.

Inclusive, é o que nos faz estranhar quando as classes da Saúde se organizam coletivamente, pois onde já se viu transformar vocação em política? E assim seguem explorados com o apoio da sociedade.

Nenhuma profissão é sagrada ou divina, tudo se resume em trabalho e prestação de serviços. Dentro da Saúde não é diferente, pois não se trata de uma missão espiritual nem sacerdócio, são profissões como qualquer outra, e são devidamente remuneradas como todas devem ser.

Isso impede o funcionário de se vangloriar pela sua formação e o paciente de se intimidar com a sua falsa magnificência, tal qual facilita a compreensão dessas profissões como coletivos políticos que precisam lutar pelos seus direitos e se unir enquanto classe operária.

Ainda que alguns ganhem seus 10 mil de salário, isso não torna os trabalhadores da Saúde donos dos meios de produção; portanto, são tão parte da classe trabalhadora quanto qualquer peão de fábrica.

E entender esse lugar não é inferiorizar a Saúde, muito pelo contrário: é colocá-la em posição de igualdade em relação a todas as outras áreas profissionais.

Quem cuida de quem cuida de nós?

Outro olhar muito característico aos profissionais da saúde é o heroísmo. Durante a pandemia do COVID, por exemplo, frequentemente víamos mensagens de apoio a essa classe, reconhecendo-os como os heróis que salvam a humanidade do vírus maligno.

Pode parecer inocente, e até digno, dar tanta importância assim à classe sanitária. No entanto, o efeito é contrário.

Na ficção, heróis são aqueles personagens com poderes divinos e dotados do mais profundo altruísmo, dispostos a se sacrificar em prol do bem maior. São feitos para corresponder às nossas expectativas de ter alguém para nos proteger a todo momento, sem pedir nada em troca.

Entretanto, ao trazer esse ideal para a realidade, vemos que não passa de egoísmo e comodismo. Nós queremos pessoas dispostas a nos servir e proteger, mas não estamos dispostos a fazer o mesmo.

Atribuir aos profissionais da saúde o ideal heroico é afirmar que eles não podem falhar, cair ou se ausentar. Esperamos que eles enfrentem tudo de peito aberto, tenham todas as respostas e nos incomodamos quando saem desse pedestal divino e se mostram humanos.

Voltando ao exemplo da pandemia: ao mesmo tempo que os profissionais da saúde eram vistos como heróis, a população que os endeusava não seguia as recomendações sanitárias da OMS. Como resultado, os hospitais ficaram lotados e os profissionais da saúde sobrecarregados, mas o pensamento geral era: tudo bem, eles aguentam.

O quão egoísta é colocar todo o peso nas costas de uma classe profissional por causa de uma visão que nós mesmos alimentamos?

Atrelar saúde a heroísmo é renegar a humanidade desses profissionais, que precisam de tanta atenção e cuidado quanto cada um de nós. Vale lembrar que essa área é uma das mais insalubres, por lidar diretamente com doenças e ambientes controlados.

Nem sacerdócio nem heroísmo

Em resumo, o seu terapeuta não é escolhido por Deus, ele só tem um diploma e certificações para tratar o seu problema. Da mesma forma, os demais serviços sanitários que você usa são serviços, que devem ser pagos e respeitados de acordo, e apenas isso.

Sagrado é o divino e as entidades de cada religião. Profissionais da Saúde são só pessoas. E profissionais, diga-se de passagem.

Da mesma forma, atrelar a essa classe profissional os ideais heroicos dos gibis é outra forma de desumanização. Isso nos faz acreditar que não merecem o mesmo cuidado que aplicam, e que é sua obrigação aguentar todos os fardos sem questionar.

No final, quem ganha com isso é apenas o sistema que precariza todas as relações trabalhistas, sem distinção. E se você sente gratidão pelo que profissionais da saúde já fizeram por você, então apoie essa classe com atitudes reais, não objetificação.

Um abraço, e a gente se lê por aí.